Primo pobre da bola: a dura realidade da última divisão paulista
Em meio à pandemia, torneio expõe duro cotidiano de um futebol que se diz profissional mas tem tantas dificuldades que é quase mais correto chamar de amador
(Reportagem publicada na PLACAR de novembro de 2020)
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Sábado, 17 de outubro, 15 horas de uma tarde de sol em São Paulo. No Estádio Nicolau Alayon, na Zona Oeste de São Paulo, os quase 10 000 lugares estão praticamente vazios. No jogo sem público, por causa da pandemia da Covid-19, apenas uma fiscal da Federação Paulista de Futebol controla a circulação dos jogadores e demais integrantes das comissões técnicas. Três outros funcionários da FPF cuidam da transmissão do jogo via redes sociais. E apenas este repórter e um fotógrafo de PLACAR acompanham a primeira rodada da Segunda Divisão do Campeonato Paulista (apesar do nome, ela é, de fato, a quarta, pois as outras sãochamadas de A1, A2 e A3).
Em campo, o Barcelona Capela, da capital, e o Jabaquara, de Santos, estreiam no torneio, que tradicionalmente encerra as competições estaduais todos os anos. Sentado sobre uma confortável poltrona estofada cinza, que se destaca em meio às cadeiras azuis da parte coberta da arquibancada, Severino Possidônio dos Santos, 73 anos, faz sua voz reverberar como um poderoso alto-falante. “Oxe, domina uma bola, lateral, pelo amor de Deus. Agora pega, pega, pega… Ah, no meu tempo não tinha isso, não, esses jogadores são todos moles.” Com as mãos, ele parece orientar o time azul e grená, tal qual o famoso esquadrão espanhol do qual tomou o nome. Na véspera, o técnico Edson Lino testara positivo para o novo coronavírus e coube ao auxiliar e faz-tudo Washington Pereira Souza assumir o comando — ajudado informalmente pelos gritos de Santos, motorista do, vamos lá,“Barça” há dezessete anos.
Bem-vindo ao primo pobre entre os campeonatos do estado mais rico do país. Neste ano, 42 equipes estavam habilitadas a disputar o troféu e duas vagas na Série A3 em 2021 (no ano passado, subiram o Paulista, que já caiu de volta, e o Marília, que terminou em décimo entre dezesseis participantes). Pelo regulamento, todas teriam direito a uma “cota de participação” paga pela FPF. Na vida real, porém, os clubes têm dívidas com a federação e, portanto, ela não repassa os valores previstos. Como diria o poeta Vampeta, “eles fingem que pagam, eu finjo que jogo”. Assim, sete times (Santacruzense, São Carlos, Joseense, Taboão da Serra, Mogi Mirim, Jaguariúna e Taquaritinga) desistiram antes de a bola voltar a rolar. Os outros 35 foram divididos em sete grupos, levando em conta a proximidade regional.
Ainda assim, são necessárias pequenas viagens. De Andradina, quase na divisa com Mato Grosso do Sul, a São José do Rio Preto, por exemplo, são três horas de carro. “O campeonato dura dois meses e custa perto de 60 000 reais por mês, contando as despesas com os atletas e a comissão técnica, viagens e alimentação”, resume Irineu Rodríguez Gonzalez, presidente do Elosport, de Capão Bonito, a 182 quilômetros ao sul da capital. No ano passado, o time fez a pior campanha: jogou dez vezes e perdeu todas, com 37 gols sofridos e apenas três marcados (nas quatro primeiras rodadas deste ano, já tinha conquistado uma vitória, um empate e os mesmos três gols a favor).
O regulamento de 2020 prevê que os cinco times de cada grupo joguem todos contra todos duas vezes (ida e volta). Os dois primeiros colocados, mais os dois melhores terceiros colocados entre todos, passam para as oitavas de final. Daí em diante, todo o mata-mata é feito em apenas uma partida, até chegar à final, prevista para o dia 16 de dezembro. Como se não bastasse a falta de dinheiro, os participantes ainda vivem outro grande drama: a ausência de público impede que o torneio, que sempre foi uma vitrine para jovens jogadores, seja acompanhado ao vivo pelos olheiros.
Em 2008 jogava no time do Pão de Açúcar (que depois viraria Audax) um certo Paulinho — que foi para o Bragantino, onde chamou atenção do Corinthians, clube pelo qual disputou a Libertadores de 2012, e chegou à seleção. Nos dois anos seguintes, o zagueiro do União Mogi era Felipe, que também passou pelo Braga e pelo Timão e hoje é titular do Atlético de Madrid, de Diego Simeoni. Lucas Lima, que fez sucesso no Santos antes de ser contratado pelo Palmeiras, começou disputando a quarta divisão com a Inter de Limeira, em 2011. E o meia Luan, ex-Grêmio e atual Corinthians, tem uma história ainda mais curiosa e surpreendente. Ele morava embaixo das arquibancadas do Tanabi e, em 2012, formou dupla de ataque com Túlio Maravilha.
