Publicidade
Publicidade

Uma doença a ser extirpada

O treinador da seleção de vôlei revela ter descoberto um tumor maligno no rim, já extraído, no auge das investigações de roubalheira da confederação, mas diz que não deixará o cargo, em protesto

Aonde mais faltava chegar a onda de escândalos de corrupção no Brasil? Ao vôlei, talvez. Chegou. Relatório divulgado pela Controladoria-Geral da União (CGU) revelou o desvio de pelo menos 30 milhões de reais do dinheiro de patrocínio durante a gestão do presidente da Confederação Brasileira de Vôlei, Ary Graça, entre 2010 e 2013. Graça, que estava no comando da CBV desde 1997, renunciou ao cargo logo depois de o canal por assinatura ESPN revelar os primeiros desmandos. Os dirigentes ainda tiveram a ousadia de não repassar integralmente prêmios direcionados aos atletas e às comissões técnicas. A única boa notícia depois da eclosão do escândalo foi a decisão do Banco do Brasil, o principal apoiador do vôlei brasileiro, de cancelar o contrato de patrocínio, que era renovado sem interrupções desde 1991. Houve algum alívio também com a reação indignada dos jogadores da Superliga brasileira, que entraram em quadra com nariz vermelho de palhaço e faixa de luto nos braços.

Publicidade

Ninguém melhor do que Bernardo Rezende, de 55 anos, o Bernardinho, treinador da seleção masculina e da equipe feminina da Unilever, dono de seis medalhas olímpicas, para cutucar as feridas do escândalo da CBV. Bernardinho recebeu VEJA no escritório de advocacia de seu pai (atuante, aos 84 anos), no Rio. Só diminuiu o ritmo da fala acelerada uma única vez em duas horas de conversa: quando o assunto foi sua saúde, supostamente abalada pelos recentes dissabores.

O senhor também se sente um palhaço? Eu me sinto traído, isso sim. As pessoas dizem que estou por trás dessas acusações. Não estou por trás de nada. Primeiro, porque, se tiver de fazer algo, faço pela frente. Muito mais que revoltado, hoje estou triste.

Publicidade

Por quê? O vôlei é um esporte lindo. Dediquei boa parte da minha vida a uma causa e, com base em todas essas evidências de corrupção, posso dizer que algumas pessoas se beneficiaram de um trabalho honesto.

Quem são essas pessoas? É um grupo, não foi apenas o Ary Graça. Mas em 2012, quando soube que ele estava pleiteando a candidatura à presidência da Federação Internacional, fui ao seu gabinete pela primeira vez e disse: “Doutor Ary, o senhor hoje dirige a maior confederação esportiva do país fora o futebol. Quebre esse sistema de poder, profissionalize esse sistema”. Ele dirigia uma “empresa” com 100 milhões de reais anuais de faturamento e tinha muito que fazer ainda no esporte brasileiro. Ele não me deu ouvidos.

O senhor sabia de algo, ou tinha desconfiança de que, ao mesmo tempo em que as seleções subiam ao pódio, havia roubo? Foi só em outubro de 2013 que eu soube de um problema que tinha acontecido em Volta Redonda. A equipe da cidade havia sido impedida de disputar a Superliga. Existe uma norma segundo a qual o time que estiver inadimplente não pode participar do campeonato, e era esse o caso. Ao que consta, houve uma chantagem por parte dos dirigentes do Volta Redonda. Se fosse vetada a participação deles na competição, tornariam público uma operação irregular realizada junto com os dirigentes da CBV. Pensei: “Não é possível que vão ceder a uma chantagem dessa natureza”.

Publicidade

E o que o senhor fez? Voltei a Saquarema, a sede da confederação, e comuniquei a minha insatisfação: “Eu sei disto aqui e, se vocês não consertarem, amanhã sou demissionário e vou dizer por que estou saindo”. Aquilo me fez muito mal, apesar de garantirem que estavam cancelando os contratos sob suspeita. Não sabia se iria ao Japão para disputar a Copa dos Campeões. Acabei viajando, mas visivelmente triste, incomodado. Não queria representar aquelas pessoas.

