#TBT: Obdulio, o capitão do ‘Maracanazo’, joga bocha e bebe com PLACAR
Em 1972, repórter José Maria de Aquino não se intimidou com a carranca do “Negro Jefe” e arrancou uma histórica entrevista na mesa de um bar em Montevidéu
Há exatos 70 anos, em 16 de julho de 1950, o Maracanã foi palco de uma das maiores tragédias brasileiras – e da maior glória do esporte uruguaio. A aguerrida seleção celeste bateu, de virada, o Brasil por 2 a 1, e conquistou a Copa do Mundo calando nada menos que 200 000 incrédulos torcedores. Schiaffino e Ghiggia marcaram os gols do Uruguai, mas outro personagem do Maracanazo ganhou tanto protagonismo quanto: Obdulio Jacinto Varela (1917-1996), capitão e símbolo da chamada garra charrúa. Vinte dois anos depois de eternizar seu nome na história do futebol, o ex-camisa 5 fez jogo duro, mas topou atender a reportagem de PLACAR, no bar de um clube de bocha de Montevidéu.
O repórter José Maria de Aquino relatou o encontro com o Negro Jefe (chefe negro) no Clube Juan Jackson, na capital uruguaia, em edição de maio de 1972 – o texto, de tão marcante, foi republicado em edições especiais, como a edição de 50 anos de PLACAR, em janeiro deste ano. Obdulio não gostava de dar entrevistas. Era constantemente procurado por brasileiros, mas costumava negar com sua conhecida firmeza. Mas acabou vencido pela cansaço.
“Silêncio. Dez horas da noite. Frio. Quatro homens fora. Quatro homens dentro da quadra de bocha. Jogam. Entre eles, Jacinto, ‘El Negro’. Caudilho, com ‘C’ maiúsculo, de coragem, de calor humano, de calibre. Sociólogo, filósofo, observador profundo, estudioso, instintivo, tudo sem forçar, sem saber, sem estudo. Vivo, cruel, duro, humano, introvertido, alegre, alegre, singular. Capaz dos mais saborosos diálogos, ou de se impor um silêncio profundo”, escreveu José Maria de Aquino.
No dia da última entrevista de Pelé a PLACAR, no final do ano passado, a equipe encontrou José Maria de Aquino, que também iria conversar com o Rei. Membro do time inaugural da publicação na década de 1970, ele contou a história em detalhes. O destino de Aquino era a Argentina, mas ele trocou a passagem para passar pelo Uruguai. O objetivo alegado era assistir a um clássico entre Peñarol e Nacional.
Ir ao jogo era uma desculpa para conseguir o furo de reportagem – e sem avisar aos editores sobre as intenções da viagem, já que ainda não havia conseguido a entrevista. Aquino recorreu a amigos da imprensa uruguaia e perguntou onde poderia encontrar o capitão do time campeão do mundo em 1950. “Ele está sempre no clube de bocha. Mas boa sorte para conseguir falar com ele”, ouviu antes de se dirigir ao local.
Ao chegar, encontrou Varela na cancha. Ele se aproximou e perguntou o que ele queria. “Falar com o senhor”, disse. O Caudilho sorriu e o ignorou solenemente. Como um bom jornalista, José Maria de Aquino se sentou na arquibancada e esperou por algumas horas.
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Apesar de intimidado pelos olhares nada amigáveis, o repórter aguardou o jogo de bocha acabar para puxar papo. O velho capitão acabou cedendo. “Não tenho nada para falar. O que você quer saber? Quer beber alguma coisa? Posso terminar a partida? Deixe-me olhar para você e resolver. Gostei. Vamos sentar. Dez minutos”, foram as palavras de Obdulio, então com 54 anos, registradas na reportagem.
O ídolo uruguaio rejeitou o rótulo de anjo (para os uruguaios) e demônio (para os brasileiros), por causa do Maracanazo. Disse que “um grito bem dado é um jogador mais em campo” para justificar sua agitação. Era tudo estratégia.
“Fui visto como culpado pela derrota do Brasil e como ganhador da Copa para o Uruguai. Não foi nada disso. Gritei o tempo todo porque sei que quem quiser ganhar tem que gritar. Segurei a bola depois do gol do Friaça, alegando impedimento, chamei o juiz, o bandeirinha, pedi intérprete, fiz tudo isso só para acalmar aquela gritaria. Eu sabia que provocando o medo de verem o gol anulado aquilo se transformaria num túmulo. Tentei e deu certo”, recordou.
Algumas cervejas depois, o encontro terminou às 2h da manhã, com Obdulio Varela satisfeito “Da testa franzida, carrancuda, ao sorriso largo, ao assobio. Quando assobia os amigos sabem que ele está feliz”, relatou Aquino na época. Hoje, aos 83 anos, o ex-repórter de PLACAR segue tratando esta como a melhor matéria de sua vida.