Há 20 anos, Grafite ‘salvou’ rival Corinthians pelo São Paulo; relembre
Gols do atacante tricolor contra o Juventus da Mooca livraram o Timão de rebaixamento no Paulista de 2004; à PLACAR, ele narrou como superou desconfiança da torcida
A última rodada do Brasileirão 2024 reservará uma situação inusitada, mas não inédita: uma eventual vitória do São Paulo (diante do líder Botafogo) beneficiaria diretamente um de seus rivais, o Palmeiras, que segue na luta pelo título. Num passado recente, o Tricolor passou por isso em casos envolvendo o Corinthians. A primeira teve o atacante Grafite, atual comentarista, como protagonista.
São Paulo e Juventus jogavam a última rodada da fase de grupos do Paulistão de 2004, em 14 de março daquele ano, no Anacleto Campanella, em São Caetano. Ao mesmo tempo, o Corinthians jogava diante da Portuguesa Santista no Pacaembu, correndo risco de ser rebaixado.
Com dois gols de Grafite, o Tricolor bateu a equipe da Mooca, resultando que acabou salvando o Corinthians, derrotado por 1 a 0 pela Briosa, de um inédito rebaixamento. Os gols acabaram se voltando contra Grafite, que acabara de ser contratado junto ao Goiás, e ainda sofria para se firmar.
Reportagem de PLACAR de dezembro de 2004 (leia a íntegra abaixo), quando o atacante já atravessava melhor fase, relembrou o episódio:
“A torcida pegava no pé dizendo que ele era corintiano e isso chateou muito, porque além de tudo ele sempre foi são-paulino. Desde pequeno ia ao Morumbi escondido de mim para ver o São Paulo jogar”, diz o pai, o metalúrgico aposentado Odair, que até hoje vive em Campo Limpo.
“Eu jogava mal e a torcida associava isso com o episódio do Corinthians. Isso me deixava cada vez mais nervoso e então eu rendia ainda menos”, afirma ele, ressaltando que chegou a pensar em mudar de clube.
Com gols, dedicação e títulos (Paulistão, Libertadores e Mundial de Clubes em 2005), Grafite conseguiu conquistar o carinho dos tricolores, mas o episódio não foi esquecido. No Brasileirão de 2010, o clube se viu novamente na condição de “ajudante” indireto do Corinthians. São Paulo e Fluminense jogavam pela 36ª rodada, com o Timão na liderança e o Tricolor carioca na perseguição.
Alguns torcedores do São Paulo foram ao estádio para “exigir” a derrota do time, com direito a uma faixa ameaçadora: “Quem será o novo Grafite?”. O São Paulo acabou derrotado por 4 a 1 e, com o empate do Corinthians contra o Vitória, o Fluminese arrancou para o título daquele ano.
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01/12/2004
Decifra-me. Ou te devoro
Vivendo um caso de amor com a outrora “inimiga” torcida são-paulina, o intrigante Grafite transita entre “grosso e craque”
Bruno Sassi
É sábado de manhã, final de treino do São Paulo. Na saída do campo, o garoto faz sentinela e pede a todos os jogadores – até aos que não conhece, por educação – para que lhe autografem a camisa. Tímido, não diz nada a nenhum deles. Apenas quando um passa escapam umas breves palavras: “Aê, Grafite, joga muito!”
Nem Grafite está acostumado a ser o cara que joga muito. Olha meio surpreso e devolve ao torcedor um sorriso cúmplice. Os dias de grosso acabaram. Até setembro, o drama dos são-paulinos era o fato de ele, o grosso, ser o companheiro de Luís Fabiano, que jogava muito. Agora não. Depois que o ídolo da torcida foi para o Porto, para o ataque do São Paulo ficar perfeito, falta só encontrar outro atacante que faça sua parte ao lado do Grafite, porque ele, sim, joga muito. Vai entender o futebol… Vai entender o Grafite…
Não é fácil de entender mesmo. A história de Edinaldo Batista Libânio, que nasceu em Jundiaí e viveu em Campo Limpo Paulista desde a infância, é diferente da maioria das que se encontra por aí. Ou você sabe de cabeça uma lista cheia de jogadores que só foram vestir a camisa de um time de futebol pela primeira vez aos 21 anos? “Joguei futebol de salão por cinco anos e sempre defendi as equipes de várzea da região, mas em clube mesmo só quando montaram o Sport Clube Campo Limpo Paulista”, diz ele. Era início de 2000 e o time disputaria a quinta divisão do Campeonato Paulista.