O senhor acha justo que Ary Graça continue ocupando o posto de presidente da Federação Internacional? Em se comprovando as denúncias, quem estiver vinculado aos malfeitos, aos desvios, às formas erradas de gerenciamento não pode continuar a atuar como dirigente. E que se cumpra a legislação existente. A quase certeza da impunidade é o que, em minha opinião, gera tudo isso, toda a corrupção.

Não é vergonhoso ver o dinheiro de prêmios aos atletas surrupiado? Os dirigentes do voleibol afastaram o esporte da sua essência, de valores como trabalho em equipe e disciplina. Acabou virando um balcão de negócios. Isso fere muito, e os jovens estão feridos. Numa época, em 2007, cheguei a brigar com os jogadores. Antes do Pan do Rio de Janeiro eles queriam uma premiação que não havia sido estipulada. Achei que não era correto e defendi a instituição, imaginando que realmente não houvesse como atender. Hoje eu peço desculpas publicamente porque fui enganado. Havia dinheiro, sim.

O Murilo (Endres, atleta da seleção) também disse ter se sentido traído por ter “dado joelhos, ombros e tornozelos” ao vôlei brasileiro… Pois é, senti que dei minha saúde. Ainda não sei que desdobramento vai ter, mas faço aqui uma revelação. Cheguei do Mundial na Polônia e num exame de rotina descobri um tumor no rim direito. Nele havia células malignas. Extirpei o tumor e estou aparentemente bem. A cirurgia completou três meses. Fico ruminando essa história, porque há um ano e dez meses não tinha problema de saúde. Mas a irresponsabilidade vai te maltratando e maltratando. O médico do Hospital Sírio-Libanês que me atendeu disse assim: “O que tirei do seu corpo é uma metáfora do que deve ser ex­traído do país”. A sensação que tenho hoje é essa mesmo: tudo o que está acontecendo com o vôlei é uma pequena célula doente de um organismo. Pode haver mais.

Deu vontade de abandonar tudo?

É claro.

Continua após a publicidade

E por que não abandonou? Pelos rapazes, pelos atletas. Ao contrário do que muitos dizem, não tenho essa relação patológica com o poder. Se pudesse ficar só com a equipe feminina da Unilever, ficaria. Não vou deixá-los agora, pela relação de cumplicidade.

O escândalo da CBV é surpreendente? Não. No Brasil, em quase todos os setores, o sistema de poder precisa ser mais transparente. As pessoas precisam ser profissionais, dignamente remuneradas. Há muitos anos, ouvi uma coisa do meu pai que é a base de tudo para mim. Ele teve um professor, San Tiago Dantas, um dos maiores juristas que este país já conheceu. Um dia ele chegou para dar aula e disse que o tema seria civismo. Ele dizia que a base de tudo, a essência, é o saber. O saber pode te levar ao ter. O saber pode te levar ao poder. Não é desejável que o ter leve ao poder. Mas é inadmissível que o poder te leve ao ter. E meu pai continua me repetindo essa aula aos 84 anos. Não existe nada mais atual que a lição do San Tiago Dantas.

Em um de seus livros, o senhor faz referência a uma frase que ouviu de Marcel Telles (um dos sócios da Ambev): “Os líderes são os guardiões dos valores de suas instituições”. O Brasil passa por uma crise de liderança? Nós precisamos de integridade na liderança. O líder não permite transgressões. E aqui nós vivemos no país das transgressões. O que é a educação? Educar é transmitir valores. Na ausência de uma liderança, quem é que instaura os valores em uma sociedade? O traficante, o bandido. Aqui a transgressão começa claramente. As pessoas não respeitam um sinal vermelho no trânsito. Se não houver um pacto no sentido de as pessoas entenderem que isso é errado, não há solução. E eu falo em liderança nos mais diversos níveis – na pequena comunidade, na sua igreja, na sua família. Se as pessoas não inspiram confiança em suas lideranças, como cobrar delas valores? Essa é a maior crise do país.

Falta ética aos nossos líderes? Estamos no pior momento da nossa história em termos éticos, com todos esses “ões”: mensalões, petrolões. Mas vou no clichê: toda crise é uma grande oportunidade. Acho que é a hora da mudança efetiva, o Brasil tem de dar um basta. É a hora de as pessoas não aceitarem, não se calarem. Para que a gente acabe absolutamente com esse sentimento de impunidade, de vale-tudo, de que os fins sempre justificam os meios.

