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O Comentarista do Futuro ícone blog O Comentarista do Futuro Ele volta no tempo para dar aos torcedores (alerta de!) spoilers do que ainda vai acontecer

Futebol não vai ser assim

Comentarista do Futuro vê Botafogo 24 x 0 Mangueira e tenta convencer torcedores de 1909 que, no futuro, placares e o mundo serão bem diferentes

Foi um domingo e tanto! Ontem juntei-me aos 224 entusiastas do futebol que trocaram as provas de remo no Pavilhão da Enseada de Botafogo por outra atração esportiva do bairro, o Estádio Voluntários da Pátria, onde o Botafogo Football Club disputa seus jogos. Sim, pra quem não sabe, existe outra agremiação homônima do Clube de Regatas. E saibam que as duas _ alerta de ‘spoiler!” _ vão se unir, mas só daqui a 33 anos, 1942, nascendo o Botafogo de Futebol e Regatas. Não é só o que virá. Em 2021, de “quando” venho, o futebol, acreditem, será muito mais popular que o remo nas cercanias cariocas e em todo o planeta. E sinto dizer que placares como o de ontem, 24 x 0 para os alvinegros, não serão o habitual do esporte. Institutos de pesquisa vão apontar que mais de 50% dos resultados ficarão entre o 0 x 0 e o 2 x 2. Assim, quem assistiu à vitória botafoguense testemunhou aquela que, em 2021, ainda será a maior goleada já aplicada no futebol brasileiro. Matemática básica: como o certame constitui-se de dois tempos de 40 minutos (em breve serão 45!), tivemos um gol a cada 200 segundos! Mal dava tempo pra levantar das arquibancadas de madeira e ir beliscar alguma coisa, por mais que a oferta ainda seja incipiente. No futuro, ora vejam, ali existirá um grande mercado, a Cobal, com bares e restaurantes de todo tipo. Mesmo assim, achei esta tarde de 1909 – sem flanelinhas, trânsito e outros males que vocês ainda não conhecem – mais agradável que as de 2021. Dá de 24 a zero!

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Antes do “passeio” botafoguense, iniciei o meu próprio pelo Centro da cidade, pois fiz questão de aterrissar a Máquina do Tempo num ponto que me permitisse flanar pelo que ainda resta do Morro do Castelo – a propósito, alerto e rogo a todos que se mobilizem desde já para impedir sua demolição total, que acontecerá nos anos 20. Optei pela barca que liga o Cais Pharoux – ano que vem, rebatizada de Praça XV – a Botafogo, bucólico bairro que antes do fim do século será invadido por escolas e automóveis. Preciso confessar que ao chegar ao “monumental” Estádio Voluntários da Pátria, inaugurado há um ano e 20 dias, deu ‘medinho’ de subir as arquibancadas, sentimento logo substituído pela emoção de ver os pioneiros atletas entrando no gramado, ou melhor, no campinho. Nada de números nas costas, calçados coloridos ou cortes de cabelo da moda, todos apenas trajados com longos calções e suas grossas casacas: o preto e branco do Botafogo; e o rubro-negro do Sport Club Mangueira. Voltarei ao Século XXI feliz e orgulhoso por ter visto de perto esta associação futebolística, que tornar-se-á (é assim que se escreve hoje, né?) imortal não por seus feitos, mas pela coleção de fracassos e vexames de sua história. Até 1927, quando, sinto informar, fechará as portas da Rua Desembargador Izidro, terá sofrido 96 derrotas (8 empates e apenas 14 vitórias) em 118 jogos oficiais. Só ‘bola fora’!

[abril-olho]Gilbert Hime assinalou 9 tentos, marca que seguirá imbatível no futebol brasileiro até 1976, quando Dario (ou Dadá Maravilha), um sujeito desengonçado mas bom de fazer gol, marcará dez vezes em um só jogo[/abril-olho]

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Revelo a todos que essa turma da Tijuca, quase todos operários da fábrica Chapéus Mangueira, ficará em último lugar nesta quarta edição do Campeonato do Distrito Federal (futuro Campeonato Carioca), pois novas derrotas o levarão a abandonar a disputa antes do fim, levando W.O. nas rodadas finais. Nos próximos 18 anos, vai figurar em mais 10 competições aqui na capital, sempre escalado no papel de “saco de pancadas”. Cansados de apanhar, os “mangueirenses” vão procurar outras atividades que possam ‘dar samba’. Em 1928, aliás, nascerá no morro de mesmo nome uma Escola de Samba com sina de campeã. A vocação do Sport Club Mangueira para a derrota é tamanha que até o título de “Pior time do Mundo” ele vai perder para uma associação de Pernambuco, o Íbis, a ser fundado em 1938. Mesmo com a saga de derrotas dos cariocas continuando a ganhar de goleada da do rival.

