“Ciao, Clérice. Aqui é Carlo Ancelotti.” Os moradores de uma casa em Araraquara, no interior de São Paulo, já nem bem se lembravam de como era o som do aparelho telefônico, daqueles fixos, mesmo, quando o técnico da seleção brasileira surpreendentemente ligou. O italiano queria falar com Sérgio Clérice, alguém que conhecia de acompanhar o Calcio quando menino e depois já como jogador.
Matéria publicada na edição 1528 de PLACAR, de outubro de 2025, já disponível em versão digital e física em nossa loja
Clérice, hoje com 84 anos, fez 187 gols em partidas oficiais na Itália e ficou marcado na memória de Ancelotti, 18 anos mais novo. Hoje, o ex-jogador de Lecco, Bologna, Atalanta, Hellas Verona, Fiorentina, Napoli e Lazio ganha a segunda edição da sua biografia: El Gringo — O vilão elegante, escrita por Rodrigo Viana, com um depoimento do próprio Ancelotti, presenteado com a versão anterior. “O grande mérito do livro é o resgate memorial. O Clérice sempre esteve na história, mas, de repente, pouca gente notou por aqui”, disse Viana.
O atacante, de rosto largo e cabelo despenteado, era alguém típico do faroeste americano. Por isso, “El Gringo”, com um quê de Tex Willer dos campos. Filho de italianos, o ainda Serginho se destacou em uma partida da sua Portuguesa Santista contra o Santos. Um empresário o descobriu e logo o levou para a Itália, em 1960, saindo só 17 temporadas depois, como o último estrangeiro a poder jogar no país como determinação da federação nacional na época.
Ficou na memória de Ancelotti e de tantos tifosi apaixonados.
Leia a seguir um trecho do livro

Sérgio Clérice atuando pelo Lecce – Divulgação
O início
Sérgio Clérice nasceu no dia 25 de maio de 1941, na cidade de São Paulo. Foi preciso vasculhar as gavetas históricas, memoriais e até religiosas do menino Serginho para reconstruir a chegada dele ao futebol italiano. Afinal, de onde vieram a força e a determinação que o fariam o gigante que se tornou? A semente foi lançada nos arredores da Igreja de Santana, terreno de Clérice quando menino. Os padres incentivavam torneios esportivos com o objetivo de retirar a garotada da rua e aproximá-la de práticas saudáveis. Uma das equipes amadoras famosas daquela época foi o Bangu, clube pioneiro de futebol de salão, que jogava atrás da igreja. Procurei pelos amigos de infância de Clérice e encontrei o economista e professor aposentado da USP Wilson Abrahão Rabahy, que foi seu colega não só daqueles arredores da Igreja de Santana, mas também de escola, do Colégio Salete.
Ainda nos arredores da igreja, Clérice jogou também pela equipe amadora do Milionários do Santana, desta vez, no futebol de campo, ganhando destaque. Os jogos de várzea em Santana chamaram a atenção de Eduardinho, um conhecido ex-jogador de futebol da época, que havia tido uma boa passagem pelo Corinthians e conseguiu uma vaga para o Gringo nas categorias de base do Nacional da Barra Funda. Tudo isto com 15 para 16 anos. Logo chegou à equipe profissional, onde seu técnico era o uruguaio Sebastián Beracochea – que, como jogador, participou das primeiras campanhas vitoriosas do Vasco da Gama no Expresso da Vitória, o maior time da história do clube. O uruguaio o colocou para jogar pela primeira vez, num Campeonato Paulista, no dia 9 de novembro de 1958, na derrota do Nacional para o Comercial da Capital por 2 a 1. Aos 17 anos de idade, Clérice estreava como profissional.
Após uma boa temporada, no final de 1959 foi para o Palmeiras – time com o qual manteria estreita ligação durante toda a vida. Do Alviverde, um mergulho rápido na Baixada Santista: além de jogar pela Portuguesa Santista, Clérice também servia e jogava pelo time do Exército, já que seu comandante na equipe praiana, o então major Maurício Cardoso, acumulava também a responsabilidade técnica das competições militares de futebol. O Gringo tinha apenas 19 anos quando recebeu a visita de um emissário do futebol europeu. Dos primeiros chutes na periferia de São Paulo ao Velho Continente. Uma mudança de vida abrupta, forte, assim como os disparos que ele daria rumo ao gol durante toda a carreira.
