Pelé: Jogador concede entrevista antes de seu 75° aniversário
Três Corações (MG), 23 de outubro de 1940. Há 75 anos, nascia um mito — não só dos esportes, não só do futebol, não só do Brasil mas de todo o mundo. Com esta entrevista exclusiva, PLACAR abre as comemorações do Jubileu de Diamantes do Rei, que se estenderão por todo o ano
Pelé chega roubando para si todas
as atenções. Tem sido assim há 75 anos, desde que ele nasceu. Ou, mais
intensamente, desde que descobriu — e descobriram — que era um gênio jogando
futebol. Primeiro nas categorias juvenis do pequeno Baquinho, o Bauru Atlético
Clube, da cidade de mesmo nome do interior de São Paulo adotada por esse
mineiro de Três Corações. Depois no Santos, onde ele conquistou todos os
títulos possíveis — estaduais, nacionais, sul-americanos, mundiais — e elevou o
nome do já tradicional clube paulista a um outro patamar. Também na Seleção
Brasileira, pela qual Pelé é até hoje o único jogador três vezes campeão do
mundo, em 1958, 1962 e 1970. Até mesmo no Cosmos, já veterano, quando, com mais
de 34 anos, topou promover o futebol nos Estados Unidos, Edson Arantes do
Nascimento, o Pelé, continuava como agora, roubando todas as atenções.
Nesse fim de tarde quente de setembro, vestido, como de costume,
da cabeça aos pés com peças de roupa de uma mesma cor (dessa vez, clara), o
Atleta do Século adentra a sala do escritório que mantém em Santos desde 1973 e
onde o esperávamos havia já algum tempo. Sempre sorridente, pela disposição
demonstrada nem parecia que aquele compromisso seria o último de um dia cheio,
carregado de gravações para as mais diversas televisões e produtoras de vídeo,
além de outras entrevistas como aquela que ele irá nos conceder. O único
encaixe de uma agenda apertada, ocupada, nos últimos meses, por internações,
cirurgias, sessões de fisioterapia e repouso. Horas depois, no dia seguinte, o
Rei do Futebol estaria embarcando para cumprir uma série de compromissos
comerciais na Europa, de onde só voltaria na segunda metade do mês seguinte, já
às vésperas da comemoração de seu aniversário. Mesmo assim, e apesar de tudo,
Pelé sorria, como registra a foto que abre esta sequência. E foi sorrindo,
sempre, que ele concedeu esta entrevista.
Ela vem se somar a outras ao longo dos 75 anos dele e dos 45 de
PLACAR.
P:Como o Pelé, aos 75 anos, vê o futebol que se joga hoje pelo mundo
afora?
R: É engraçado. Boa pergunta, viu? Porque hoje
se tem muito mais informação do que no nosso tempo.Nós estávamos até brincando,
falando do Neymar, essas coisas. No nosso tempo a gente saía pra se condicionar
e não tinha nenhuma informação. O Santos ia jogar na Europa e a gente não sabia
como os outros times jogavam. Hoje você estuda times no campeonato, dá pra você
estudar, saber qual é o tipo de jogo. No nosso tempo não tinha essa facilidade.
Agora, sobre o futebol em si, na minha opinião,
hoje, na Europa, é muito mais pegado, muito mais difícil e mais corrido do que
no nosso tempo. Tá certo que eu, ou algum jogador qualquer, pegava a marcação
homem a homem, mas era uma coisa individual. O futebol em si, hoje, é disputado
mais de perto. Agora, se o cara é bom, o cara é bom sempre. Realmente, o tipo
de jogo hoje é um pouco mais pegado, mais rápido. Tem que ter uma rapidez,
porque hoje se marca mais de perto. A diferença que eu acho é só essa. Mas, se
o cara é bom, por exemplo, o Garrincha, daquela época… Se tivesse jogando eu
e o Garrincha ia ser uma sopa, você não vê ninguém igual.
E o Pelé?
O Pelé foi um privilegiado, né? [Risos.]
Mas o Pelé, hoje, faria sucesso?
Eu sempre brinco assim: “Hoje o Pelé seria
melhor ainda”. Porque com todo o preparo, os cuidados que tem hoje… O dom é
uma coisa de Deus, é uma coisa que Deus deu e ninguém tira. Agora, se você
estiver preparado, se estiver em condições físicas… Eu, como sou o Edson,
amigo do Pelé desde criança, não tenho nada do que reclamar [risos].
Mas, quando se é o melhor de todos, como você foi,
e num tempo em que o físico era talvez menos exigido do que hoje… Você já era
fenômeno. A preparação era outra, né? Você sobrava!
