‘Maradona: de Diego a D10S’ relata idolatria do craque no Napoli
Há 40 anos, Diego Armando Maradona subiu as escadas do Estádio San Paolo para entrar na história como uma espécie de santidade do futebol. Livro narra esta e outras passagens da trajetória do argentino

Há quatro décadas, a temporada 1984/85 do futebol europeu teve início com uma chocante transferência: o prodígio argentino Diego Armando Maradona deixara o Barcelona sob grande turbulência para reforçar uma modesta equipe do sul da Itália – e o resto, como se sabe, é história.
PLACAR reproduz abaixo um trecho do capítulo que narra a extravagante chegada do camisa 10 ao Napoli no livro Maradona: de Diego a D10S, escrito pelo jornalista catalão Guillem Balague e publicado no Brasil pela Editora Grande Área.
Texto publicado originalmente na revista PLACAR, edição de número 1516, de outubro de 2024.

Corrado Ferlaino e o Stadio San Paolo
Enquanto as negociações entre Barcelona e Napoli estavam paradas, Jorge Cyterszpiler resolveu visitar a cidade de Nápoles para entendê-la e para conversar com algumas pessoas relevantes. Dino Celentano, diretor do clube italiano, sugeriu que ele deveria aproveitar sua visita de reconhecimento e se encontrar com Gennaro Montuori, notório líder da torcida organizada do Napoli. “Eu te encontraria amanhã, mas é o batizado do meu filho”, disse Montuori a Jorge, que acabou convidado para a cerimônia. Em uma sala reservada, longe do evento, Jorge fez um apelo a Montuori: “Diego quer o Napoli, mas precisamos do seu apoio. Você tem que causar um alvoroço”. O plano era fazer pressão bajulando Maradona publicamente, aumentando a expectativa das pessoas e criando condições favoráveis para a transferência.
Ao movimentar alguns peões, Cyterszpiler ganhou um pouco de tempo para criar uma estratégia mais elaborada. “De brincadeira, ele nos disse para jogarmos uma bomba em Barcelona”, contou Montuori ao diário El País. “Dissemos que aquilo era algo mais da Camorra; nós éramos os torcedores organizados da paz. Maradona tinha de vir por amor.” Montuori e alguns de seus amigos se reuniram em frente à casa do presidente Corrado Ferlaino na prestigiosa Piazza dei Martiri. Carros tomaram a praça, sinalizadores foram acesos e começaram os gritos de “Dieeeeego, Dieeeeego”.
Maradona ficou sabendo da notícia de que um torcedor havia se acorrentado ao estádio para garantir que a transferência acontecesse, e de outros que iniciaram uma greve de fome quando surgiram rumores de que as negociações poderiam ser interrompidas. “O Napoli não era um time grande, mas Maradona nunca soube”, disse Ferlaino, que comandou o clube de 1969 a 2000, no documentário Maradona Confidencial, de Jovica Nonkovic.
Nápoles era a terceira maior cidade da Itália em termos populacionais e o clube local, fundado em 1926, jamais conquistara um Scudetto. “Nós nos esquecemos de contar a Diego que tínhamos escapado do rebaixamento por um ponto na temporada anterior. Eu lhe disse apenas que os torcedores estavam esperando por ele de braços abertos, e que Nápoles seria sua segunda casa.” Enquanto as negociações se arrastavam e as semanas do mês de junho passavam rapidamente, diferentes gerações de familiares, dos avós aos netos, ficaram grudadas às telas de televisão na esperança de uma informação confiável.
As conversas nas varandas, nos bares e nas ruas giravam todas em torno da possível contratação. Os tifosi do Napoli juntaram dinheiro para aumentar a oferta feita pelo clube. “Nossos diretores se mudaram para a Catalunha por um mês”, contou Ferlaino, desta vez para o jornal As, de Madri. “No fim, o Barcelona nos enviou suas condições, bastante inflexíveis, por escrito, mas nós os surpreendemos e eles aceitaram. Então, mudaram de ideia e nos disseram que queriam manter Diego; porém, graças ao documento, não havia mais como voltar atrás.”