Foi mesmo um domingo de recordes. Além do “placar elástico”, o goleador-mor da partida, Gilbert Hime, assinalou 9 tentos, marca que seguirá imbatível no futebol brasileiro até 1976, quando Dario (ou Dadá Maravilha), um sujeito desengonçado mas bom de fazer gol, marcará dez vezes em um só jogo. O feito dar-se-á (tô ficando bom nisso!) em goleada de 14 x 0 do Sport de Recife (já em atividade) na Associação Atlética Santo Amaro, que virá ao mundo do futebol em 1950, tornando-se outro forte candidato ao título de pior entre os piores. Mas com um trunfo louvável: enquanto o Mangueira chegará ao fim fundindo-se ao Flamengo – sim, isso mesmo, daqui a três anos o clube de regatas do Morro da Viúva entra nesta brincadeira de chutar bola –, o Santo Amaro vai acabar, em 1994, sendo vendido a uma rede de farmácias. Gol de Pernambuco!

O Estádio Voluntários da Pátria, palco do jogo, onde hoje fica a Cobal
O Estádio Voluntários da Pátria, palco do jogo, onde hoje fica a Cobal

Voltando ao Gilbert Hime, o rapaz vem se destacando no ofício de estufar as redes. Como alguns sabem, foi o artilheiro do alvinegro no primeiro Campeonato do DF, em 1906. Ano que vem transfere-se pro Fluminense, sério, mas não terá o mesmo sucesso. Mesmo a família estando entre os fundadores do clube, no Largo dos Leões, a saga dos Hime com a bola não vai longe. O irmão, Norman Henry Hime, já tem história com o manto alvinegro, mas no futuro os Hime famosos terão mais habilidade com as mãos, em pianos. O primeiro a mostrar talento nas teclas ainda tem apenas 14 anos e no futuro criará vacas leiteiras lá pras bandas de Jacarepaguá. O neto, de nome Francis também, no fundamento “composição”, var ser um “matador”. Só golaço!

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Nem sei bem o que dizer sobre a partida, ainda mais imaginando que grande parte dos senhores e senhoras, queridos leitores de 1909, sequer já assistiram a um confronto de futebol. Pois saibam que não só o remo mas também o turfe sucumbirá ao esporte, que já dá sinais de que pode vir a ser, e será mesmo, a grande paixão nacional. Clubes que, assim como o recorde botafoguense, atravessarão o século brilhando no futebol estão nascendo em todo o país. Mês passado, por exemplo, foi fundado, na gloriosa província do Rio Grande do Sul, o Sport Club Internacional; ainda este ano, em outubro, será a vez do Coritiba Foot Ball Club, no Paraná. Para que possam ter uma ideia exata do crescimento do esporte, revelo que o hoje badaladíssimo e bem frequentado Prado Itamaraty, pista de corridas de cavalo do Derby Club, no início dos anos 50 dará lugar a um estádio para a prática do recém-chegado esporte bretão.

Aos torcedores das duas equipes que se enfrentaram ontem, trago do futuro notícias díspares. O Onze da Mangueira, como já ‘entreguei’, seguirá fiel ao seu destino. Já no próximo confronto, vai tomar 8 gols do América. Em 1912, na partida que oficializará a chegada do Flamengo ao futebol, goleada de 15 x 2 (ou 16 x 2, haverá controvérsia) pro novo rubro-negro da cidade (em 2021, esse ainda será o maior placar atingido pelo clube da Praia do Russell). Ao Botafogo, o porvir reserva história tão bela que vai justificar o apelido, ou epíteto, que receberá a partir do ano que vem: “O Glorioso”. Curiosamente, será pródigo também em deter outras marcas além da “maior goleada”. Os botafoguenses chegarão a 2021 com a mais longa série invicta da história do futebol nacional (52 jogos, entre setembro de 1977 e julho de 1978), e como o clube que mais terá cedido jogadores cedidos à Seleção Brasileira (equipe que no futuro serão formadas com os melhores do país) para disputar Copas do Mundo (sim, existirão torneios entre países). Serão 47, ao todo. Mas deixei o futuro com os alvinegros amargando um rebaixamento para a Segunda Divisão, patamar que existirá no país, abaixo da elite do futebol. E será a terceira queda do clube, todas no próximo século. Vai doer mais que um 24 x 0.

É mister registrar nesta resenha que o Sport Club Mangueira comportou-se de forma distinta no certame de ontem. Estar presente ao evento me permitiu também derrubar alguns mitos que atravessarão o século sobre a implacável goleada. Dirão, por exemplo, que Luiz Guimarães, o guarda-metas do clube tijucano não se atirou nas bolas chutadas ao gol por não querer se sujar numa poça a sua frente. Mentira! Ao fim do jogo, deixou o campo lembrando um siri enlameado. Também correrão notícias de que, com a baixa presença de atletas ao estádio, diretores e funcionários do clube teriam vestido a camisa e entrado em campo para a disputa. Pura intriga da oposição! De fato, pela ausência de muitos, o Onze mangueirense foi obrigado a atuar com apenas 10 jogadores, mas eram todos atletas do elenco. Ou seja: foi 24 x 0 pra valer, nem mais nem menos, e o placar histórico vai cumprir 112 anos sem ser superado.