Eu acho que a grande vantagem era o meu
condicionamento físico. Porque, além de ter o dom divino de jogar futebol, na
parte física eu conseguia superar. Graças a Deus eu sempre estive bem
fisicamente. E olha que eu tive fratura no tornozelo, no joelho, no ligamento,
virilha, tive tudo.
Sua recuperação também era surpreendente, sempre.
Graças a Deus sempre foi bem mais rápida. Agora é difícil
você fazer uma comparação. O jogador tem muito mais recursos do que a gente
tinha antes. A partir do material esportivo. O material esportivo é todo de
primeira, os estádios… Então, se fosse que nem agora seria muito mais fácil,
se for pensar nesse sentido. O gramado é um tapete, a chuteira é levinha.
O seu repertório de futebol era perfeito. Mas, pra jogar hoje,
o que talvez você tivesse que mudar para acompanhar essa dinâmica tão
diferente?
Não sei, não. Acho que nada. Porque a vantagem e a diferença
que eu tinha na época era que eu já tinha um condicionamento físico bem melhor,
tinha uma preparação psicológica melhor. Eu sempre queria melhorar, eu nunca
achava que já estava bom. É difícil, porque, por exemplo, hoje, quem é um jogador
hoje, no Brasil, que você pode falar “Pô, o cara cabeceia bem pra caramba”?
Quem é? Não tem nenhum nome. Na minha época tinha o Dadá Maravilha, tinha o
Serginho Chulapa, tinha um monte de cabeceador bom. E eu era considerado um bom
cabeceador.
Todos esses cabeceavam de olho aberto…
Todos esses, não! Só eu [risos]. Então, o que eu digo é o
seguinte: na comparação, hoje, não tem… Quer dizer, quem é um bom cabeceador?
Não tem um especialista.
Não, não precisa ser especialista, mas um bom cabeceador.
É, ninguém se destaca por isso. E é assim, também, em relação a
cobrança de faltas, a uma série de fundamentos.
É uma comparação que às vezes é meio chato fazer, mas que é
necessária.
E a comparação entre você e o Messi?
O Messi, eu sempre falei que nesses últimos dez anos ele é
um dos que eu achava que eram superiores. Mas, por exemplo, de cabeça ele não tem… Ele usa mais a
esquerda e não é ambidestro. E, hoje, é o melhor. Um tempo atrás tinha o
Cristiano Ronaldo, que é igual ao Ronaldinho (Fenômeno). O Ronaldinho talvez
fosse mais rápido ainda que ele, mas é o mesmo estilo de jogo. Do tipo do Messi
tinha o Maradona, tinha o Zico… O Zico, coitado. Coitado, não: é maneira de
falar. O Zico pegou um monte de jogador bom. No Brasil tinha um monte, na
geração em que o Zico veio. O Maradona, na Argentina, acho que foi o último até
hoje. E agora vem o Messi, que tem o mesmo estilo do Maradona, o mesmo tipo de
jogo. Então, ele tem sorte, porque não tem com quem comparar. No nosso tempo tinha
o Beckenbauer, tinha o Sócrates, que era muito inteligente, mas era mais lento,
tinha o Dirceu Lopes, que jogava pra caramba, também.
Gente que nem tinha chance na Seleção, como o Ademir da Guia,
por exemplo…
…Sim, o Ademir, que era excelente. Era uma fase que tinha
muita gente boa. Em 70, olha os jogadores do nosso meio de campo: era eu número
10, Rivellino número 10, Tostão número 10, Gérson número 10. Todos os jogadores
no mesmo time, e hoje você procura um e já é meio complicado.
Já que você entrou nesse assunto: a gente perguntou, primeiro,
o que você acha do futebol mundial. E o brasileiro? Como você situa atualmente o
futebol brasileiro?
Eu acho que nós estamos atravessando uma fase difícil. Não dá
pra você fazer uma aposta de que nós somos superiores. Mas, ainda, claro que o
nível é muito bom. Nós estamos com alguma dificuldade, não continuamos no mesmo momento de melhor equipe, melhor seleção. Infelizmente,
é coisa do futebol, mas tomamos de 7 da Alemanha. Tomamos de três da Holanda, pra
você ver o nível. Foi um desastre, que não acontece nunca, e aconteceu contra a
Alemanha. A Holanda é um time bom, também, mas às vezes a gente empatava, perdia
de 1 a 0, aí tudo bem, até… Estamos atravessando uma fase difícil. Quer ver? É
até difícil dizer honestamente. Mas nós temos só o Neymar como nossa figura
hoje.