Grafite, que na época ainda era “Dina”, tinha profissão desde adolescente: tocava de casa em casa das 8h às 13h, vendendo saquinhos de lixo. Ganhava 8 reais por pacote e, em semana de sorte, faturava até 300 reais. Na várzea, os times lhe pagavam cerca de 100 reais por partida ” além de cestas básicas e algumas fraldas para Ana Carolina, fruto de um namoro quando tinha 17 anos.
Ele já havia tentado virar jogador três vezes: no Guarani, no Paulista de Jundiaí e no Juventus. Nada feito. Por isso é que, a princípio, quando o time profissional de sua cidade foi montado, Edinaldo relutou em abandonar o ganha-pão. Marcou um teste e não apareceu. Foi preciso que o buscassem em casa para se apresentar ao técnico Gérson Sodré, hoje auxiliar de Estevam Soares no Palmeiras. Valeu a pena. Com meia hora de treino, três gols de Dina, Sodré telefonou para o dono do clube, Heleno: “Olha, tem um negão aqui derrubando tudo”. Heleno acreditou e foi conferir ” até hoje é seu empresário…
Para ter Dina, o Campo Limpo precisou saldar 1200 reais em adiantamentos que equipes amadoras já haviam pago. O salário era de 300 reais “pouco para os gastos. Por isso, o artilheiro usava as folgas para continuar vendendo saquinhos.
De onde surgiu o apelido Grafite
Em um amistoso diante da Ponte Preta, no final de 2000, o atacante chamou a atenção do técnico Estevam Soares, que no ano seguinte seria contratado para comandar a Matonense. Num dia de treino de chutes a gol em Matão, a voz rouca de Estevam começou a gritar desde o meio-campo: “Grafite! Grafite!”. Dina, recém-chegado, continuou batendo a gol. Até que o técnico o chamou em um canto e decretou: “Você é a cara de um jogador meu, que tinha o apelido de Grafite. A partir de hoje, vai ser chamado assim. Além do mais, “Dina” é muito meigo”. Edinaldo diz que não gostou muito, mas não tinha escolha. Dias depois, ficaram prontas as camisas para o Paulistão. Atrás da sua (número 18), estava escrito “GRAFITE”.
As boas atuações geraram assédio de clubes de outros estados, e o atacante acabou indo jogar o Brasileirão pelo Santa Cruz. O dilema “craque ou grosso?” ganhou seu primeiro capítulo. “Passei uma fase dura. Perdia gol de tudo quanto era jeito. Contra o Corinthians, errei na cara do Doni e o presidente (José Mendonça) saiu gritando no vestiário que eu era muito grosso e que ia me mandar embora”. Quem acabou demitido foi o técnico Ferdinando Teixeira. O substituto, Muricy Ramalho, não quis nem ouvir a conversa de dispensar Grafite. “O Grafite é um cara que precisa de confiança, de alguém que lhe dê um empurrão, que diga que acredita nele. Foi o que eu fiz”, diz Muricy.
Turista acidental
O Santa foi rebaixado, mas para a ascensão de Grafite isso fez pouca diferença. Ele marcou quatro gols nos últimos 12 jogos em que atuou e, no início de 2002, recebeu propostas de Atlético-PR, Fluminense, Internacional e do Grêmio, para onde acabou indo. Depois de uma boa estréia, na segunda partida com a camisa tricolor rompeu o ligamento colateral do joelho. Quando voltou, foi mal e acabou retornando ao Santa Cruz.
