O surgimento de Philippe Coutinho, o ‘Pato do Vasco’, na PLACAR
Então com 17 anos, revelação vascaína já estava vendida à Inter de Milão e era tratada como craque pelo técnico Dorival Júnior
A torcida do Vasco da Gama está entusiasmada com o retorno de Philippe Coutinho. Foram quase 15 anos de saudade da cria de São Januário, que em agosto de 2009 estampou a versão carioca da capa de PLACAR com uma comparação inusitada. À época, na esteira do sucesso de Alexandre Pato, a jovem revelação do Inter — que, como se sabe, não atendeu às altas expectativas da revista — a redação apostou em Coutinho como “o Pato do Vasco”.
O texto de Flávia Ribeiro e Bernardo Itri já inicia com um alerta: “Conheça Philippe Coutinho antes que ele vá embora! O garoto de ouro do Vasco parte para a Inter de Milão ano que vem e é mais um exemplo da nova onda que assombra nosso futebol: depois das galinhas, estamos perdendo os ovos…”. Era o início de um fenômeno que se tornou cada vez mais comum, vide os casos recentes de Endrick e Estevão, ambos do Palmeiras.
A primeira passagem de Coutinho foi breve, mas intensa. Ele chegou ao Vasco ainda criança e estreou como profissional em 2009, aos 16. Rapidamente ganhou espaço e ajudou o time a ganhar a Série B do Campeonato Brasileiro daquele ano. Antes de seguir rumo à Inter de Milão, fez 43 jogos pela equipe cruz-maltina, com cinco gols marcados e duas assistências.
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O prodígio vascaíno teve uma carreira de sucesso na Europa, especialmente pelo Liverpool. Também passou por Espanyol, Barcelona, Bayern de Munique, Aston Villa, e estava no AL-Duhail, do Catar. Foi um dos destaques da seleção brasileira na era Tite e disputou a Copa de 2018 (uma lesão tirou suas chances de ser convocado em 2022).
A reportagem de agosto de 2009 perfilou um adolescente bastante tímido. Então com cabelos grandes e encaracolado, Coutinho contou uma passagem divertida, durante um teste realizado na Inter de Milão, com o truculento zagueiro Marco Materazzi como adversário:
O técnico José Mourinho o colocou para participar de dois treinos. No primeiro, o menino meteu uma bola entre as pernas de Materazzi. “Quando cheguei no vestiário, o massagista disse que se eu fizesse isso de novo me pagaria o lanche a semana toda. E o Materazzi disse que se eu fizesse de novo, me mandaria para o hospital”, conta Philippe, rindo. Por via das dúvidas, não fez de novo. “Não tive a oportunidade.”
O técnico do Vasco era Dorival Júnior, atual técnico da seleção brasileira, que rasgava elogios ao meia. “Ele tem todos os requisitos para vir a ser um craque. Esse tipo de jogador tem que ser lapidado. Por isso gostaria que ficasse mais um pouco. Além disso, garoto não pode sair do berço de sua família tão cedo para um país estranho. Não é o caso do Philippe, que vai com os pais e tem uma estrutura por trás. Mas isso é raro”.
O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nossos arquivos, reproduz o texto na íntegra, abaixo:
O Pato do Vasco
Conheça Philippe Coutinho antes que ele vá embora! O garoto de ouro do Vasco parte para a Inter de Milão ano que vem e é mais um exemplo da nova onda que assombra nosso futebol: depois das galinhas, estamos perdendo os ovos…
Flávia Ribeiro e Bernardo Itri
Na tarde do dia 2 de julho, um adolescente de 17 anos entrou numa loja de conveniência de um posto de gasolina na Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, para comprar um picolé. Uma cena aparentemente comum. Não para a caixa da loja, Nina Souza, vascaína roxa, que soltou um grito: “Você é o Philippe! Eu sou Vasco e não perco um jogo em São Januário! Me dá uma camisa autografada?” Philippe Coutinho, que até então só jogara duas partidas como profissional, ficou vermelho e, sem saber ainda como lidar com o assédio que aumenta a cada dia, respondeu: “Meu irmão Cristiano é que pode te ajudar. Anota o celular dele”. Nina, toda satisfeita, avisou: “Vou ligar todo dia até você trazer minha camisa!”
Não foi a primeira nem a última vez que Philippe ficou envergonhado ao longo da conversa com a PLACAR, que incluiu a parada no posto. O menino de 3,8 milhões de euros não parece deslumbrado – e nem também preparado para tamanha responsabilidade. Sabe que a Inter de Milão pagou essa pequena fortuna ao Vasco em junho do ano passado, quando ainda tinha 16 anos e sequer treinava entre os profissionais. Sabe também que, a partir de 1º de julho do ano que vem, com 18 anos, vai para a Itália, onde receberá 4 milhões de euros por um contrato de cinco anos. Sabe ainda que outros grandes times europeus, entre eles o Real Madrid, o disputaram e que nem todo mundo assina contrato com a Nike aos 16 anos – Philippe já fez até campanha na televisão para a marca. Ao falar sobre todo esse interesse precoce em seu futebol, diz, tímido: “Fico feliz”. E devora o segundo picolé, com o apetite de um adolescente.