E esses jogadores saem muito cedo do Brasil. São revelados aqui,
os clubes não conseguem segurar muitos e logo eles vão pra Europa. Muitas vezes
pra mercados como Ucrânia, Rússia, e só depois vão pra Seleção Brasileira. Hoje
a Seleção perdeu um pouco dessa característica, da diferença…
…Aliás, do respeito. Ninguém tem medo de jogar contra o
Brasil mais, e esse é um grande problema. Agora, essa coisa de sair mais cedo,
isso aí é a situação do próprio país, né? Porque os clubes não podem competir
com os europeus. Tem jogador que sai, a gente nem conhece aqui e você vê
jogando na Ucrânia. Gente que nem passou por time nenhum, pela Seleção, e os
empresários já vêm.
Neste cenário, qual você acha que vai ser o futuro da Seleção?
Tem como melhorar, surgir mais jogadores?
Vai penar um pouco. Vai passar um “apurozinho” até formar
essa base de confiança, de produtos nossos. Vai ter que fazer uma reciclagem
boa, viu?
Você falou do 7 a 1. Onde você estava naquele dia? Vendo o jogo
com quem? Quais foram as suas reações?
No 7 a 1 eu estava aqui, no Guarujá.
Você viu pela televisão? Em casa, com a família?
Graças a Deus.
E quais foram as reações?
Não tinha reação. Não deu nem pro pessoal que estava assistindo
o jogo reagir. Todo mundo ficou chateado. Foi um negócio chato, né? A gente
estava no Guarujá, ia fazer uma festinha. Pô, de repente…
Mas o sentimento com a Seleção é sempre mais forte,
principalmente pra gente como você, que ajudou a construir essa história. Qual
é a sua relação com a Seleção Brasileira? O que ela significa na sua vida?
Tudo, né? Agora, nessas últimas convocações, bati um papo com
o Dunga, desejei boa sorte pra ele, aí ele falou: “Pô, quando você vai passar
aqui pra conversar? Vamos marcar um dia pra você bater um papo com os
jogadores. Os caras sempre perguntam, querem te ver e tal”. Eu acho que essas
mudanças de técnico também afetam o andamento da Seleção e, infelizmente, está
acontecendo nos clubes também. Os técnicos, agora, ficam dois, três meses, no
máximo cinco meses.
Muita gente atribui todos os males do futebol brasileiro à Lei
Pelé, se esquecendo de que muitos males já existiam, principalmente quando
existia o passe. Aquilo, sim, era uma escravidão. Está aqui uma chance pra você
defender a Lei Pelé [risos].
Não tem o que
defender na Lei Pelé. As coisas, quando são claras, são claras. Qual é a única
profissão na qual você era escravo? A Lei Pelé é uma proteção para o jogador.
Os clubes, que deveriam aproveitar, dão os jogadores para empresários, pô!
Você acha que são os empresários que ocupam o vácuo que os
clubes deixam?
Não, os empresários estão fazendo o trabalho deles. Os
presidentes de clubes, os diretores de clubes, eles é que fazem acordos com os
empresários, que negociam com os empresários.
Você acha que os clubes estão sendo mal administrados nesse
sentido?
Têm dificuldade, né? Pra se manter. É que, infelizmente, no
Brasil, as coisas estão confusas. Por exemplo: se você tem um filho, você quer
dar a melhor educação para ele, segurança pro seu filho. A Lei Pelé é pra dar
segurança para os jogadores, pra eles fazerem a vida deles. Todas as outras
profissões são assim.
Então, o que está errado é o uso da Lei Pelé. Ou o não uso de
coisas que a Lei Pelé pode proporcionar…
Exatamente. Quem tem os direitos não usa. Tem um monte de
garotos aí que poderiam exigir mais, mas não. Os próprios presidentes dos
clubes poderiam conversar com os jogadores, não passar pra empresário pra
negociar.
Até porque a Lei Pelé não fala nada disso. Não é a Lei Pelé que
dá prerrogativa para empresário, são os
clubes que abrem mão.
Exatamente. A Lei Pelé é para que os jogadores de futebol
profissional tenham os mesmos direitos que as outras profissões têm. É uma pena
que o pessoal confunda um pouco.
Só pra fechar o capítulo Seleção Brasileira, a PLACAR está com uma
campanha: Voltemos a Amar a Seleção. Você não acha que, inclusive no coração
das pessoas, a Seleção está desvalorizada demais? As pessoas não têm mais
motivação pra acompanhar a Seleção como era no seu tempo?
É tudo uma cadeia de informação. Se você não é informado
daquilo que você vai ver, daquilo que você vai fazer, do filme que você vai ver, você não tem
interesse. Qual é a informação que o público tem da Seleção Brasileira? Quem
sabe a escalação da Seleção Brasileira hoje? Qual o brasileiro que sabe a
escalação?
Nem o Dunga sabe, dependendo do jogo [risos].
