Paixão, política e arte: moda em retalhos de camisas de futebol
Fã de futebol, o designer holandês Floor Wesseling lança moda com uniformes recortados
Dos mais estilosos e tecnológicos aos saudosos modelos “retrô”, uniformes esportivos foram incorporados ao mundo da moda há várias décadas, quando passaram a ser produzidos em larga escala. Camisas de futebol recém-lançadas são vendidas em média a 250 reais, enquanto “relíquias” podem facilmente ultrapassar os 1.000 reais no mercado especializado. Há, no entanto, quem não se importe em pegar a tesoura e “destruir” essas camisas – em nome da arte. Floor Wesseling, um designer holandês de 43 anos, vem popularizando cada vez mais o conceito de camisas mashup, composição criada a partir da mistura de dois ou mais itens. Com suas criações, o artista busca unir raízes culturais e políticas à sua paixão pelo futebol e pela moda.
Wesseling é um profissional de sucesso na Holanda e mantém um escritório de design em sua cidade natal, Amsterdã. Ele trabalhou na Nike entre 2011 e 2016, e criou camisas para a seleção de seu país, para as de Portugal, dos Estados Unidos e até do Brasil, na Copa de 2014. Os retalhos fazem parte de seu maior “hobby”, o projeto Blood In Blood Out, homenagem ao filme homônimo, dirigido por Taylor Hackford e lançado em 1993, que no Brasil foi traduzido para Marcados Pelo Sangue, e trata de misturas culturais. “Uma camisa de futebol é um retrato de personalidade”, explica.
O hobby nasceu durante a Euro-2004 como um “estalo”, quando um amigo lhe contou que mudaria para Milão e não sabia para qual time da cidade italiana torcer. Wesseling, então, deu de presente ao amigo uma camisa que era metade a da Inter de Milão e metade do Milan. A partir daí, rivalidade e política passaram a ser alvo de suas tesouras e máquinas de costura. Criou modelos como Falkland (unindo uniformes de Argentina e Inglaterra) e Intifada (Israel e Palestina) para transmitir mensagens de paz. “É como sempre digo aos críticos: o que seria de um time sem seu rival?”, diverte-se Wesseling, torcedor do Ajax, que já vestiu “pedaços” de uniformes dos rivais PSV e Feyenoord.
O trabalho de Wesseling ganhou as redes sociais nos últimos anos com a criação de uma linha “carreira” – com pedaços de camisas dos times em que o atleta jogou -, com que presenteia jogadores famosos – Ruud Van Nistelrooy, Wesley Sneijder, Ronaldinho Gaúcho e até o atual melhor do mundo, Luka Modric, já ganharam o mimo do artista. Atualmente, ele vende algumas criações em sua loja virtual por não menos de 500 reais. Fã do futebol do Brasil, o artista já esteve no país para uma exposição em Florianópolis (SC) e também durante a Copa de 2014, quando viu, das arquibancadas da Fonte Nova, na Bahia, a Holanda golear a Espanha vestindo uma criação sua. “Foi o jogo da minha vida.” Nesta entrevista, Wesseling explica seu projeto e revela suas camisas favoritas.
Quando surgiu o desejo de criar camisas de futebol? Jogo bola desde os oito anos. E até hoje, aos 43, gosto de usar camisas de futebol. Sempre achei os uniformes especiais, porque vestem bem e refletem uma identidade. Torna a pessoa parte de algo, seja no gramado, na arquibancada ou na rua, há um sentimento de companheirismo. E especialmente quando se é um turista, as pessoas conseguem “ler” sua personalidade. Onde quer que vá, levo uma camisa do Ajax, e quando visito outros lugares tento conseguir uma camisa local. Meu fascínio por camisas e a minha profissão de designer gráfico me permitiram trabalhar com isso. Sempre sonhei em criar a camisa do clube do meu bairro, o Zeeburgia, a do Ajax e a da seleção holandesa. Realizei dois deles e sigo esperando um convite do Ajax.
