Os mandamentos de Jorge Jesus: ‘O treinador tem de ser criativo’
Técnico português do Flamengo elogiou o nível do Brasileirão e falou a VEJA sobre sua ideia de jogo ofensiva. “Meu time proporciona espetáculo”
Chovia intensamente no Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo, quando Jorge Jesus, o popular “mister” rubro-negro, apareceu com os cabelos longos e grisalhos perfeitamente penteados, em contraste ao aspecto desalinhado que costuma exibir, aos berros, às margens dos gramados. O treinador português de 65 anos topou abrir um pouco da intimidade de seu trabalho a VEJA, para uma reportagem da edição desta semana sobre o impacto que ele e seu xará argentino, Jorge Sampaoli, do Santos, vêm provocando no futebol brasileiro. Neste sábado, 14, no Maracanã, os clubes dirigidos por gringos decidem o simbólico título do primeiro turno do Brasileirão – o Flamengo lidera com 39 pontos, dois a mais que o visitante paulista. E além do primeiro nome e do fato de serem estrangeiros, uma característica une essencialmente a badalada dupla: o gosto pelo risco e pelo futebol bem jogado.
“O treinador tem de ser um criativo, assim como o jogador”, resumiu Jesus, que rejeita o tom professoral e se define como um autodidata. Em apenas três meses de trabalho, o técnico com passagens por Benfica e Sporting conseguiu impor sua ideia de jogo ofensiva, inspirada no gênio holandês Johan Cruyff, que potencializou o jogo de Arrascaeta, Bruno Henrique, Gabigol e companhia. O português é disciplinador, proíbe o uso de celulares nas refeições e é bastante rígido com atrasos – que, garante, ainda não ocorreram. “Nunca tinha visto um grupo com tanta consciência profissional e uma paixão tão grande por treinar e trabalhar.” Na breve conversa, Jorge Jesus falou sobre seus métodos, elogiou o nível do Campeonato Brasileiro e disse esperar abrir as portas a novos técnicos e jogadores europeus.
O futebol brasileiro perdeu sua essência, o gosto pelo ataque? Não, pelo contrário. O Brasil continua sendo uma referência e essa vocação ofensiva é o que eu espero dos jogadores do Flamengo. Agora, variantes do jogo evoluíram. O conceito do que é o jogador brasileiro estava muito valorizado e evoluído há uns 15, 20 anos, e a Europa adaptou-se muito a este conceito. O caso mais marcante é o do Pep Guardiola com seu “tiki-taka”, a bola no pé, algo que o Brasil já tinha havia muitos anos. Houve várias evoluções no jogo que vão além disso e, na minha opinião, o Brasil não perdeu, nem ficou antiquado.
O senhor já disse ser um admirador do Flamengo de Zico. Sua forma de ver o futebol tem influências do Brasil? Tem. A forma como o Flamengo joga é um conceito que o brasileiro sempre teve, uma capacidade técnica grande, uma ideia de preparação de jogo com muita bola no pé até atingir certas zonas do campo.
O futebol português evoluiu de forma incrível nos últimos anos. Vê isso como um fenômeno pontual ou o país deve se consolidar como uma potência do futebol? Não é pontual. Portugal tem hoje o maior jogador do mundo de futebol, Cristiano Ronaldo, o melhor de futsal, Ricardinho, e até de futebol de praia, Madjer. Tudo que é com os pés, Portugal está bem, só falta agora ter a melhor jogadora. Também é o atual campeão europeu, da Liga das Nações, tem jovens talentos como João Félix e outros. É como o Brasil, um viveiro de jogadores. Isso se deve à qualidade na formação, os principais clubes de Portugal, caso de Benfica, Sporting, Porto, Braga e Guimarães, tem nível muito grande de condições de trabalho nas categorias de base. Isso fez evoluir o futebol em Portugal, inclusive o nível dos treinadores.
O futebol europeu costuma contratar diversos jovens talentos brasileiros, muitas vezes a preços baixíssimos. Em Portugal, o senhor fez uso deste expediente muitas vezes. É correto dizer que os estrangeiros valorizam mais a nossa base do que nós mesmos? Não, é que o futebol brasileiro produz muitos jogadores e não se consegue controlar todos, há imensos clubes e um leque vasto de talentos, alguns até desconhecidos por aqui, que saem, se tornam grandes jogadores e depois retornam, como Deco e tantos outros.