Pois é, está difícil até pro Dunga! Ele pegou agora, tá
fazendo experiência. Eu acho que é essa a distância que o público tem da Seleção.
Eles não sabem quem vai jogar, quem é o goleiro. Antigamente, qualquer um sabia
tudo sobre a Seleção.
E você tem interesse em assistir jogos da Seleção?
Eu vejo, procuro ver. Teve jogos em que o Dunga falou que ia
fazer uma experiência, Estados Unidos e Costa Rica, eu quis ver só para ver os
jogadores que vieram, porque eu nem conhecia a maioria deles. Por isso eu quis
assistir, fiquei em casa. Para conhecer, para pelo menos saber quem eram.
E qual a sua opinião a respeito dessa Seleção?
O Dunga está com a mesma dificuldade que todos que passaram
antes dele tiveram. Ainda não identificou a equipe.
Vai dar tempo de identificar? Você acha que essa eliminatória
vai ser a mais difícil que já encaramos?
Não… Eliminatória vai ser sempre, sempre, sempre difícil.
Na maioria delas, depois da Copa de 70, o Brasil já estava classificado. Mas,
para classificar, é sempre difícil.
É que agora os nossos rivais evoluíram, né?
Não sei se os rivais evoluíram ou se o Brasil estacionou.
Ou os dois…
Eu acho que os rivais evoluíram pela facilidade da
informação. As outras seleções evoluíram. Tanto evoluíram que você vê os países
que nem falavam de futebol, como Estados Unidos, o próprio Japão, o Chile. Os
países que não eram fortes hoje estão começando a dar trabalho para o Brasil,
então não tem jogo fácil.
Se você não tivesse existido, quem seria o maior jogador de
todos os tempos?
Até o momento?
É, na história da bola.
Na minha opinião tem tantos jogadores bons, no mesmo
nível…
Todos empatados em segundo lugar, atrás de você? [Risos.]
[Risos.] Teve o Garrincha. É que são épocas diferentes. O
Falcão, para mim… foi o Rei de Roma. É que na hora de apontar os melhores de
todos os tempos o pessoal só pensa em atacante, né?
Mas você colocaria o Falcão no nível dos mais citados, com
Maradona, Cruyff , Messi?
Eu acho que é no mesmo nível.
No mesmo nível dessa turma???
Sim, o Falcão é no mesmo nível.
Então o Falcão sempre te encantou…
Não é isso. É que ele era um jogador diferenciado, um
jogador que qualquer time poderia olhar. É que nós tivemos tantos bons
jogadores que o pessoal esquece, tem gente que nem se lembra do Falcão.
Todos os que você citou são brasileiros. Dos estrangeiros, você
colocaria alguém?
Ah, dos estrangeiros houve grandes. O inglês George Best,
Cruyff, Bobby Moore, Bobby Charlton e Franz Beckenbauer.
E o atleta do século? Se você não existisse, quem seria o
atleta do século? Do passado, porque este século aqui tá muito novinho...
Sim, do passado. Os deste século aqui ainda estão
engatinhando [risos]. Pra mim, cara… É difícil porque eu vi o Yashin, o
goleiro, jogar. É impressionante o que ele pegava. Banks era um excelente
goleiro. É que a gente só pensa em atacante.
É legal essa sua preocupação de valorizar outras posições. Já
falou do Falcão, dos goleiros, do próprio Beckenbauer, que era líbero.
Porque são jogadores que se superaram, né? Eu também lembro
muito do Zico, eu gostava muito do Zico.
E você fica incomodado quando falam que o Maradona foi melhor
que você?
Não, quanto mais compararem, melhor. O que não pode é
esquecer.
De você ou do Maradona? [Risos.]
[Risos.] Pô, às vezes falam do George Best, e tal. “Pô, ele
era melhor que o Pelé?” Ou às vezes pegam um italiano lá e querem comparar. Pô,
todo mundo eles estão comparando com o Pelé! Então tá bom.
É que você é a referência. Teve uma época, até, em que o
comparavam muito com o Eusébio, contemporâneo seu, de Portugal. Principalmente
na Copa de 66.
Você vê, tinha tantos jogadores bons… Romário foi
excelente. Quando ele foi pro Barcelona, arrebentou. São os jogadores que
também foram excelentes. Porque, por exemplo, o Cruyff, não sei se ele foi melhor
que o Rivellino.
Até porque a gente acompanhou muito mais Rivellino do que
Cruyff , né?
É, mas na Europa, na época da Holanda, em que ele estava na
fase boa… Pô, o Cruyff jogava pra caramba! Mas não sei se mais que o
Rivellino.
E no Santos? Quem foi melhor depois do Pelé? Neymar?