Philippe é hoje símbolo notório de um fenômeno que enche a cabeça de pais e meninos de sonhos e preocupa os profissionais dos clubes brasileiros. A busca de clubes europeus e de outros continentes por jogadores cada vez mais jovens no Brasil cresce a cada ano. Casos bem-sucedidos, como o dos gêmeos laterais Rafael e Fábio, ex-Fluminense, que foram para o Manchester United aos 15 anos, e agora o de Philippe são exceções, não regras – a maioria dos meninos que vão têm dificuldades.
Nascido e criado no Rocha, bairro da zona norte do Rio, filho de pai arquiteto e mãe dona-de-casa, o menino sempre contrariou as regras. Dona Esmeraldina já estava com 40 anos e tinha um filho de 14 e outro de 19 quando soube que estava grávida do futuro craque. “Desde que eu soube da gravidez, ele só me surpreende. A última foi a ida para a Europa”, diz a mãe. A descoberta do talento foi por acaso: aos 6 anos, quando jogava bola com os amigos no condomínio onde mora, a avó de um dos meninos, dona Didi, percebeu algo diferente. Alertou o pai de Philippe, José Carlos, que resolveu matriculá-lo numa escolinha. No ano seguinte, já federado na equipe de fraldinhas da Mangueira, foi artilheiro e campeão da Liga de Futsal do Rio. E logo estava no Vasco, onde passou os últimos dez anos.
O interesse europeu começou em 2007, quando Philippe se destacou na seleção brasileira campeã do sul-americano Sub-15. O primeiro clube a procurá-lo foi o Real Madrid, denunciado pelo Vasco à Fifa e à Uefa por assédio. Philippe ainda tinha 15 anos, e pela lei brasileira só poderia assinar seu primeiro contrato profissional aos 16. O clube de São Januário se resguardou. Quando Philippe atingiu a idade, em 12 de junho do ano passado, assinou contrato com o Vasco, que o negociou com a Inter no mesmo mês.
Philippe x Materazzi
Logo depois passou uma semana em Milão para fazer exames. O técnico José Mourinho o colocou para participar de dois treinos. No primeiro, o menino meteu uma bola entre as pernas de Materazzi. “Quando cheguei no vestiário, o massagista disse que se eu fizesse isso de novo me pagaria o lanche a semana toda. E o Materazzi disse que se eu fizesse de novo, me mandaria para o hospital”, conta Philippe, rindo. Por via das dúvidas, não fez de novo. “Não tive a oportunidade.”
Pela negociação, o meia (ou projeto de) fica no Vasco até 30 de junho de 2010 – vai ter ao menos um ano para jogar como profissional no clube. “Eu estava muito ansioso antes da estreia pelo Vasco. Entrei e a torcida gritou meu nome. Arrepiou. Fazer parte do time que vai ajudar o Vasco a voltar para a série A será muito legal”, diz.
Em um de seus primeiros jogos, na vitória contra o ABC por 3 x 0, Philippe foi abusado. Fez uma jogada de efeito e levou bronca do árbitro, que disse ter temido pela integridade física do atleta. A atitude do juiz foi retaliada pela comissão de arbitragem. Os vascaínos gostariam de ver jogadas como essa por mais tempo…
“Ele tem todos os requisitos para vir a ser um craque. Esse tipo de jogador tem que ser lapidado. Por isso gostaria que ficasse mais um pouco. Além disso, garoto não pode sair do berço de sua família tão cedo para um país estranho. Não é o caso do Philippe, que vai com os pais e tem uma estrutura por trás. Mas isso é raro”, diz o técnico do Vasco, Dorival Júnior.
Estranhos fora do ninho
Dorival está certo. A maioria vai para o exterior sozinho, sem saber a língua e os costumes. Pedro Beda, de 20 anos, era uma promessa do Flamengo. Destaque na base do clube, já treinava entre os profissionais, mas não via chance de jogar. “Quando subi, já havia oito atacantes no time. Eu não ia jogar nunca”, lembra-se. Foi quando apareceu a oportunidade de ir para o Heerenveen, da Holanda, ex-time de Afonso Alves, aquele convocado por Dunga. “No começo meu pai ficou comigo, mas depois foi difícil. Eu não falava inglês ainda e faz muito frio. Estava jogando no time B e no banco do time A. Hoje me arrependo de ter vindo. Dizem que, se eu tivesse ficado no Flamengo, teria tido oportunidade. Será? Eu queria mesmo era voltar para o Flamengo. Aparecer de novo”, desabafa Pedro.