A segunda passagem pelo Santa foi ainda mais proveitosa: fez 11 gols em 15 partidas pela Série B do Brasileiro, conheceu sua mulher, Kelly, e foi despertar interesse do outro lado do mundo, no LG Anyang, da Coréia do Sul. Com cinco meses de salários atrasados, não havia nem o que pensar.
Só que, da pior maneira possível, Grafite descobriu que Seul tem muito pouco em comum com Campo Limpo Paulista e, principalmente, que o futebol sul-coreano é bem diferente do daqui. Para começar, ele não era nem Dina nem Grafite: era “Bat” ” do sobrenome do meio, Batista. “O time tinha cinco técnicos. No dia em que um deles me mandou jogar de volante, me recusei”. Pela atitude, Bat foi afastado. Passou meses apenas treinando e só esperou o nascimento de sua segunda filha, Maria Cecília (é isso aí: o cara tem uma filha sul-coreana!), para aprontar as malas.
A chance de voltar veio no dia em que o telefone tocou e era Cuca, que acabara de assumir o Goiás, lanterna do Brasileirão de 2003. “Foi difícil convencer a diretoria a trazê-lo, mas eu sabia que ele ia nos ajudar”, diz Cuca, que o comandou em 20 jogos, nos quais ele marcou 12 vezes e foi responsável direto por boa parte dos 31 gols do artilheiro Dimba. Pelo desempenho, Grafite recebeu a Bola de Prata da Placar ” que divide espaço com os porta-retratos na sala de seu apartamento no bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo.
A partir daqui a história é mais conhecida. O São Paulo fez um pacote de contratações e, de início, a de Grafite foi uma das que deram certo: o que antes ele fazia para Dimba, passou a fazer para um centroavante melhor, Luís Fabiano. Logo em março, no entanto, a imagem diante da caprichosa torcida são-paulina começou a desmoronar.
Tudo porque o atacante resolveu fazer uma de suas melhores atuações, com dois gols, na vitória sobre o Juventus, pelo Paulistão. Por causa do resultado, o Corinthians, escapou do rebaixamento. “A torcida pegava no pé dizendo que ele era corintiano e isso chateou muito, porque além de tudo ele sempre foi são-paulino. Desde pequeno ia ao Morumbi escondido de mim para ver o São Paulo jogar”, diz o pai, o metalúrgico aposentado Odair, que até hoje vive em Campo Limpo.
A pressão da torcida engatilhou um processo rápido em que o atacante que jogava muito se transformou novamente em grosso. “Eu jogava mal e a torcida associava isso com o episódio do Corinthians. Isso me deixava cada vez mais nervoso e então eu rendia ainda menos”, afirma ele, ressaltando que chegou a pensar em mudar de clube.
“Tem jogador que só rende na base do grito, da cobrança. Mas ele, se for criticado e agredido, não funciona. Talvez o Cuca, pela liberdade que tinha, tenha cobrado demais ” até dentro de campo, ao pedir para ele marcar tanto. O resultado eram as más atuações e aquelas faltas, que não eram violentas, mas eram atabalhoadas, de coreografia”, diz Marco Aurélio Cunha, dirigente do São Paulo.
Começa a surgir, então, a dúvida que hoje assola os catedráticos do futebol. O que aconteceu para o atacante, “corintiano, grosso e indisciplinado”, virar o “ídolo e artilheiro são-paulino que joga muito”? Cuca se foi. O artilheiro Luís Fabiano também. Emerson Leão chegou e tratou de dar-lhe moral. “Ele não é um jogador típico de área, fazedor de gols, mas é rápido, sabe usar bem o corpo e está muito confiante”, diz o técnico, que tratou de entregar a Grafite a camisa 9, para oficializar sua condição de comandante do ataque.
Parece ter dado certo. No Brasileiro, em 18 jogos com a antiga camisa 7, ele marcou dois gols. Com a 9, foram 12 em 14 partidas. Mas a metamorfose de grosso para craque não foi de uma hora para outra. “Agora é que eu estou pegando o feeling”, diz Grafite, que passou quase três meses sem marcar. “Durante alguns jogos, ele atuou sem o Luís Fabiano, mas com o fantasma rondando. Quando o fantasma foi para o céu, as coisas começaram a acontecer”, afirma Cunha.