O Neymar é um bom jogador, mas quantos gols de cabeça ele
fez na vida? É um ótimo jogador? É, sim, mas o Vasconcelos [jogador que o próprio Pelé substituiu no Santos, a partir de
1957] foi dez vezes melhor que o Neymar, sem
dúvida nenhuma. O Neymar é um atacante, ele joga pra frente. É específico. Ele
não joga atrás, não arma, não sai jogando. É difícil você hoje comparar tanto
déficit. Pra nós é óbvio que o Neymar é nossa cria. Mas se for ver bem…
A pergunta certa talvez não seja “Quem foi melhor que Pelé?”. A
pergunta certa talvez seja “Quem foi tão completo quanto Pelé?”. E aí você não
acha ninguém.
É, tem poucos jogadores assim. O Cruyff era muito
habilidoso…
Mas não cabeceava como você cabeceava.
É, não era tão bom cabeceador. O Ronaldo, ele era um
fenômeno, mesmo, na posição dele. Ele era excelente. Depois quebrou o joelho…
Mas ele era rapidíssimo, um especialista.
Mas também não cabeceava.
Pelo tamanho dele, teria a obrigação de ser bom cabeceador.
Até melhorou, no fim da carreira.
Melhorou, mas ainda tinha uma certa dificuldade para
cabecear.
E o Robinho? Você ficou chateado com o fato de ele não ter
estourado como se esperava?
Eu acho que o Robinho teve a fase boa, mas estacionou. Ele
teve a chance dele. A gente fala do Zico, mas, pô, o Sócrates era o mesmo tipo
do Robinho, que também tinha aquela coisa de não fazer gol de cabeça.
Que era menos atleta e mais talento.
Mais talento, mais técnica.
E você, quando chegou ao Santos com menos de 16 anos? Qual era
o máximo que aquele garoto imaginava que iria chegar? Qual era o seu parâmetro?
Seu ídolo, eu sei, era o Zizinho, da Copa de 50…
Pô, você tirou da minha boca [risos]. O Zizinho eu vi jogar
em Bauru, era tipo um Maradona, mas com a perna direita. Driblava pra caramba,
talvez fosse até um pouco mais forte. Não perdia a bola, cortava lançamento,
jogava pra trás, jogava pra frente. Eu pensava: “Quando eu crescer, vou querer ser
igual ao Zizinho”.
Então você achava que se o Pelé fosse um Zizinho já estaria muito
bom?
[Risos.] Pelo amor de Deus! Se estava…
E você acha que ficou algum sonho sem ser realizado na sua
carreira? Faltou ganhar algum título, marcar algum gol?
Só um título, que a gente fala de brincadeira, mas eu não
fui campeão olímpico. Era meu sonho ser campeão olímpico. Naquela época, como
eu me tornei profissional muito novo, e não podiam jogar profissionais, então não me convocavam. Mesmo eu tendo 17, 18, 19 anos, eles não
me chamavam porque eu já era profissional.
Não foi campeão olímpico, mas com 17 anos já era o mais jovem campeão
do mundo. Então compensou, não foi?
É. Mas o Brasil não foi campeão olímpico nenhuma vez.
E o Sul-Americano de Seleções faltou pra você também, né? A
Copa América. O Brasil ganhou em 49 e só foi ganhar de novo em 89.
Foi coincidência. Olimpíada eu não joguei e o Brasil também não
tem. Mas, se eu tivesse jogado, ganharia, isso eu sei! Isso eu tenho certeza.
Se a gente perguntou dos títulos que você não ganhou, é justo
que agora pergunte das suas glórias, das suas conquistas. Qual é aquela que
você guarda com carinho, com mais alegria? Mesmo do ponto de vista afetivo, uma
vitória pessoal.
Caramba, Deus foi tão bom comigo, me deu tantas coisas… É
difícil dizer uma coisa, tem tantas coisas… Graças a Deus. Precisaria citar
um monte aqui, se tiver que citar, mas tem muitas coisas que eu tenho que
agradecer a Deus. Só o fato de ter viajado o mundo todo, só faltou jogar na
Lua, e nunca ter um acidente… Isso já é um prêmio.
Quando você sentiu pela primeira vez que era um jogador diferente
de todo mundo que apareceu, antes e depois de você?
Diferente de todo mundo, não sei. Eu sempre admirei outros jogadores.
Sempre admirei o Cruyff , sempre admirei o Garrincha. O Garrincha também é
outro diferente. Era um ídolo, mas eram posições diferentes, eu fazia mais o
meio de campo. O George Best, vi umas duas ou três partidas do Best e pensei:
“Caramba…”. Eu sempre achei que tinha que melhorar alguma coisa. E era uma
cobrança constante. Também por parte do meu pai, o Dondinho, que também jogou,
no Atlético Mineiro e no Baquinho, de Bauru, entre outros clubes. Ele vivia me
dizendo: “Por que você não chutou pela esquerda? Por que você não bateu aquela
bola?” [risos].
