Sheriff Tiraspol: o caçula da Champions que carrega conflitos geopolíticos
Para entender os conflitos na região separatista da Transnítria, PLACAR ouviu especialistas sobre a história do Leste Europeu e jogadores do clube moldavo
O futebol longe de ‘Superligas’ e acordos bilionários ainda reserva surpresas e histórias curiosas. A boa novidade é o Sheriff Tiraspol, clube com apenas 24 anos de história, que se classificou de maneira inédita para a fase de grupos da Liga dos Campeões da Europa de 2021/22 e estreia em casa na próxima quarta-feira, 15, contra o Shakhtar Donetsk, da Ucrânia. O Sheriff é o clube mais vencedor da Moldávia, mas não queria que fosse assim: cercada por conflitos geopolíticos, Tiraspol faz parte de uma região separatista do país do Leste Europeu, a Transnítria.
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A trajetória do Sheriff rumo à competição continental é de brilhar os olhos e poderia facilmente ser roteiro de um filme. Sem o investimento da grande maioria dos clubes do torneio de clubes mais importantes do mundo, o time disputou as fases preliminares da Liga dos Campeões após vencer com sobras o Campeonato Moldavo de 2020, o 19º de sua história, sofrendo apenas sete gols em 36 partidas. No caminho para a fase de grupos da Champions, despachou quatro adversários, incluindo duas velhas potências da região, o Estrela Vermelha, da Sérvia, e o Dínamo Zagreb, da Croácia.
Alguns brasileiros já deixaram suas marcas na Transítria. O atacante piauiense Luvannor, nascido no Brasil e naturalizado moldavo, deixou o clube recentemente e foi substituído pelo paulista Bruno, que deixou o futebol grego para disputar a Liga dos Campeões. Outros dois brasileiros foram fundamentais na aventura europeia do time: Cristiano e Fernando Costanza, que contaram a PLACAR sobre a experiência de viver em uma região tão controversa e, ainda assim, poder sonhar alto.
As origens separatistas
Por trás de um time que encanta seus torcedores, reside a história de uma região que carrega as marcas da luta separatista. A cidade de Tiraspol, com cerca de 160.000 habitantes, é a capital da Transnístria, região internacionalmente reconhecida como moldava, mas que se identifica com aspectos da antiga União Soviética e se declarou unilateralmente independente em 1990. O historiador Rodrigo Ianhez e Aurélio Araújo, jornalista e cocriador do podcast Copa Além da Copa, detalham o conflito.
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“O caso da Transnístria faz parte do processo que ocorreu ao longo de todo o século XX. O Império Russo dominava uma série de regiões que se tornariam independentes após a Revolução Russa; uma delas é a Bessarábia, que corresponde hoje à Moldávia e ao território da Transnístria, mas depois da conversão do Império em União Soviética, a Moldávia ficou dividida. A maior parte da porção sul foi anexada pela Romênia, que historicamente tem muitas semelhanças, e a porção que hoje corresponde à Transnístria era parte da Ucrânia soviética.”, introduziu Rodrigo.
O historiador explica que, em 1940, a URSS anexou o resto da Moldávia, que era controlada pela Romênia, sem grandes conflitos. Em 1941, no entanto, a Romênia invade a União Soviética em apoio a Adolf Hitler e ao Eixo e recupera todo esse território. “Mas, como sabemos, a URSS vai sair vitoriosa e recuperar o território, assim, fundando a República Socialista Soviética da Moldávia. No início da década de 1990, quando a União Soviética começa a se esfacelar, a Moldávia vai declarar independência. Porém, havia um forte movimento nacionalista na Moldávia com a seguinte particularidade: alguns grupos nacionalistas radicais queriam reunificar a Moldávia com a Romênia. Com isso, abriu margem para os habitantes da Transnístria pedirem independência.”.