A poucas horas do fechamento da janela italiana para transferências de jogadores estrangeiros, o Napoli estava redigindo o acordo que tinha feito com Diego, embora ainda não tivesse o sinal verde do Barça. Antes de partir para se encontrar com Joan Gaspart em um escritório no aeroporto El Prat, em Barcelona, Ferlaino fez uma parada em Milão, onde deixou um envelope na sede da Federação Italiana com os documentos daquela possível transferência. Assim, apenas um telefonema seria suficiente para inscrever o argentino no Campeonato Italiano.
A Federação não sabia, mas o envelope estava vazio. Na noite de 29 de junho de 1984, Joan Gaspart e Corrado Ferlaino chegaram a um acordo pela venda de Maradona do Barcelona para o Napoli pelo equivalente a 7,5 milhões de dólares. A imprensa divulgou a notícia naquela noite mesmo, embora o anúncio oficial só tenha se tornado público no dia seguinte. O presidente do clube italiano, após confirmar a transferência por telefone junto à Federação, voltou ao hotel em Barcelona onde dormiria e, uma vez ali, foi ao bar tomar um uísque com gelo. O atendente do bar puxou conversa.
“Você é napolitano?” “Sou.” “Ah, hoje vendemos o Maradona para o Napoli por muito dinheiro. Ele está gordo; vai jogar um ano e depois não vai mais atuar.” O uísque revirou o estômago de Ferlaino. Na manhã seguinte, ele voltou a Milão e conseguiu, de alguma forma, trocar o envelope vazio por outro contendo os acordos com Maradona e com o Barcelona. “Intelectuais me criticaram dizendo que Nápoles era uma cidade pobre e aquele, um gasto indecente, mas era meu dinheiro e eu queria gastá-lo daquela maneira”, disse Ferlaino.
A maior parte dos 7,5 milhões de dólares veio de adiantamentos bancários, e os pagamentos feitos ao Barcelona foram escalonados ao longo de três anos. Nápoles era, sem dúvida, uma cidade com muitos problemas: falta de emprego e a escalada da violência da Camorra, a máfia napolitana. Porém, após a chegada de Maradona, houve uma mudança notável. Para começar, a receita com a venda de ingressos cresceu drasticamente para a temporada 1984/1985, e, em um ano, segundo Ferlaino, a transferência tinha sido quitada.
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“Em Nápoles, espero paz e respeito”, disse Maradona antes de deixar Barcelona. “Para mim, Nápoles era uma coisa italiana, assim como a pizza é italiana, e era isso o que eu sabia”, contou ele tempos depois. No dia 4 de julho, Diego pisou pela primeira vez em um San Paolo vazio, um estádio que precisava de carinho e uma pintura. Olhar um estádio sem público pode ser uma coisa sombria, mas Diego, caminhando pela arena decadente, sentia que estava voltando às suas origens. No vestiário, ele fitou Guillermo Blanco e Jorge Cyterszpiler e disse, satisfeito: “Isto me lembra o Argentinos Juniors”.
Ferlaino logo levou Diego para a vizinha ilha de Capri, onde, atracado à marina, estava seu iate. No dia seguinte, um helicóptero os trouxe de volta a Nápoles. Maradona deixou suas coisas no quarto do luxuoso Hotel Royal, onde Pepe Gutiérrez, único jornalista a voar de Barcelona com o jogador, o encontrou sentado na cama praticando seu italiano. Alguém havia escrito em um pedaço de papel: “Napolitani, sono molto contento…”. Ele ria do próprio sotaque. Pepe passou o telefone a Diego, e de sua cama ele entrou ao vivo na rádio espanhola Antena 3. Uma escolta formada por três carros de polícia acompanhou o veículo que conduziu Maradona pelas ruas de Nápoles para sua apresentação oficial.