Ele cobrava mais você do que você cobra os outros jogadores em
seus comentários, por exemplo?
Ele cobrava mais, cobrava muito mais! A gente tem que, às
vezes, dar uma livrada de barra pros caras, porque não dá pra falar tudo que
você viu. Mas ele comigo não queria saber.
Então ele sempre cobrou de você o máximo. E você atrás do
máximo.
Eu queria fazer o melhor, e graças a Deus as coisas iam
saindo. Muitas vezes eu achava: “Pô, fiz um golaço”. Chegava em casa e
perguntava pro meu pai: “Que que você achou?”. E ele falava: “Pô, você poderia
ter feito de outra maneira. Com aquela facilidade… Agora você tem que
treinar mais”. Nunca me dava colher de chá.
Mesmo com você já consagrado, campeão do mundo?
Mesmo. No final eu perturbava ele. Quando eu fiz oito gols
em um jogo contra o Botafogo [de Ribeirão Preto], por exemplo.
Você já tinha 24 anos…
Então, mas eu comecei a tirar sarro dele. Eu falava: “Olha,
de cabeça eu não fiz, mas eu fiz
três a mais que o senhor em um jogo só. Três! Eu fiz oito!” [risos]. Eu tirava
um sarro dele, porque… registro, não tem, mas tem uma súmula que diz que o
Dondinho, meu pai, é o único artilheiro do Brasil que fez cinco gols de cabeça
em um jogo só. Acho que só na Inglaterra que tem um outro. Mas aqui no Brasil o
Dondinho é o recordista.
Então seu pai era uma motivação a mais…
Graças a Deus, graças a Deus. Por causa disso, a gente ia
buscar a melhor forma, se preparar. Nunca ele achava que eu estava bem. Você
sempre tem que se preparar. Quando você achar que é o melhor, que está bem,
você está ferrado. Poucas vezes meu pai ia nos jogos. Quando eu chegava em casa
eu falava: “Quer conversar?”. Ele falava um monte de coisinha que eu não tinha
nem percebido. Eu tenho que agradecer toda a minha vida ao que ele cobrava. Às
vezes eu falava pra ele assim, porque o meu irmão, o Zoca, também veio pro
Santos, jogou no aspirante, e falavam assim: “Pô, Donda, o Zoca jogou e tal, e
eu não tô vendo você dar nenhuma bronca nele”. “Não, não, ele joga no meio de
campo, ele tá certinho.”
E você estava errado… [Risos]. Isso não provocou nunca na
família uma ciumeira do Zoca, de se sentir inferiorizado? Porque não é fácil
ser irmão do Pelé, né?
Olha, pra você ver, não teve nada assim, não. Quando o meu
pai também era o Grande Dondinho em Bauru e tudo, eu tava começando. Até o
pessoal brincava, eu brinquei várias vezes, até 58, já campeão do mundo: “É o
filho do Dondinho!”. Eu era o filho do Dondinho, eu não era o Pelé. Demorou um
pouco pra eu ser o Pelé, porque era uma fase em que todo mundo conhecia ele.
Teve uma vez em que o Baquinho veio jogar na Rua Javari e você
arrebentou com o jogo.
Pra você ver, foi um campeonato juvenil de São Paulo, o
campeão de São Paulo e o campeão do interior. Nós éramos de Bauru, a gente nunca tinha viajado. O BAC veio
e deu uma paulada nos jogadores de São Paulo. Foi quando começaram a falar mais
de mim. “É, tem um garoto lá, o filho do Dondinho…”. Mas eu ainda não era o
Pelé, era o filho do Dondinho. Foi na Rua Javari, né? Primeira saída nossa.
Onde, também, você fez um dos seus gols mais bonitos, contra o
Juventus, em 1959. Dava sorte a Javari, hein?
É, você vê. Coincidência, né? Depois de ter aparecido… Porque,
depois dessa decisão, aí é que o pessoal do Santos ficou sabendo. O deputado
Athiê Jorge Coury era o presidente na época e falou: “Pô, e aquele garotinho
lá?”. E o Waldemar de Britto, que era o treinador do BAC, em Bauru, e tinha
sido jogador da Seleção Brasileira, ele conhecia o presidente do Santos na
época e falou: “Ó, tem aquele garotinho da Rua Javari, eu posso arranjar pra
ele ir treinar no Santos”. E aí foi por isso que eu vim pro Santos.