De onde veio a ideia de recortar camisas e criar novos modelos? O projeto Blood In Blood Out começou por causa do meu fascínio pela heráldica (o estudo de brasões e escudos) e por querer usar isso no meu trabalho. Busquei várias formas de trazer de volta essa linguagem visual para as ruas na forma de cartazes e grafite, por exemplo, e um passo lógico foi transformar a heráldica em algo “usável”, ao dividir camisas de futebol. Isso nasceu com um ideia que tive durante uma partida entre Holanda e Alemanha na Eurocopa de 2004, quando um amigo me disse que moraria em Milão e não sabia se torceria para a Inter ou para o Milan.
O senhor, então, fez uma camisa metade Milan e metade Inter? Sim, mas esta não foi minha primeira criação. No dia seguinte fui a um mercado e comprei camisas “baratas” de Holanda e Alemanha e fiz as primeiras amostras do que mais tarde se tornaria meu projeto. Os primeiros resultados foram legais, mas logo vi que tinha de usar camisas originais para ter um resultado melhor. Então, depois de uma semana, comecei a cortar e costurar minha própria coleção de camisas. Daí, nasceu a camisa “AC Inter Milan”. Desde então, comecei a exibir camisetas e seguir as medidas e proporções da heráldica. A partir de 2005, as obras começaram a ser expostas em galerias e museus. O mundo popular e da arte se uniram e o projeto nasceu.
No Brasil, entre as décadas de 90 e 2000, foram vendidas algumas camisas artesanais, divididas ao meio, para provocar rivais – por exemplo, uma unindo Corinthians e Boca Juniors, num período de vitórias do clube argentino diante do Palmeiras, rival corintiano. Quando e onde esse conceito de camisas misturadas nasceu? Não sei, na verdade. Venho de um bairro de Amsterdã que desde a década de 70 recebe muita gente do Suriname, país sul-americano colonizado pela Holanda. Lá, eles geralmente torcem por Holanda e Brasil. E me lembro de, durante a Copa de 1998, ver nas ruas camisas divididas das duas seleções pela primeira vez. Nunca tinha visto essa de Corinthians e Boca, mas achei uma combinação bem interessante.
Neste projeto, o senhor geralmente une camisas de rivais. Seria uma mensagem de paz? Durante os primeiros anos, combinamos muita rivalidade, com a coleções dos dérbis. Isso me causou alguns problemas, mas sempre digo: “O que seria de um time sem seu rival?” No meu caso, o Ajax faz parte da identidade do Feyenoord, e vice-versa. E minhas camisetas contam a história dessa identidade. As primeiras de rivais foram de nações, como Inglaterra x Irlanda, algo mais político, até religioso. Essas eram realmente para unir as nações, mais “usáveis”. Essas criações foram frequentemente banidas dos estádios, mas acabaram no noticiário.
Como torcedor do Ajax, o senhor usaria uma camiseta do Feyenoord ou PSV? Sim, já usei. Pessoalmente, tenho mais rivalidade com o PSV porque no meu período de torcedor sempre foi uma ameaça maior. Meu colega de trabalho, Marques Malacia, é um grande torcedor do PSV, então nos provocamos e nos divertimos muito. Em 2010, fomos a uma premiação de design, ambos vestindo uma camisa metade Ajax metade PSV, foi bem engraçado.
Algumas pessoas consideram as camisetas mashup feias, mas descoladas. Qual é a melhor ocasião para usá-las? Nós fazemos essas camisetas com e por um motivo. No início, só queríamos contar histórias e não pensávamos que as pessoas realmente usariam a roupa. Mas depois de criar peças “culturais” e políticas, as pessoas começaram a me pedir para fazer modelos que refletissem sua verdadeira identidade. Com o nosso projeto de arte, conseguimos fazer uma camiseta com o “sangue” de uma pessoa, sua origem. Por exemplo, há várias pessoas de ascendência grega e portuguesa, ou marroquina e holandesa, e com essas camisas divididas elas passaram a se sentir representadas, não teriam de escolher uma só nação. Isso nos fez pensar em começar o projeto com peças únicas e personalizadas. Quando as pessoas realmente querem usar as camisas, pensamos em peças mais usáveis, com tons semelhantes ou que se conectam bem, buscamos soluções de design.
As criações para atletas famosos deram mais popularidade ao senhor… Sim, depois de trabalhar para a Nike e me aproximar de jogadores profissionais, começamos a fazer “camisas de carreira”, como as de Sneijder, Van Nistelrooy, Modric, etc. Essas são peças de arte que damos aos atletas como presentes, com as cores das clubes que defenderam na carreira. Em troca, o jogador posa para a nossa próxima publicação.