Sim, a última divisão paulista também já foi refúgio de velhos boleiros que se recusavam a pendurar as chuteiras. Túlio, por exemplo, se manteve jogando por um capricho pessoal: marcar 1 000 gols como profissional. Viola (Tanabi, em 2013, e Taboão da Serra, em 2015 e 2016), Marco Antonio Boiadeiro (também no Tanabi em 2013), Müller (Fernandópolis, em 2015) e Edilson, o Capetinha (Taboão da Serra, em 2016), estão entre os veteranos que disputaram o torneio. Hoje, porém, isso não é mais possível. O regulamento só permite atletas com menos de 23 anos.
Entre os inscritos para 2020, há promessas com nomes de craques, como Zidane Castilhos Guedes, Matheus Zidany e Matheus Palermo, Lucas Lukaku dos Santos e Marcos Praxedes, o Kross. Outros trazem na certidão de nascimento a criatividade dos pais: Jhonkaermeson Pereira, Klywert Almeida de Jesus, Chriseverton Silva, Uina tan Conceição de Jesus, Tenner Costa e Uiclison Silva. E muitos chegam com os bons e velhos apelidos à moda brasileira: Cacimbinha, Pitbull, Tubarão, Oreia, Gordo, Tiririca e Cão Fuliento.
“É muito difícil: o nível técnico é fraco, a imprensa não acompanha e ninguém pode ir ao estádio ver os jogos”, desabafa Gonzalez, do Elosport. A solução encontrada pelo clube foi terceirizar o departamento de futebol. Entre as novidades da “nova gestão” estão a cobrança de 600 reais para quem quiser fazer um teste no time e a decisão de demitir o técnico Luiz Carlos Vilela, conhecido como Ferguson do Interior, em mais uma comparação pitoresca, desta vez com a longevidade do treinador escocês Alex Ferguson à frente do Manchester United.
Outros clubes tradicionais do estado, como o América de São José do Rio Preto e a Matonense, também aderiram à terceirização para não fechar as portas. Com o controle do futebol nas mãos de um empresário com conexões no futebol da Albânia (sim, isso também existe), seis jogadores do América foram enviados ao KF Turbina, do país europeu, na esperança de fechar algum contrato de venda capaz de fazer caixa (se tudo der certo, metade do dinheiro fica para o clube e a outra metade para a empresa parceira). Antes da quarentena, o time havia alinhavado um contrato com o técnico Pinho, batizado de Rei do Acesso, mas a situa ção financeira do clube já estava difícil e ele recuou ao perceber que não havia garantias de receber o salário (o estádio está penhorado e as dívidas trabalhistas são estimadas em 10 milhões de reais).
Salário, aliás, é questão delicada. Tecnicamente, todos aqui são profissionais. Pelas regras do sindicato, isso significa que os atletas devem receber pelo menos um salário mínimo (1 045 reais) por mês. Mas PLACAR conversou com vários jogadores, que pediram para não ser identificados, e eles relataram que muitos clubes nem sequer pagam uma ajuda de custo (50 ou 100 reais por semana) aos atletas. “O pior é que esses jovens se submetem a isso achando que essa é a chance da vida deles”, queixa-se Rinaldo Martorelli, presidente da entidade, que não recebeu, formalmente, nenhuma denúncia de irregularidade neste ano.
Em Guaratinguetá, a 176 quilômetros da capital, o Manthiqueira também sofre com a falta de recursos. No dia 27 de outubro, véspera do confronto com o São José, em São José dos Campos, o presidente Geraldo Márgelo de Oliveira, o Dado, ligava para amigos e empresários locais em busca de 1 400 reais para bancar a viagem, de menos de 90 quilômetros. Por sorte, um apoiador de Goiás depositou não apenas o valor necessário, mas 500 reais a mais, e o time conseguiu entrar em campo. “Eu uso esse dinheiro até para comprar comidapara os jogadores”, disse Dado a PLACAR. A situação do presidente é, no mínimo, tão delicada quanto a do clube. Por causa de dívidas acumuladas, ele precisou entregar a casa em que morava e passou a viver (com a mulher) no centro de treinamento. Como se não bastasse, a cozinheira foi demitida e ele agora acumula os dois cargos. “Chamam a gente de loucos, e somos mesmo.”
Diante de tanta penúria, a própria FPF viu-se obrigada a bancar um gasto muito importante neste momento: a realização dos testes para detecção do coronavírus. Pelo acordo original, os clubes e a federação dividiriam (meio a meio) essa despesa antes de cada jogo. Na primeira rodada, conta Moisés Cohen, médico da entidade, houve vários problemas. “Alguns clubes fizeram os testes rápidos, outros demoraram mais de uma semana para entregar.”
Eduardo Moutinho, conselheiro do Taquaritinga, afirma que o custo dos exames foi estimado em 28 000 reais. “Como fazemos para levantar tanto dinheiro com portões fechados?” Luiz Henrique de Oliveira, presidente do Mogi, destaca ainda um aspecto legal envolvido na questão. “Queriam que o presidente e o médico do clube assumissem a responsabilidade civil e criminal por qualquer problema relativo à doença.” A solução encontrada foi passar a fazer todos os testes no laboratório do Hospital Albert Einstein, que já tem um convênio com a federação — sem cobrar nada dos times. “Só estamos disputando o campeonato porque não corremos o risco de ser rebaixados”, completa Moutinho, do Taquaritinga. Em tempo: naquele sábado de sol, o Jabaquara ganhou de 3 a 0.