Mas tem uma história que naquele dia você não jogou com a 10.
Quem jogava com a 10 era um outro menino, chamado Tiãozinho, não é isso?
Sim, eu joguei com a 9. O número 10 era o Tiãozinho.
E aí tem uma confusão que diz que o Tiãozinho andou rodando o
Corinthians, o Palmeiras…
A confusão é que o Tiãozinho, como ele jogou com a 10 nesse
jogo em que nós fomos campeões, em que o Baquinho foi campeão, o pessoal
começava a achar que o número 10 que veio pro Santos, que era o Pelé, era o
Tiãozinho, que tinha sido campeão com o Baquinho. A confusão foi essa, por
causa da camisa. Os caras achavam que o número 10, na época, era o Pelé, mas eu
jogava com a número 9. O Tiãozinho, depois, jogou em vários times, foi pra Jaú,
pro XV de Jaú…
Tem uma entrevista que você deu pro Armando Nogueira, depois de
um jogo contra o América do Rio, e ele escreveu uma crônica dizendo que te perguntou: “Quem é o
melhor jogador do Brasil?”, e você
respondeu: “Sou eu!”. “Quem é o melhor meia?”, e você respondeu: “Sou
eu, também!”.
Eu não sei em que época foi isso, mas eu era muito
brincalhão. Pode ser que a gente tenha falado, mas… Eu sempre brinco com
respeito à minha família, ao meu pai. Os caras falavam assim: “Vai nascer
alguém melhor do que Pelé?”, e eu falava: “Jamais vai nascer alguém melhor que o
Pelé, porque meu pai e minha mãe fecharam a máquina”. Então não ia ter mais [risos].
Você se sente mais amado e menos cobrado fora do Brasil do que
na sua própria terra?
Depende, fora da minha terra não me cobram nada, é só
alegria.
É por isso que você viaja tanto?
É diferente, é uma maneira de gostar, é um amor diferente. Para
o estrangeiro o Pelé é sempre o ídolo, ninguém cobra quase nada. No Brasil, por
eu ser brasileiro, às vezes o pessoal não entende que eu sou uma pessoa normal.
Sou um homem, portanto eu gosto das pessoas, tenho defeitos, tenho as minhas
preferências. O pessoal, às vezes, não aceita muito. Às vezes eu quero dar um
conselho, falar alguma coisa que eu acho que seria boa, e o pessoal já entende
mal. Por exemplo: quando eu pedi, no milésimo gol, para cuidar das crianças,
porque não tinha tanto trombadinha quanto tem hoje. Aí, você vê: muitos
jornalistas disseram que eu era demagogo, que eu estava querendo aparecer
falando das crianças.
Dessas cobranças todas, essa é a que mais te chateia?
Não, pelo contrário, essa é a que mais me glorifica, porque
hoje está aí a prova. As crianças daquela época já não são mais crianças, a
maioria delas está assaltando, roubando. Se tivesse dado educação, dado escola…
Agora, outro tema complicado que já me perguntaram duas ou três vezes é com
respeito à maioridade penal. É uma coisa difícil de responder. Se com 18 anos
as cadeias já estão cheias, a gente já não tem condições de controlar, imagina se
colocar os de 16 anos. Não tem estrutura pra isso. São opiniões que não dá pra
você discutir, porque quem é a favor não vai entender, vai sempre criticar, vai
sempre achar que está errado.
Até porque, de você, sempre querem opinião sobre tudo. Uma
pertinente à sua área: o uso de tecnologia no futebol. O que você acha?
Já tivemos várias conversas, eu já estive na Fifa,
inclusive, discutindo sobre isso. Acho que em alguns momentos, em alguns lances,
pode ser usado, mas tem lances que vão depender da capacidade, da visão do
árbitro. Teve uma discussão na Fifa sobre colocar chip na bola. Assim, se a
bola entrar na marca da linha, o juiz vai saber, pois existem muitos lances que
os juízes e bandeirinhas não veem. Eles acharam que isso seria perfeito. No
entanto, quando fizeram a experiência com o chip, parece que na África ou na
América Latina, com o sub-20, deu problema. Quando o goleiro punha a mão em
cima do chip, na bola, ele caía e não apitava, não detectava. Então ele entrou
com a bola pra dentro do gol, mas não detectou. Foi gol, mas houve falha.
E como você viu esse escândalo de corrupção da Fifa?
Para quem achava que a Fifa era certinha, foi realmente um
choque.
Você é amigo do Blatter?
Sou conhecido, sim. Eu fiquei quatro anos no Conselho do
Esporte e tal, então nosso contato vem desde essa época. É a mesma coisa que o
Brasil, né? Quando o Fernando Henrique me chamou para ser Ministro foi uma
alegria e tudo, mas depois que você começa a ter conhecimento é uma tristeza.