A Nike agora vende camisetas oficiais de mashups, como uma do Barcelona. Foi ideia sua? Bem, eu não me juntei aos poucos funcionários que se mudaram para o QG da Nike em Portland, nos EUA, depois da reorganização da empresa na Holanda, mas os caras que estão lá conhecem meu trabalho e viram essa oportunidade. É bom que as pessoas reconheçam meu projeto e façam algo derivado dele.
Para o senhor, qual é a camisa mais bonita de todos os tempos? Adoro várias, como a da Fiorentina de 1999, algumas do Ajax dos anos 80 e 90, as da seleção da Holanda de 1988 e 1998, Alemanha de 1988, Itália de 2000, SC Heerenveen, Inter e Milão… A Sampdoria sempre tem belas camisas, não importa o ano… outra muito linda é do Airdrieonians FC de 1993, com botões e uma gola realmente incrível… É muito difícil escolher uma, mas a da Holanda de 1988 é muito especial para nós e extremamente difícil de achar, então talvez essa seja a minha escolha óbvia.
E sua melhor criação? A camisa reserva da Holanda em 2014, a azul com a qual o time venceu a Espanha por 5 a 1, em Salvador, em 13 de junho de 2014, na sua Copa do Mundo! Eu estava lá e esse se tornou o melhor jogo da minha vida. Durante o fim do primeiro tempo, a chuva chegou e mudou os jogadores holandeses, assim como seus uniformes. Criei essa camisa com a ideia abstrata de água e construção, quis criar um brilho no peito, com um gradiente de azul escuro para o claro, de baixo para cima. Essa foi minha assinatura de design na Nike e essa camiseta foi o teste definitivo.
A camisa ia de um roxo escuro/azul marinho a um azul royal brilhante, em um gradiente em passos matemáticos de 10% mais leve até o topo em formas de diamante. De perto, era uma estrutura abstrata e moderna. De longe (na televisão e no estádio) os espectadores viram um gradiente fluido. Quando molhada pela chuva, o resultado do brilho se torna ainda mais forte. Isso aconteceu naquela tarde na Bahia. Mais tarde, soube que os holandeses perderam Salvador para os espanhóis no século XVII e, especialmente depois da final da Copa do Mundo de 2010, quando também perdemos para a Espanha, aquela goleada em Salvador representou uma vingança. Com esse jogo a camisa se tornou um clássico instantâneo.
Qual é a sua camisa e jogador favoritos do Brasil? Adoro Ronaldo e Romário, ainda que, infelizmente, ambos tenham jogado no PSV, mas meu favorito é Ronaldinho. Tive a chance de conhecê-lo, fiz uma camisa para ele como embaixador do Barcelona. Isso foi muito legal. E pude criar os uniformes do Brasil para a Copa de 2014. Durante a pesquisa, me deparei com as camisas da Umbro na década de 90, que eram legais, ou as mais antigas da década de 80 com o belo brasão usado por Sócrates! Ele era fabuloso e poderia ser outro dos meus jogadores favoritos, vi um documentário sobre o Corinthians e tenho muito respeito pelo que ele e outros fizeram para a comunidade em todo o país, mas infelizmente, pela minha idade, não acompanhei seu auge. Mas a melhor camisa do Brasil para mim é a de 2006, com um design limpo, bom ajuste, ótimo escudo, uma gola perfeita e os tons exatos de verde e amarelo.
O senhor conhece os clubes brasileiros? Qual a camisa e o escudo mais bonitos? Claro, gosto do Botafogo, do Vasco da Gama, do Flamengo (adoro a camisa e o escudo com as letras CRF), do Fluminense (gosto da combinação de cores), também do Santos, São Paulo… Mas meu uniforme preferido é o do Corinthians, que tem um escudo incrível. Para mim, o escudo é a parte mais importante de uma camisa. Além disso, o projeto Blood in Blood Out esteve no Brasil em um festival de design em Florianópolis, em 2015. Por isso, as camisas do Avaí e do Figueirense também são especiais para mim, assim como a cidade, cujo nome significa “terra de Floriano”, o equivalente em português do meu nome, Floor.