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“Quando a União Soviética começou a se dissolver, no fim dos anos 80, a antiga República Soviética da Moldávia entrou em um conflito armado entre os que queriam permanecer ligados à URSS e os que queriam um país independente. O resultado do embate é que, hoje, a Transnístria é uma região separatista que funciona como um país à parte de Moldova, com governo e até moeda próprios, mas que não é reconhecido internacionalmente.”, completou Aurélio.
Tempero brasileiro
Essenciais na equipe do Sheriff, os defensores brasileiros contaram sobre o sonho de continuar surpreendendo na Champions. Além disso, os jogadores relataram as particularidades do cotidiano em Tiraspol. Cristiano, lateral que pode atuar nos dois lados, está no leste europeu desde 2017, quando saiu do Volta Redonda rumo à região moldava. “Eu gosto de morar aqui. Quando eu cheguei há quatro anos tinham quatro brasileiros e eles me ajudaram na adaptação. Quando cheguei estava muito frio e eu tinha acabado de sair do Rio de Janeiro. Eu consegui me adaptar rápido e mostrar meu bom futebol.”.
Fernando Costanza, por outro lado, é mais recente no clube e se transferiu ao Sheriff neste ano. O lateral-direito com passagem pelo Botafogo afirma ter se surpreendido inicialmente com a questão geopolítica que envolve o local, mas afirma viver com normalidade: “É uma experiência bem interessante de vida morar aqui. Antes de vir para cá eu não sabia que tinha essa região separatista, mas a minha adaptação foi bem tranquila.” O atleta também falou sobre a questão da independência e contou sobre elementos do cotidiano que o fascinam.
“A região da Transnístria é como se fosse um país diferente da Moldávia. Por mais que não seja reconhecido como um país, é como se fosse um. Tanto que aqui eles falam russo, diferente do restante do país que fala o romeno. Quando se chega ao aeroporto daqui, mesmo saindo da Moldávia, você passa por um controle do passaporte na fronteira entre os dois, onde eles são bem rigorosos. Aqui eles tem exército, moeda e canais de televisão próprios. Nas ruas, se vê muita ligação com a União Soviética. Vem sendo uma experiência bem legal e interessante. Eu e minha esposa nunca tivemos nenhum problema, nunca presenciei nada na questão política que me chamou a atenção.”, disse Fernando.
Sonhar? Não custa
No grupo da Inter de Milão, atual campeã italiana, do gigante Real Madrid e do empolgante Shakhtar Donetsk, o Sheriff é, inegavelmente, o azarão. Com condições de investimento completamente inferiores aos rivais, uma terceira colocação, que garante vaga na fase final da Liga Europa, já seria equivalente a um título. Os jogadores, por outro lado, não sentem medo de sonhar alto e querer continuar a história.
Cristiano, defensor já identificado com o clube e torcida, nega ser impossível ir além da fase de grupos e faz questão de declarar a importância da equipe na competição: “A gente sabe que vai ser muito difícil, mas nada é impossível. Não foi a toa que chegamos até a fase de grupos da Champions e nós queremos mais. Sabemos que podemos fazer diferença na competição.”.
Seu companheiro Fernando adotou tom semelhante. “Quase ninguém acreditava que a gente fosse alcançar a fase de grupos, surpreendemos, mas agora devemos manter os pés no chão. Sabemos que não vai ser fácil, são equipes que disputam a fase de grupos todos os anos, mas acredito que é possível.”. O lateral também elogiou as condições que o Sheriff proporciona aos atletas: “Nada foi por acaso. O Sheriff tem uma estrutura que muitos times da primeira divisão do Brasil não tem. Temos três estádios, um deles sendo coberto para quando os jogos acontecem no inverno, que é muito rigoroso. O outro é para jogos nacionais e outros para jogos internacionais, da Europa League e da Champions. Existem diversos campos de treinamento e entre outras coisas no CT. Tudo é fruto do que o clube vem fazendo a longo prazo.”.
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