Toda quinta-feira, um tesouro dos arquivos de nossas cinco décadas de história
Jim Leighton e Dunga no duelo contra a Escócia em 1998 – Getty Images e PLACAR
A expressão de incredulidade de Kieran Tirney ao marcar, aos 48 do segundo tempo, o gol que selou a classificação da Escócia para a Copa do Mundo de 2026 deu a medida da façanha. Foram 27 anos de espera desde a última participação escocesa em Mundiais. Na Copa de 1998, a equipe não venceu uma partida sequer, mas teve participação e personagens marcantes, especialmente para os brasileiros.
Naquela época, o atual campeão (no caso o Brasil, tetra em 1994) fazia o jogo de abertura e o sorteio estabeleceu que seria a seleção escocesa a adversária da equipe dirigida por Zagallo naquele 10 de junho de 1998, em Saint-Denis.
No tradicional Guia PLACAR da Copa do Mundo e em reportagens e entrevistas prévias ao Mundial, o clima era de bastante respeito à seleção escocesa, que além de um bom time levaria à França o Tartan Army, seu exército de barulhentos torcedores.
Em edição de 1º de junho, dias antes do início, Zico, auxiliar de Zagallo, surpreendeu ao falar da equipe britânica.” Estou mais preocupado com a Escócia. Estreia é fogo… Preferia até começar contra a Noruega”. O Brasil acabaria vencendo a Escócia e perdendo para a Noruega naquele grupo A.
Ronaldo não marcou na estreia diante da Escócia, no Estádio de Saint-Denys – PLACAR
Evolução escocesa no guia da Copa
À PLACAR, o jornalista local Kevin Mccarra destacava a “evolução escocesa”, salientando que “nem só de força física vive o nosso futebol. Temos também um meio-campo criativo.”
“Acostumado a trabalhar no Clyde, um pequeno time da Liga Escocesa, o técnico Craig Brown sabe como poucos extrair o melhor de grupos limitados. Se a geração atual não tem nenhum nome de destaque como Kenny Dalglish, ídolo nacional das décadas de 70 e 80, ela pode fazer a melhor campanha da Escócia em Mundiais. Antes desorganizados dentro e fora do campo, agora temos disciplina tática e sabemos nos defender muito bem”, escreveu Mccarra, editor de futebol do , de Glasgow.
Zagueiro Hendry era o destaque da seleção escocesa no guia da PLACAR
“A média de idade alta do time (cerca de 30 anos) não preocupa: o próprio Brown já declarou que experiência é mais importante do que juventude e lembrou que os jogos não serão disputados ao meio-dia, como na última Copa. Fora de campo, o único que pode criar um pouco de problemas é Andy Goram, o goleiro, que é meio louco e gosta de beber. A opção de Brown é escalar Leighton. Nenhum dos dois inspira muita confiança, mas à frente deles Calderwood, Hendry e Boyd, os três zagueiros, formam uma defesa habituada à força física e a marcar no homem a homem”, prosseguiu.
O grande desfalque foi o meia Gary McAllister, afastado do Mundial por causa de uma contusão grave no joelho. “Ele funcionava como maestro, ditando a velocidade e o ritmo de jogo. (…) O grande problema é o ataque: Kevin Gallacher é rápido, mas não é nenhum primor de técnica. Isso explica por que Ally McCoist, o legendário centroavante do Glasgow Rangers, de 35 anos, quase acabou convocado para o Mundial”.
Goleiro e atacante banguelas
Se não pelo talento, alguns dos jogadores da seleção escocesa chamavam atenção pelo visual. Além da presença do loirão Hendry, capitão do time, tanto o goleiro Jim Leighton quanto o atacante Craig Burley se destacavam pela ausência de dentes. Não se preocuparam nem um pouco em aparecer banguelas na Copa do Mundo. Burley, inclusive, exibiu orgulhoso seu sorrido ao marcar contra a Noruega.
Leighton era um veterano de 39 anos, que apesar de não ter brilhado no Mundial, vinha em boa fase nas Eliminatórias, conforme destacou o guia de PLACAR.
“Em 1983, quando Leighton estreou na Seleção Escocesa, Bebeto era um garoto disputando o Mundial de Juniores. Nesses quinze anos de serviços prestados, o arqueiro alternou bons reflexos com erros bobos. Antes de voltar a jogar na Escócia, agüentou dezoito meses seguidos como reserva no Manchester United, da Inglaterra. Durante as Eliminatórias chegou a ficar seis jogos consecutivos sem levar gol.”
O zagueiro Colin Hendry era a principal esperança para segurar o ataque de Brasil, Noruega e Marrocos na primeira fase.
“Uma das principais figuras do surpreendente time do Blackburn que conquistou o título inglês em 1995. Apesar da raça e excelente impulsão, Hendry só conseguiu estrear na Seleção em 1993, quando já tinha 27 anos. Sua determinação o transformou em líder natural da equipe. Um dos solitários bons jogadores da fracassada campanha da Escócia na Copa Europa de 1996.”, dizia o guia.