Em conversa, Serginho, como era chamado quando garoto, lembrou que frequentava a Igreja de Santana e que foi lá que tudo começou.
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Um grnigo na Velha Bota

Sérgio Clérice em momento inusitado com um dentista – Divulgação
No Lecco, equipe com o mesmo nome da cidade, Clérice é uma verdadeira lenda: disparadamente o melhor estrangeiro que já passou pela equipe e o quarto maior artilheiro de todos os tempos, entre jogadores italianos e estrangeiros, com incríveis 66 gols em 212 partidas nos sete anos que lá ficou (de 1960 a 1967). Também é considerado o melhor jogador brasileiro que passou pelo Bologna, que também carrega o mesmo nome da cidade em que está sediado, com 105 jogos e 29 gols. Foram duas passagens pela equipe. Na segunda vez que esteve por lá, já aos 34 anos, anotou 15 gols em dois anos (1976 e 1977), uma marca excepcional, já que a Série A tinha somente 16 times à época e era um torneio de poucos gols. Na Atalanta, de Bérgamo, Clérice ficou uma temporada (1968/69) e colocou 10 bolas na rede em 31 partidas, somando-se todas as competições. Somente no Campeonato Italiano, fez nove gols e, mesmo com o time tendo sido rebaixado, foi o artilheiro da equipe na Série A na temporada. Já no Hellas Verona, da cidade de Verona, que fica na região do Vêneto, foi artilheiro nas duas temporadas em que lá esteve (1968/69 e 1969/70), com 19 gols em 61 partidas. Na temporada de 1970, seus 10 gols lhe renderam a marca de quinto artilheiro da Liga Italiana. É também o jogador brasileiro mais festejado por lá. O feito em Verona se repetiu e foi levado à potência máxima em Florença, com a Fiorentina de Nils Liedholm. Lá, registrou o melhor desempenho de um brasileiro, com duas temporadas como artilheiro da equipe na Liga Italiana (1971/72 e 1972/73). Os toscanos, que haviam sido campeões da Itália em 1969, mesmo não conseguindo repetir o feito, ao menos fizeram consistentes temporadas com Clérice como centroavante: quinto e quarto lugares, respectivamente.
Na Fiorentina, também brilhou em outros torneios italianos e europeus, conquistando o segundo lugar da Copa Mitropa – competição importante e precursora da Liga dos Campeões – e também o vice-campeonato da Copa Anglo-Italiana, torneio entre clubes ingleses e italianos disputado à época. Ao todo, em Florença, alcançou a marca impressionante de 73 jogos e 29 gols. Nesse período, ficou conhecido por punir seus antigos times: marcou três gols em dois clássicos da Fiorentina contra o Bologna e também aplicou a “lei do ex-jogador” contra Atalanta e Verona. No Napoli, o apogeu. Foram 66 jogos e 32 gols, ao todo. Na Liga Italiana, foi o artilheiro do time, com 15 e 14 gols, respectivamente, números que lhe renderam o título de quarto maior artilheiro do campeonato em 1973/74 e terceiro maior artilheiro em 1974/75, temporada em que os azuis foram vice- campeões da Itália pela segunda vez, na melhor campanha de todos os tempos até então, apenas dois pontos atrás da Juventus, de Turim, primeira colocada. O Gringo, contornado por narrativas de herói e vilão, incluindo um caso de um suposto suborno, que ficou conhecido como scandalo dela telefonata [escândalo do telefonema], deixou Nápoles numa transação milionária com o Bologna, em que foi utilizado como moeda de troca com outro atacante, Giuseppe Savoldi. A torcida não se conformou com a troca, e não foram poucos os movimentos passionais de milhares e milhares de napolitanos apaixonados chorando sua saída. Sérgio Clérice era o atacante estrangeiro mais falado de toda a Itália.