Você vê que o cara está do seu lado, você pensa que pode confiar no cara, mas
ele não é confiável.
E isso porque você é o Pelé, hein? Imagina o que não acontece
com um manezinho qualquer…
É a equipe, você trabalha com votação. O que machuca é que
muitas vezes você vê que o cara não precisa disso. A maioria dos políticos não
precisa, eles já têm a vida garantida, já são ricos. Agora, para o futebol, foi
bom ter acontecido isso. Pelo menos esclareceu, vai ser feita uma limpeza. Se
não limpar tudo, pelo menos vai dar uma aliviada.
Então, na política, você teve duas alegrias: quando chegou e
quando foi embora?
Eu aprendi. Só tive alegria, porque aprendi o que não devo
ser.
Não o incomoda o fato de você ser uma pessoa que não pode andar
de chinelo e ir à padaria comprar pãozinho em nenhum lugar do mundo?
[Risos.] Não, eu já me acostumei. Aliás, no exterior sempre
me fazem essa pergunta. Eu não fico chateado, a minha personalidade já foi
feita pra isso. Com 17 anos eu já estava na Seleção; com 16, no Santos. A minha
personalidade foi feita com isso, não foi uma coisa nova pra mim. Eu acho que
tem muita dificuldade o ator, o jogador de futebol que já tem seus 22, 23 anos
e fica famoso. Aí eu acho que é difícil, porque ele tem uma personalidade
formada, e acontece o negócio da fama.
E já aconteceu de o Pelé ser tiete? O Pelé já pediu o autógrafo
de alguém? Quem?
Já, quando eu admiro as pessoas. Quem? Várias pessoas! Tem
uma história legal. Quando eu fui pro Cosmos, eu fui estudar inglês na Berlitz School, lá nos Estados
Unidos. Eu queria melhorar meu inglês, porque eu achava que sabia, mas não
sabia. Aí falaram que o John Lennon estava na escola, e eu pensei que era até
brincadeira de um dos professores, que disse que ele estava estudando lá,
também. Eu encontrei com ele e falei: “Pô, em 66, quando os Beatles começaram, eu
queria ver eles na Inglaterra e não deixaram. Poxa, eu era da Seleção
Brasileira e não deixaram”. Contei essa história pra ele e ele disse que eles estavam
loucos pra cantar pra gente e tal.
Essa experiência nos Estados Unidos também é um dos seus
orgulhos, você semeou o que o Kaká colhe hoje…
Ah, é. E lá é muito organizado. Aqui, nas escolas, não temos
nada de educação esportiva. Lá, em algumas escolas, o cara primeiro tem que ser
bom aluno para depois poder jogar futebol.
A gente perguntou de Seleção, mas não falou especificamente do
Santos. Vai ser campeão brasileiro?
O grande susto do Santos, de quem é santista, era que o
Santos ficasse na zona perigosa. Dessa, nós já estamos livres. Agora,
honestamente, acho que pra ser campeão vai ser um pouco difícil.
Então quem vai ser?
Tá muito nivelado, tá muito igual, não tenho condições de
dizer quem vai ser.
O Santos não pega nem o G4?
G4 acho que dá pra pegar. O Santos sem um grande cobra, sem uma
grande estrela, mudou o técnico, o time acertou. Acertou o time, e em time que
está ganhando não se mexe. Tava todo mundo com medo de descer, né? Todo mundo
estava preocupado que podia cair e tal, mas eu acho que está bem, muito bem.
O Rei do Futebol tem medo de envelhecer?
Olha, rapaz, sabe que eu não pensei nisso ainda? Não, não me
preocupa muito isso, não.
Nem o Edson nem o Pelé pensaram nisso? Claro que também não
pensaram em medo de morrer…
Não, mas às vezes eu brinco com o que psicologicamente pode
ser algo parecido. Quando os caras falam: “Seu Edson, o senhor pode fazer…”.
Eu falo: “Não me chama de senhor!” [risos]. Pô, todo mundo me chamava de
Pelezinho, Dico, agora “seu”, “senhor”? Nessa hora eu acho que,
psicologicamente, está acusando alguma coisa.
E o segredo de chegar aos 75 anos com esse jeitão de quem tem
45, qual é?
É que eu sou um homem de Três Corações, o pessoal esquece
disso. Só tem um funcionando.
Seu plano de dar o pontapé inicial no Maracanã no jogo de
comemoração dos seus 100 anos, em 2040, ainda continua de pé?
Esse é o meu plano. E pode anotar aí: tem muita gente que
não vai estar mais lá pra ver, não…