Rato de shopping
O fato é que Grafite parece estar em paz. Curte a vida com a mulher, a pequena Maria Cecília e a enteada Maria Luiza, de seis anos. Seu programa preferido em São Paulo é visitar o Shopping Iguatemi (o mais luxuoso da cidade) e torrar dinheiro em roupas (das lojas Iódice e Fórum), sapatos (Diesel e Ricardo Almeida), tênis (Nike e Puma), perfumes (Carolina Herrera e Hugo Boss) e, sobretudo, relógios (Diesel e Armani).
Em quase todo dia de folga, Grafite diz que vai até Campo Limpo visitar os pais, os dois irmãos mais velhos e a filha Ana Carolina, que mora com sua mãe. Sai tranqüilo na rua, distribui autógrafos e sorrisos e, quando entra em campo, além dos gols, tem carregado a bola, dado passes, feito a diferença. Joga muito mesmo esse Grafite recente.
“Não vou sair dando chapéu, dando caneta, passando de calcanhar. Sou mais do tipo trombador. O que acontece é que estou com confiança para tentar um drible ou um chute a gol, errar e depois tentar de novo. Sempre disse que não sou craque”, afirma ele. Não é, mas Marco Aurélio Cunha jura que seu telefone não pára de receber sondagens de empresários.
Com essa moral, é capaz de o grosso acabar na Seleção. Aos 25 anos, ainda tem muito o que render. “Não penso nisso hoje, acho que não é hora. Do jeito que tudo aconteceu comigo, estar em um grande clube já é lucro. Mas, analisando os jogadores que disputam vaga, acho que tenho condições de estar lá. Não sou um fora-de-série, mas mesmo a Seleção não é formada só por foras-de-série; e acho que tenho qualidades.”
Tem razão o jogador. Como todos os que se discute se são craques ou grossos, ele se encaixa em alguma das infinitas categorias intermediárias entre um e outro. O que ele é ou não é, portanto, pode-se discutir à vontade. Mas uma coisa está difícil negar: está jogando muito esse Grafite.
“Não vou sair dando chapéu, caneta… sou mais do estilo trombador. Sempre disse que não sou craque”
Grafite, em momento de auto-análise
Mudou (quase) tudo
Saiu Cuca, saiu Luís Fabiano… e entrou Grafite. Os números mostram a transformação do jogador, que até então tinha feito apenas quatro gols no Brasileiro e levado 11 cartões amarelos e dois vermelhos. Após a chegada de Leão, Grafite redescobriu o caminho do gol e deu um basta na indisciplina. Foram dez gols, apenas quatro amarelos e nenhuma expulsão.
O que explica tamanha diferença? “Antes, nossas jogadas se centralizavam no Luís Fabiano, e eu jogava mais aberto pela direita. Agora, estou mais solto, sem a obrigação de marcar o volante adversário, como no tempo do Cuca”. Mas e no Goiás, do mesmo Cuca? Também não era preciso marcar? “Era, mas naquela época dava tudo certo. E jogávamos diferente, no contra-ataque.”
Os comentaristas fazem eco à análise de Grafite: ele passou a fazer gols porque mudou seu posicionamento e não precisa mais se preocupar em marcar. Sem precisar marcar, passou também a tomar menos cartões. Fácil, né?
Que Grafite mudou de posição é óbvio. Antes, confinado pela direita, tinha enorme dificuldade para girar o corpo, limitado pela linha lateral do campo. Agora (cumprindo o papel que era de Luís Fabiano), tem liberdade para se movimentar e está sempre na área.
Ele perdeu a obrigação de marcar ? Não. É que agora, em vez de marcar o volante, ele precisa brecar um dos zagueiros. Grafite continua a fazer faltas a rodo ” quase em todos os lances em que tenta desarmar; continua também matando na canela e perdendo gols incríveis. Não virou craque, mas desde que a bola começou a entrar (nos 7 x 0 sobre o Paysandu), a confiança voltou. E confiança é o principal combustível (milagroso) do boleiro.