Mais de 70 mil ingressos tinham sido vendidos e o estádio estava praticamente lotado. Diego pediu para deixarem as crianças entrarem de graça. Fernando Signorini também estava a caminho do estádio San Paolo, em outro carro, junto com Don Diego. À medida que avançavam pela cidade velha, as ruas ficavam cada vez mais estreitas, via-se o lixo acumulado nas calçadas e as fachadas de edifícios com as pinturas descascadas. “Em que buraco nos enfiamos; isto é pior do que Buenos Aires!”, pensou, em voz alta, Don Diego. “Para onde você trouxe meu filho?”
“José Alberti, querido amigo argentino que morava havia muito tempo em Nápoles, e que estava conosco no carro, se virou para Don Diego e disse: ‘Don Diego, você tem razão. Mas, se ficar um ano aqui, não vai querer sair daqui nunca mais’”, recorda-se Signorini. Já no vestiário, Diego vestiu uma calça azul clara e uma camiseta branca, da Puma. A caminho do gramado, passou por um longo túnel antes de chegar à escada, onde um raio de luz iluminava o corredor. Diante de um pequeno nicho dentro do qual havia uma Madonnina, uma estátua da Virgem Maria, Maradona parou — não seria a última vez que ele rezaria para ela. Prestes a sair, cercado por fotógrafos, Diego beijou Claudia, abraçou Jorge e, por fim, subiu os degraus sentindo a onda de felicidade que tomava o estádio, uma resposta à movimentação percebida dentro do túnel.
Dezenas de outros fotógrafos o esperavam à beira do campo, lutando por cada pedaço de grama disponível. No meio da escadaria, Maradona parou. “Os napolitanos são dotados de uma paixão inata”, explica Néstor Barrone. “As idiossincrasias do futebol argentino são parecidas com a do napolitano. Os argentinos são uma mistura de espanhóis com napolitanos, um toque da arrogância dos franceses e algo da imponência dos ingleses. Isso tudo forma um argentino, uma mistura estranha e inebriante. Em particular, os napolitanos têm muito em comum com alguém de Buenos Aires; são espertos, barulhentos, e entusiasmados, até malucos, por futebol. Naquele dia, eles se mostravam eternamente agradecidos, uma vez que não podiam acreditar que um clube do sul [da Itália] recebera um presente que, normalmente, estava reservado aos poderosos times do norte.”
Maradona estava prestes a sentir, como jamais havia ocorrido, sua capacidade de atrair uma multidão, o que fez com que suas emoções fossem levadas ao extremo. As pernas, pesadas como sacos de cimento enquanto ele subia as escadas, começaram a ficar mais leves à medida que ele sentia a expectativa de uma Nápoles à sua espera. Diego estava longe de casa, em um lugar estranho, e por isso o impacto foi mais marcante e duradouro. A cidade estava pronta para venerá-lo como seu santo, e Diego implorava por aquela devoção.
Maradona deu mais um passo e nada mais poderia pará-lo, nem mesmo um torcedor que lhe ofereceu um cachecol do clube. Quando sua silhueta surgiu no túnel, o estádio explodiu. Em pé, sobre um tapete com as cores do Napoli, ele levantou os braços. “Buonasera napolitani, sono molto felice di essere con voi” (“Boa tarde, napolitanos, estou muito feliz de estar aqui com vocês”). Ele havia passado no teste e a multidão foi à loucura. Conforme o barulho da arquibancada aumentava, o estrangeiro sentia-se cada vez mais em casa. Com um sorriso que em nenhum momento abandonou seu rosto, cercado por policiais uniformizados e à paisana, Diego se aproximou das arquibancadas e mandou beijos aos torcedores.
Maradona: de Diego a D10S
Guillem Balague
Editora Grande Área, 383 páginas
R$ 99,90
À venda no site http://www.editoragrandearea.com.br/