Como foi Brasil 2 x 1 Escócia
De fato, como previu Zico, a estreia da Copa do Mundo foi bastante nervosa para a seleção brasileira, que venceu por 2 a 1, com um gol de César Sampaio e outro contra, de Boyd. Apesar da boa impressão da abertura, a Escócia acabaria eliminada na primeira fase, com um empate em 1 a 1 com a Noruega e derrota por 3 a 0 para o Marrocos. O Brasil passou em primeiro com 6 pontos, seguido pela Noruega com 5.
Cafu comemorando o seu gol contra a Escócian na abertura da Copa – PLACAR
No relato “Vitória em dose dupla”, Sérgio Xavier Filho e Sérgio Garcia, de Saint-Denis, destacaram que “Antes de passar pela Escócia, por 2 x 1, na abertura da Copa, o Brasil precisou derrotar um inimigo bem mais traiçoeiro”. Confira o trecho abaixo:
Na história das Copas ficará registrado que o Brasil começou o Mundial 98 com o pé direito. Lá estará que a Seleção bateu a Escócia por 2 x 1 no jogo de abertura da Copa. O que não estará escrito em lugar algum é que o verdadeiro adversário no jogo de abertura da Copa da França não se chamava Escócia. Nas duas semanas que antecederam a estreia, o Brasil precisou encarar um inimigo bem mais encardido: o próprio Brasil. Traiçoeiro e ardiloso, esse Brasil fez o que pôde para atrapalhar. Treinou pouco e treinou mal, semeou discórdias entre jogadores, insistiu em variações táticas que não aproveitam as potencialidades dos craques, afundou-se em problemas médicos com diagnósticos tardios e equivocados.
Para derrotar um adversário desse porte só mesmo um artilheiro dos bons. Zico, 640 gols na bagagem de jogador, demonstrou ser como coordenador técnico um exterminador de problemas. Apoiado numa inquebrantável coerência, Zico vem conseguindo impor suas idéias e um mínimo sentido de união que uma Copa do Mundo exige.
(…)
Ao manter-se coerente e lutar por uma Seleção sem jogadores bichados, Zico sabe que candidatou-se ao papel de vilão maior do futebol brasileiro. “Em caso de derrota, vão dizer que perdi minha quarta Copa (como jogador, Zico participou de Mundiais em 1978, 1982 e 1986) porque o Romário não estava aqui”, admite Zico. “Só sei que estou com a consciência tranqüila.”
lance do gol de César Sampaio, o primeiro da Copa do Mundo de 1998 – PLACAR
Com o corte de Romário, a seleção brasileira precisou lidar também com a concorrência entre Edmundo e Bebeto. Mais uma vez, Zico teve de ajudar Zagallo:
“Como se temia, Edmundo não suportou a idéia de ficar no banco de reservas. No primeiro treino de Bebeto como titular, Edmundo quase racha a perna do companheiro Júnior Baiano.
Após o amistoso contra o Athletic Bilbao, o craque-problema entrou no vestiário batendo boca com Ronaldinho, que não havia lhe passado uma bola. Leonardo pediu calma e tomou uma bronca. “Você sempre querendo bancar o bom moço. Vá tomar no…, não estou falando com você”, devolveu o Animal. Os outros jogadores não deixaram que a briga fosse em frente, mas um zagueiro resumiu o pensamento de alguns:
Na sexta-feira, 5 de julho, Edmundo detonou mais um torpedo. “Estou melhor fisicamente e tecnicamente do que o Bebeto.” A frase pegou mal. Era hora de Zico entrar em campo. Na quinta-feira, chamou o jogador: “Além de desrespeitar o Bebeto, você feriu as normas da CBF ao dar uma entrevista por telefone. É melhor pedir desculpas.” Edmundo assimilou e, na noite de sexta-feira, 5 de junho, reuniu-se com jogadores e Comissão Técnica. Se retratou.
Além de um compilado dos problemas da seleção na campanha que culminou no vice-campeonato diante da França, a edição trazia uma análise da estreia de Paulo Roberto Falcão. O ídolo de Inter, Roma e seleção elogiou a postura de Ronaldo, então conhecido como Ronaldinho, e Cafu.
Análise de Paulo Roberto Falcão sobre a estreia do Brasil – PLACAR
Primeira Fase – 1º Jogo
10/6 STADE DE FRANCE (SAINT-DENIS)
BRASIL 2 X 1 ESCÓCIA
J: José Garcia-Aranda (ESP); P: 80 000; G: César Sampaio 5 e Collins (pênalti) 38 do 1º; Boyd (contra) 27 do 2º; CA: Aldair, César Sampaio, Jackson
Brasil: Taffarel, Cafu, Júnior Baiano, Aldair e Roberto Carlos; César Sampaio, Dunga, Giovanni (Leonardo) e Rivaldo; Bebeto (Denilson) e Ronaldinho. T: Zagallo
Escócia: Leighton, Hendry, Boyd e Calderwood; Burley, Collins, Lambert, Dailly (Tosh McKinlay) e Gallacher; Durie e Jackson (Billy McKinlay). T: Craig Brown
Craig Burley, da Escócia, comemora seu gol contra a Noruega 🇳🇴 na Copa de 1998, na França. Ele perdeu os dois dentes de frente CHUTANDO A SI MESMO NA CARA com 17 anos. Hoje não é mais banguela e é comentarista da ESPN.
Faltam 5 dias para o Mundial.