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Tabuleiro do século XXI

Os campeonatos de xadrez já não são metáfora da diplomacia nem servem para mostrar a supremacia do ser humano diante de sua maior invenção, o computador

Pode-se contar a recente história da humanidade por meio do xadrez. Sabemos como foi a quentura da Guerra Fria pela fenomenal disputa, em 1972, entre o americano Bobby Fischer e o soviético Boris Spassky, que pôs Reykjavik, a capital da Islândia, no centro do mapa. Naquela contenda — “a batalha do século”, como foi chamada —, os dois enxadristas eram apenas peões de um tabuleiro bem maior. Fischer venceu, foi o primeiro americano campeão do mundo, mas perdeu o título em 1975, ao recusar-se a enfrentar outro soviético, Anatoly Karpov, em mais um lance de puro embate ideológico. Depois disso, sumiu de cena e, perdido em pensamentos cada vez mais confusos, à beira da loucura, morreu sozinho, em 2008.

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Com o Muro de Berlim no chão, como já não se pudesse usar o milenar jogo como termômetro político, deu-se o início de uma nova era do tabuleiro, o tempo extraordinário da briga entre o ser humano e a máquina, com a contenda entre o Deep Blue, da IBM, e Garry Kasparov, em 1997. Kasparov perdeu, e a humanidade celebrou, enfim, a consagração da inteligência arti­ficial. Desde então, os computadores deixaram de ser rivais e aliaram-se ao cérebro humano. Um jogador profissional chega a gastar milhares de dólares em programas de computador que o auxiliam em seu treinamento e na busca de soluções dentro das 64 casas pretas e brancas — a quantidade de jogadas possíveis no xadrez é equivalente ao número 1 seguido de 45 zeros à sua direita.

Se não existe mais guerra de civilizações, se a equação tecnológica parece resolvida, com total domínio de processadores cada vez mais rápidos e intrincados, como manter vivo o interesse por um torneio de xadrez de gente de carne e osso? Ora, com transmissão ao vivo pela internet, com presença maciça de jornalistas, com badulaques à venda, com o esporte — sim, xadrez é esporte — transformado em showbiz. Desde a sexta-feira 9, o norueguês Magnus Carlsen, 27 anos, o atual campeão mundial, e o desafiante, o ítalo-americano Fabiano Caruana, 26 anos, digladiam-se pelo troféu e por 60% do prêmio, o equivalente a 4 milhões de reais (o restante fica com o perdedor), em um espaço de eventos no centro de Londres. Até a terça 13, o confronto estava rigorosamente empatado: quatro jogos, quatro empates — ao todo, serão disputadas doze partidas (mais desempate, se necessário) até que saia um vencedor.

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GÊNIO INDOMÁVEL –  O americano Bobby Fischer (1943-2008), a arma americana contra os soviéticos durante a Guerra Fria: morte no ostracismo David Attie/Getty Images

Os especialistas apontam o duelo como o confronto entre os dois melhores jogadores de sua geração, uma turma do século XXI atrelada ao uso cada vez mais intensivo dos computadores no universo dos chamados “esportes da mente”, designação compartilhada com outros jogos, caso do pôquer, que também deixou as mesas para crescer nas telas. Carlsen e Caruana são beneficiários desse avanço tecnológico. Tanto que o atual campeão tem até um aplicativo próprio: o Play Magnus, programa para smartphones e desktops que permite praticar o xadrez e é um dos mais populares nas lojas virtuais. Aos enxadristas, profissionais ou amadores, é possível inclusive enfrentar o próprio Carlsen (ou, claro, um algoritmo que imita suas jogadas).

Carlsen começou a movimentar as peças aos 5 anos de idade. Aos 13, já detinha o título de grande mestre, a mais alta qualificação do esporte, equivalente à faixa-preta das artes marciais, que lhe rendeu o apelido de “Mozart do xadrez”. Em 2009, com 19 anos, o norueguês se tornou o jogador mais bem ranqueado do planeta. Desde 2013, quando venceu o indiano Viswanathan Anand, ele ostenta o título de campeão mundial da modalidade — Carlsen já defendeu, com sucesso, duas vezes o troféu.

Como o rival, Caruana debutou muito jovem. Aos 12 anos, mudou-se com os pais para a Europa, em virtude da dupla cidadania, e lá treinou sem parar. Em 2014, voltou aos Estados Unidos, deixou para trás a bandeira italiana e trilhou o caminho do sucesso. Em março deste ano, em Berlim, conquistou o direito de brigar pelo título contra Carlsen ao vencer, em curtíssimo espaço de tempo, os sete melhores enxadristas do planeta.

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Duro mesmo é a insistente comparação com Bobby Fischer — e, definitivamente, ser Fischer é coisa para muito poucos, e não há como colar Caruana a uma figura de um tempo que já passou. Não convém, portanto, pô-lo ao lado de Fischer, assim como Carlsen não pode aparecer no mesmo escaninho de gênios do passado. Londres é palco de uma peleja que já não imita a queda de braço diplomática do século XX nem, menos ainda, quer exibir nossa supremacia diante da mais extraordinária obra da civilização: o computador.

Publicado em VEJA de 21 de novembro de 2018, edição nº 2609

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