Na Europa, o atleta brasileiro é visto como festeiro, pouco profissional? É verdade, em Portugal havia essa imagem. Dizia-se que só podíamos ter até quatro brasileiros por time, se não virava uma escola de samba. Mas isso não é verdade e eu sou prova disso, pois já trabalhei com muitos brasileiros. E hoje posso falar pelo Flamengo: é um grupo fantástico, nunca tinha visto um grupo com tanta consciência profissional e uma paixão tão grande por treinar e trabalhar.
Questionados sobre seus métodos, muitos atletas citam o termo ‘intensidade’. Essa é uma característica marcante sua? Não sei. Intensidade não se mede, é característica de cada treinador. O treino de futebol não é uma ciência exata, cada treinador tem seus métodos. Sempre digo que o treinador tem de ser um criativo, assim como o jogador. Não basta ser bom taticamente. Para ser um grande treinador, tens de ir muito mais além do treino de campo.
Mas o que o senhor trouxe de novidades ao Brasil? Eu não trouxe coisas diferentes só ao Brasil, eu propus novidades em todos os lugares onde trabalhei. Em Portugal, há N treinadores que me seguem. Minhas ideias já eram diferentes na Europa. Aqui talvez seja surpresa, mas este é nosso trabalho. Tento deixar um legado, ideias do que penso ser melhor para as equipes. Isso não quer dizer que somos o suprassumo, mas acho que temos acrescentado em resultados esportivos e no entusiasmo dos adeptos (torcedores). Para além de ganhar, meu time proporciona espetáculo, isso é muito importante. Um dos treinadores que eu segui, Johan Cruyff, dizia que não basta ganhar, é preciso proporcionar espetáculo ao torcedor que paga o ingresso. Ele dizia que preferia ganhar de 5 a 4 do que 1 a 0.
Uma característica clara de seu time é dar poucos passes para trás ou para o lado, é um jogo bastante vertical. Esta é uma ordem sua? Não. Tocar para frente nem sempre é a melhor maneira de se chegar ao gol, mas isso tem uma justificativa no posicionamento tático da equipe que, indiretamente, obriga meus jogadores a tocarem para frente. Eu não digo a eles que têm de ser assim, é o esquema que diz.
O senhor impõe o seu estilo aos atletas ou é a característica do elenco que molda a forma de jogar? É uma mistura das duas coisas, elas andam juntas, uma só não cola.
O senhor já assistia ao Campeonato Brasileiro pela TV, mas agora pode vivenciá-lo. O nível da liga te surpreendeu? Sim, tanto pela paixão, quanto pela qualidade das equipes, coletivamente e individualmente. O Campeonato Brasileiro é muito forte, você pode perder qualquer jogo e isso é um indicador da competitividade.
Mas essa é uma longa discussão: o Brasileirão é apenas equilibrado ou também é bom tecnicamente? É bom, é bom. O brasileiro nasceu para jogar futebol. O campeonato é bem jogado, este ano está muito forte. Os primeiros cinco colocados disputariam qualquer liga europeia para lutar pelas primeiras posições. Não tenho dúvidas disso, porque conheço.
Por aqui, reclama-se muito do calendário. Quanto prejudica jogar toda quarta e domingo? Eu não preciso mudar totalmente o time para recuperar uma equipe que joga de três em três dias, há várias maneiras de descansar. Essa é minha opinião. Na Europa, não trabalhamos assim, não vemos o jogo assim. Acho que o primeiro a dar certo descanso e rotatividade aos times foi o Alex Ferguson, no Manchester United, mas não mudando os 11 jogadores, apenas aqueles que julgar necessário. Penso da mesma forma. Na Europa também se joga duas vezes por semana, intercalando competições.
Recentemente, o Boca Juniors contratou o italiano Daniele De Rossi, o Flamengo tem um zagueiro espanhol (Pablo Marí) e foi atrás do italiano Mario Balotelli. As portas do futebol sul-americano estão se abrindo aos europeus? Essa questão é muito mais financeira do que de qualidade. Até o próprio futebol argentino hoje começou a ter uma capacidade melhor de contratar ou fazer regressar seus melhores jogadores. E a partir do momento em que o Brasil começar a contratar alguns estrangeiros de renome, que venham a acrescentar, com certeza vai abrir suas portas à Europa, porque começa a ser visto pelo mundo do futebol. A paixão do futebol não está na Europa, está na América Latina.