Na volta ao Bologna, além de manter o desempenho que o caracterizou durante toda a carreira, ficou marcado pelas homenagens que recebia dos napolitanos quando enfrentava sua ex-equipe.
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No dia 19 de março do mesmo ano, entraria em campo pela última vez no Campeonato Italiano, no empate, por 1 a 1, entre Lazio e Roma, num jogo que também ficaria marcado pelas homenagens aos cinco agentes mortos no caso do sequestro e posterior assassinato do ex-primeiro-ministro italiano Aldo Moro, num ato terrorista ocorrido três dias antes na capital italiana. Ainda pela Lazio, ficaria marcado também por ser o único jogador estrangeiro ainda em atividade na Itália, já que atletas de fora do país haviam sido proibidos de jogar em função de um veto editado em 1966 pela Federação Italiana, que determinou o fechamento das fronteiras para jogadores estrangeiros após a seleção azzurra ter sido eliminada na primeira fase da Copa do Mundo pela Coreia do Norte. A revogação da medida aconteceria apenas em 1980. Além de ser o estrangeiro que defendeu mais times italianos da primeira divisão na história, o Gringo também está no rol dos 100 maiores artilheiros do cobiçado Campeonato Italiano da Série A, com 103 gols anotados e incríveis 336 partidas. No histórico total de competições, levando-se em conta os torneios europeus em que jogou – Copa Mitropa, Copa Anglo- Italiana, Taça das Feiras e Taça Uefa – e os jogos na Federação Italiana, incluindo a Série B, Clérice tem 187 gols em 564 partidas. São números absolutos. Sérgio Clérice nunca foi chamado para a seleção brasileira e, mesmo com a ascendência italiana, também nunca se naturalizou italiano, não tendo jogado pela seleção azzurra. É esse o motivo, aliás, que o faz superar, em número de gols, Altafini Mazzola, campeão do mundo pelo Brasil em 1958, mas que jogou a Copa de 1962 pela Itália. Apesar de Mazzola ter mais gols que Clérice, ele é considerado italiano por ter-se naturalizado e jogado pela seleção italiana. O mesmo vale para Amauri, que seria, a partir dos anos 2000, o jogador nascido no Brasil com passagem pelo maior número de clubes na elite do futebol italiano: oito, contra os sete de Sérgio Clérice e de um outro jogador, o zagueiro Felipe, que também se naturalizou italiano. Amauri também acabaria vestindo a camisa da Azzurra, e o recorde de times e artilharia segue pertencendo a Sérgio Clérice. O único jogador brasileiro que poderia superar Clérice em número de gols seria Luis Vinicio, que fez mais gols na Série A (155 contra os 103 de Clérice), mas não em toda a carreira na Itália – são 187 gols a favor de Clérice, contra 162 de Vinicio. Tendo chegado à Itália aos 19 anos, trocou de time sete vezes antes de partir para a América do Norte, aos 37 anos, encontrando fôlego para encerrar sua carreira internacional no Montreal Castors, no Canadá. No Castors, conquistou o título e terminou o campeonato como artilheiro da Liga Nacional de 1978, com 19 gols (totalizando 206 gols em toda a carreira no exterior). Tudo isso enquanto acumulava a função de treinador, num binômio técnico-jogador que viria a repetir em sua volta ao Brasil. Pasme.
O estrangeiro com maior número de gols da história vestindo a camisa de times italianos. Mais de 30 competições na Velha Bota, na Europa e na América do Norte, manchetes, escândalos, paixões e multidões… Um gringo, um vilão elegante… Escondido, sem voz, meio surdo… Ganha visibilidade agora.
El Gringo – O vilão elegante
Rodrigo Viana, versão em capa dura, Editora A Bola e o Verbo, 302 páginas, R$ 227 [vendas pelo abolaeoverbo.com, com frete grátis para todo o Brasil]. Lançamento em São Paulo dia 18/10, Retrôgol