Pouco aproveitado no seu clube, Beda foi emprestado ao FC Emmen, da segunda divisão holandesa, e será observado para uma possível volta por cima no Heerenveen. Seu empresário, Carlos Leite, conta que os holandeses se encantaram com o faro de gol do rapaz durante a Copa São Paulo de 2008. Mas vê a ida do garoto para o exterior com naturalidade. “Não havia espaço para o Pedro crescer no Flamengo naquele momento. Então foi uma oportunidade.”
Para Leite, o problema maior está na lei brasileira, pela qual um menino só pode assinar seu primeiro contrato com o clube ao completar 16 anos. “O grande problema é o garoto de 15, sem contrato, que sai sem o clube que investiu nele ser recompensado por nada. Tem muito empresário que vem de fora só atrás desses meninos.”
Outros garotos são oferecidos por seus empresários e acabam sofrendo um desgaste com as recusas. Em maio deste ano chegou a ser anunciada a venda do lateral-direito Dodô, de 17 anos, do Corinthians para o Manchester United, por 6 milhões de euros. Na verdade Dodô foi levado para testes no Manchester por seu empresário, Wagner Ribeiro, e não foi aprovado. Ao retornar, depois de quase duas semanas na Europa, estava fora de forma e abalado com a rejeição. “O Dodô é um jogador excepcional, que pode vingar com certeza. Só que temos que trabalhar tudo de novo com ele”, analisa Afonso Armonia, gerente de futebol da base do Corinthians.
A “febre” Coutinho
Técnico da seleção Sub-17, para a qual Philippe e Dodô são sempre convocados, Luccho Nizzo lamenta a pressa de lançar e vender talentos brasileiros. “Esses meninos estão fazendo o vestibular antes de passar pelo Ensino Médio. Então, ficam cheios de lacunas na formação. E, quando vão cedo demais para o exterior, o prejuízo para o futebol brasileiro é enorme, porque terminam sua formação em países que têm uma cultura de futebol diferente da nossa. Perdem suas características”, lamenta Luccho, que é mais um a diferenciar o caso de Philippe: “As pessoas no Brasil não têm ideia do prestigio que ele já tem. Nós vamos com a seleção jogar no Japão, Estados Unidos, Espanha, e em todo lugar tem gente gritando “Coutinho! Coutinho!”, tirando foto, entrevistando. Ele já é um pop star. Para o Mourinho pedir para contratarem um jovem de 16 anos… Ele é o melhor do mundo na posição e idade dele. E o Vasco está tendo consciência ao prepará-lo, tentando lançá-lo aos poucos”.
No caso de Philippe, ele não foi oferecido, foi disputado. Vai com os pais, para não ficar sozinho. Receberá um belo salário e está preparado para passar um tempo treinando nas categorias de base da Inter, se for necessário, antes de ser lançado. Enquanto isso, tenta se acostumar à fama e levar uma vida de adolescente comum. Quando não está jogando, vai ao cinema com a namorada. No resto do tempo se divide entre escrever no blog de seu site oficial (philipecoutinho.com.br), orkut, MSN e playstation, onde só joga soccer e, garante, ganha de quase todo mundo na concentração, “menos do Carlos Alberto”.
Bom aluno, Philippe está no terceiro ano do 2º grau no Colégio Vasco da Gama. Ainda tem aulas de inglês e italiano com professores particulares. E parece alheio à mudança de vida que vai ter daqui a quase um ano. “Não mudou nada na vida dele. A pressão é grande, mas sempre conversamos. Ele sabe que só vai chegar ao nível dos profissionais mais para a frente”, diz o pai, José Carlos. O menino parece aprender bem cada lição, dentro e fora de campo. Com 1,72m e 68 kg, admite que precisa ganhar corpo e experiência. E conta que, quando participou de sua primeira pré-temporada entre os profissionais, em janeiro, chegava ao fim de cada dia mancando.
“Minha perna ficava inchada, eu mal conseguia andar. Hoje já aguento mais.” Acredita que, assim, vai chegar mais preparado à Inter. O presidente do Vasco, Roberto Dinamite, concorda e lamenta: “Ele tem muita qualidade e talento. Só que vai mostrar isso lá fora”. Philippe prefere não pensar nisso agora. “Pode acreditar: só penso no Vasco. Quem fala na Inter é a imprensa, a gente lá em casa não. Mas é claro que jogar na Europa é o sonho de todo garoto.” O de Philippe, pelo menos, tem tudo para se tornar uma bela realidade.”