Orgulho basco: Athletic Bilbao, o clube que não contrata estrangeiros
Clube do País Basco mantém sua filosofia há 100 anos e jamais foi rebaixado. É um rebelde em meio ao futebol globalizado
“Por aqui não vais a encontrar camisas do Barcelona ou do Real Madrid. Bilbao é toda vermelha e branca”, cravou Nika Cuenca, diretor de comunicação do Athletic Club, o orgulho da maior cidade do País Basco, em um dos diversos ótimos restaurantes locais. Dois dias de caminhada pela cidade lhe deram razão. No coração de jovens e idosos fluentes em euskara, o antigo idioma basco que muitos fazem questão de preservar, só há lugar para o Athletic, uma agremiação singular por um motivo claro: o respeito às suas tradições. Trata-se do único clube de elite que não contrata jogadores estrangeiros (nem mesmo espanhóis, apenas atletas nascidos ou formados no País Basco são admitidos), um rebelde em meio ao futebol globalizado.
O País Basco é uma região localizada no norte da Espanha e no sul da França com pouco mais de 3 milhões de habitantes e uma cultura bastante marcante e particular. Os movimentos nacionalistas na região ganharam força durante a ditadura franquista (1939 a 1975) e arrefeceram com o cessar-fogo permanente proclamado pelo grupo terrorista ETA em 2011. Neste contexto, o Athletic cresceu e conseguiu se manter fiel a seus princípios. Com oito taças, a última em 1984, é o quarto maior ganhador da Liga Espanhola, e o segundo maior vencedor da Copa do Rei, com 24 títulos. Também divide com Real Madrid e Barcelona o orgulho de jamais ter sido rebaixado.
“Se decidíssemos contratar estrangeiros perderíamos nossa essência sem ter garantia nenhuma de sucesso. Basta ver a Real Sociedad, que passou a comprar atletas de fora e foi rebaixada”, diz Borja González Bilbao, diretor responsável pelo estádio do clube, o moderníssimo San Mamés, alfinetando o rival da cidade vizinha San Sebastián, contra quem o Athletic disputará o clássico basco no próximo domingo 9. Antes, nesta quinta-feira 6, o time encara o Barcelona, em casa, em busca de uma vaga na final da Copa do Rei.
Curiosamente, o clube que não contrata estrangeiros tem origem inglesa – daí vem o nome, Athletic, no idioma de Charles Miller. Foi fundado em 1898 por mineiros britânicos que viajaram a Bilbao para explorar seu abundante aço. No início, vestia azul e branco, como o Blackburn Rovers inglês. Anos depois, estrearia as cores da cidade, branca e vermelha. A partir de 1919, o clube passou a proibir atletas alheios à cultura basca. Ao longo deste século de restrições, houve raros registros de atletas nascidos no exterior, mas sempre com laços familiares ou emocionais com a região. Um deles foi um brasileiro, o ex-goleiro Vicente Biurrun, que nasceu em São Paulo, mas migrou ainda criança para a terra dos pais. O clube tem outra ligação com o futebol pentacampeão: celebrou seu centenário diante da seleção brasileira. “Me lembro o quanto foi difícil convencer o Brasil a vir. No fim, até Ronaldo e Rivaldo apareceram e não conseguiram ganhar”, recorda com saudades o diretor Tomás Ondarra, sobre o empate em 1 a 1 em amistoso realizado em 31 de maio de 1998.
Para se manter na elite e almejar grandes objetivos, como participar das copas europeias, o time oferece ótima estrutura para suas categorias de base.
Um dos responsáveis por lapidar talentos é o ex-zagueiro Rafael Alkorta, com passagens por Athletic, Real Madrid e seleção espanhola. “É difícil explicar esse sentimento, que só cresce com o passar dos anos. Toda criança em Bilbao sonha em jogar no Athletic e entende seus valores”, explica Alkorta, hoje dirigente, no enorme centro de treinamento de Lezama, que tem mais de 50 anos e oito campos de grama natural.
O Athletic joga duro diante da concorrência dos outros clubes bascos como Alavés, Eibar e Real Sociedad. Tem 150 escolinhas conveniadas no País Basco e trata de fisgar atletas ainda bem jovens. “É quase impossível que surja um craque basco sem que tenhamos conhecimento”, explica Alkorta.
Todos no clube garantem que o respeito às tradições nada tem a ver com xenofobia ou racismo. A atual estrela do time, aliás, é um jogador é negro: Iñaki Williams, que é filho de ganeses e surgiu em um clube da região, o Pamplona. O clube aceita e costuma com frequência recorrer a treinadores estrangeiros. O argentino Marcelo “El Loco” Bielsa, vice-campeão da Copa do Rei e da Liga Europa de 2012, é lembrado com carinho pelos atuais dirigentes – que se divertem ao recordar suas manias, como a de não tirar os moletons de treinamento nem mesmo em ocasiões de gala.
San Mamés: modernidade e tradição em harmonia
Se já não consegue competir por títulos como no passado, o Athetic certamente está na elite europeia no quesito casa. O novo San Mamés é um estádio multiuso moderníssimo, erguido em 2013 no mesmo local onde estava localizada a centenária “Catedral” no passado. O local com capacidade para 53.000 torcedores será uma das sedes da Eurocopa de 2020.
“Ao contrário do que fizeram clubes como o Atlético de Madri, decidimos permanecer em nosso bairro, em respeito ao sentimento de nossos torcedores e aos donos dos bares ao redor de San Mamés”, explica o guia do tour pelo estádio, que custa 14 euros (cerca de 65 reais). O clube tem 45.000 sócios e o estádio está quase sempre repleto.
A nova “Catedral” é um gigante encravado na zona mais turística de Bilbao, a 20 minutos a pé do Guggenheim, museu inaugurado em 1997 que se tornou uma referência na Europa e revitalizou a região. A arquitetura basca, aliás, é cada vez mais valorizada no mundo e tem o novo San Mamés como um de seus tesouros. Cada espaço é devidamente planejado e repleto de detalhes luxuosos. O segundo anel é inteiramente formado por áreas VIP e restaurantes renomados. Os 52 camarotes suportam cerca de 3.000 pessoas.
Por sua suntuosidade, é possível dizer que o San Mamés custou baratíssimo: cerca de 180 milhões de euros (830 milhões de reais, metade do valor do Mané Garrincha, o elefante branco de Brasília). Além de jogos de futebol, o estádio em Bilbao recebe diversos eventos e concertos musicais. Nos últimos anos, o San Mamés ganhou diversos prêmios de arquitetura. “Nosso mérito foi buscar soluções criativas e trabalhar com diferentes projetos locais em cada setor do estádio”, explica Borja González Bilbao, o diretor responsável. Nesta quinta, o local receberá o grande artista da bola, Lionel Messi, um velho carrasco do Athletic. A confiança na cidade, no entanto, é absoluta.