Seu nome chegou a ser citado como candidato a governador do Rio, pelo PSDB. Por que desistiu? Não me sentia totalmente capaz. Embora até hoje as pessoas me cobrem na rua por eu não ter me candidatado. E, depois, acho que é preciso certo dom para isso. E não sou um ser muito político. Se alguém morrer na porta de um hospital, vou me sentir pessoalmente responsável por isso. Isso, na minha cabeça ingênua, não pode acontecer. Iria ficar realmente mal, iria lá. Só que não se pode fazer isso com milhões de pessoas. Outra razão que me fez refutar a campanha política foi ter lido o livro do Antônio Ermírio de Moraes, uma pessoa admirável. Tinha um carinho enorme por ele. No livro ele relata sua experiência na política, e pensei comigo: “Como é que euzinho posso querer ter a capacidade de enfrentar esse monstro se esse super-homem não conseguiu?”.

O senhor não vai treinar times de vôlei eternamente. No futuro, quando parar, política não é um caminho? Quando o Aécio passou para o segundo turno, levantou-se a possibilidade de eu chefiar o Ministério do Esporte. Acho que participar de uma equipe, seja ela da natureza que for, prover alguma coisa em prol do esporte e da educação, é uma coisa que me atrai muito, porque é o que tento fazer atualmente. Houve uma pressão grande para que eu aceitasse. Seria difícil dizer não. Mas, quando chego em casa, a Fernanda (Venturini, ex-jogadora de vôlei) me pergunta se não vou viajar com a família. Eles me cobram, começa a me doer um pouco mais. E o susto que tomei há três meses me fez pensar: “Caramba, minha vida pode ser interrompida”. Não que eu me arrependa das minhas escolhas, fiz aquilo que meu coração mandou. Mas me dói um pouco também. Vou de lá pra cá, mas e minha família? E minha vida um pouquinho? É muito trabalho, muita solicitação. Eu me doo tanto para os outros, me aperta o coração quando paro e penso nos meus. Mas quero deixar claro que não sou salvador da pátria, não sou nada disso. Sou apenas um profissional, e quero fazer as coisas da melhor maneira possível. Vou continuar lutando. ​

O Brasil ainda tem o melhor vôlei do mundo? Neste ano, o de maior contestação, o Brasil foi vice-campeão do Campeonato e da Liga Mundial no masculino. O feminino, idem, também foi bem. Ou seja, apesar de toda a crise, o trabalho feito dentro de quadra é forte. Existe uma base organizacional, mas ela começou a ser corroída.

O que esperar da Olimpíada do Rio dentro das quadras? Esse é meu maior medo. Fizemos uma reunião no Comitê Olímpico Brasileiro com muitos treinadores, de diversas equipes, sobre como blindar nossos atletas de questões externas. É uma perda de foco. Nós temos uma missão extremamente difícil, que é conquistar a medalha olímpica dentro de casa. Pelo equilíbrio de forças que existe no âmbito mundial, já seria difícil. Com elementos que possibilitam ansiedade, a tarefa se torna hercúlea.

E fora delas? O senhor está otimista? Digamos que não estou totalmente pessimista. Espero que as promessas se concretizem, em termos de mobilidade urbana, infraestrutura, um legado verdadeiro. E que a lição do Pan de 2007 esteja servindo de exemplo. Pelo que pude ver, teremos estruturas temporárias. Se Londres usou esse tipo de alternativa, vamos ter a pretensão de fazer diferente? Mas há desafios, como a Baía de Guanabara. Fico preocupado com o pessoal do Torben Grael e com o Robert Scheidt. Imagine se eles encalham em um lixo qualquer. Seria um desastre. Enfim, torço para que as autoridades envolvidas tenham muito cuidado no uso do dinheiro público.

Para ler outras reportagens compre a edição desta semana de VEJA no tablet, no iPhone ou nas bancas. Tenha acesso a todas as edições de VEJA Digital por 1 mês grátis no iba clube.

Outros destaques de VEJA desta semana

Continua após a publicidade

Publicidade