A notícia certamente não chegou aqui, mas há 14 anos, em 1885, em jogo pelo campeonato escocês de futebol, o clube Arbroath – mesmo tendo sete tentos anulados – sapecou um 36 x 0 no Bon Accord por 36 a 0. Outro recorde, este mundial, que chegará intacto a 2021. Os jogos que mais se aproximarão desse placar serão um 35 x 0 aplicados pelo Dundee Harp no Aberdeen Rovers – espantosamente no mesmo dia, campeonato e país do recordista – e um não menos desagradável 31 x 0 que acontecerá no distante 11 de abril de 2001, em partida classificatória para a Copa do Mundo (já explicada acima) de 2002. Vitória esmagadora do time que representará a Austrália sobre a inofensiva Samoa Americana. No mesmo ano, teremos um inacreditável 149 x 0, em jogo pelo campeonato de Madagascar. Mas a vitória do AS Adema sobre o Stade Olympique de L’Emyrne (SOE) não será reconhecida por um motivo simples: os próprios jogadores do SOE é que chutarão contra a sua meta, em protesto contra um pênalti duvidoso que será marcado contra eles na rodada anterior. Acontecerão ainda, na Iugoslávia, placares de 134 x 1 e 89 x 0, mas ambos comprovadamente combinados pelos adversários e, portanto, sem validade.

Ontem não faltaram gols; no futuro, não faltarão mitos e versões pouco comprovadas a respeito de goleadas antológicas. Em 2015, um pesquisador virá a público apresentando indícios de que a equipe do Nacional, clube amazonense que será fundado daqui a 4 anos, virá a igualar, em 1922, os 24 x 0 em vitória sobre o Brasil Sport. Não foi encontrado registro sobre os autores dos gols. Em 2018, um 28 x 0 vai sim acontecer – no campeonato de futebol feminino da Bahia, em triunfo do Vitória sobre o Redenção. Outras muitas histórias são deliciosas. Como um certo 49 x 0 na Inglaterra, em 1988, quando o Drayton Grange Colts vai ‘atropelar’ o Eldon Sports Reserve. Detalhe: todos os jogadores do Drayton marcarão gols, inclusive o goleiro. Também no país que inventou o futebol, em 1976, a equipe juvenil Midas FC, dirão, vai enfiar 59 x 1 no Courage Colts. Com um detalhe também: de virada! Com histórias assim, algum de vocês, queridos leitores de 1909, ainda tem dúvida de que o futebol será o mais querido esporte do mundo?

PRA CONHECER MELHOR O SPORT CLUB MANGUEIRA

https://www.youtube.com/watch?v=IC-Twyyz5yU&ab_channel=NSF-NonSenseFootball 

FICHAS DOS JOGOS

BOTAFOGO 24 X 0 MANGUEIRA

Data: 30 de maio de 1909

Estádio: Rua Voluntários da Pátria, bairro de Botafogo, Rio de Janeiro Juiz: Antônio “Nico” Miranda

Público: 224 pessoas

Renda: desconhecida

Botafogo: Coggin, Raul Rodrigues e Dinorah; Rolando de Lamare, Lulú Rocha e Edgard Pullen; Henrique Teixeira, Flávio Ramos, Monk, Gilbert Hime e Emmanuel Sodré Técnico: Ground Committeé (nome bacana de um punhado de gente que dava pitaco, treinadores só apareceram nos anos 20)

Mangueira: Luiz Guimarães, José Perez e Carlos Mongey; Victor, Jonas Cunha e Justino Fortes; Alberto Rocha, João Pereira, Menezes e Maranhão (o time atuou com 10 apenas, os que apareceram pra jogar)

Técnico: Ground Committeé

Gols: Gilbert Hime (9), Flávio Ramos (7), Monk (2), Lulú Rocha (2), Raul Rodrigues, Dinorah, Henrique Teixeira e Emmanuel Sodré. A ordem dos gols: Gilbert Hime, Gilbert Hime, Gilbert Hime, Monk, Dinorah, Gilbert Hime, Gilbert Hime, Flávio Ramos, Flávio Ramos, Flávio Ramos, Gilbert Hime, Emmanuel Sodré, Gilbert Hime, Raul Rodrigues, Lulú Rocha, Gilbert Hime, Flávio Ramos, Gilbert Hime, Monk, Henrique Teixeira, Flávio Ramos, Flávio Ramos, Lulú Rocha e Flávio Ramos.

 

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Escreva para o colunista: ocomentaristadofutu[email protected] 

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