Opinião: ataques contra Cássio e familiares vão muito além de ingratidão
Ameaças a jogadores, até mesmo ídolos históricos como o goleiro do Corinthians, vêm se tornando uma triste e inaceitável rotina
No último dia 28, Cássio completou exatos dez anos de Corinthians. Chegou ao Parque São Jorge como um desconhecido jogador revelado pelo Grêmio, com passagem pelo futebol holandês, e em poucos meses já se tornou uma lenda alvinegra ao brilhar intensamente nas conquistas da inédita Libertadores e do Mundial de Clubes de 2012. De lá para cá, o “gigante” vestiu a camisa corintiana 577 vezes e ergueu nove troféus, incluindo os Brasileiros de 2015 e 2017 e quatro campeonatos paulistas. Foi, portanto, protagonista da era mais vitoriosa de um dos clubes mais populares do Brasil. Nem assim, escapou da triste e cada vez mais costumeira rotina de violência que permeia o futebol nacional.
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Pela manhã, Cássio e outros líderes do elenco se reuniram com membros de torcidas organizadas insatisfeitos com o momento do time e com a postura dos atletas. Nas redes sociais, a Gaviões da Fiel emitiu um comunicado no qual repudiou uma suposta falta de “vontade e raça” — mantendo a velha prática de resumir todos os problemas em campo a “suar a camisa” e “dar carrinho” — , e deixou claro que “a paciência acabou”, com um lamentável alerta final: “ou joga por amor ou joga por terror”. O clima de intimidação não se limitou à porta do CT ou notas oficiais.
Janara Sackl, esposa de Cássio — muitas vezes apontada pelo goleiro como a principal responsável por manter seu foco na carreira e pela retomada da boa forma que rendeu títulos importantes ao Corinthians nos últimos anos — recebeu ofensas e até uma ameaça de morte nas redes sociais. Segundo o portal Ge, um perfil identificado como $heik Caçador, de conta betosccp199 no Instagram, enviou uma imagem na qual aparece um revólver e suas respectivas balas com uma camisa do Corinthians ao fundo, além de áudios com ataques a Cássio e também ao zagueiro Gil. O goleiro de 34 anos já realizou boletim de ocorrência, e foi apoiado em nota oficial pelo clube, enquanto sua esposa fechou as redes sociais.
Antes, no entanto, Janara chegou a bater boca com torcedores que se acharam no direito de comentar em uma foto (na qual ela parabenizava a mãe pelo aniversário!), exigindo a saída de Cássio do clube. “Manda seu marido sair fora do Corinthians, já deu a panelinha dele”, escreveu o seguidor. “Orando para isso. Já deu esse bando de torcedor ingrato e sem vergonha”, rebateu a esposa. Antes fosse apenas ingratidão. O clima que sempre foi tóxico, muitas vezes incentivado também por técnicos, dirigentes, jornalistas e até pelos próprios atletas, vem se tornando insustentável em tempos de redes sociais.
Ao longo de sua centenária história, o Corinthians se acostumou a ver grandes ídolos sendo mal-tratados e deixando o clube pela porta dos fundos. Foi assim com Rivellino, Edilson, Tevez e tantos outros. Até mesmo Ronaldo Fenômeno teve seu automóvel vandalizado. Certa vez, atuando no México, o lateral Fábio Santos chegou a dizer que sentia “saudades da Gaviões quebrando seu carro”. De volta ao clube, já convivendo com o declínio natural para um veterano, o lateral-esquerdo deve ter percebido que não se pode romantizar violência, nem por brincadeira.
É evidente que o clima de intolerância não se resume a membros da chamada Fiel Torcida e que a posição de meia dúzia não representa a de milhões de torcedores. Mas cenas do tipo acontecem diariamente em todos os clubes brasileiros, dos maiores aos menores. Estava prevista para hoje uma reunião entre membros das organizadas do Flamengo com líderes do elenco. O encontro acabou adiado. Invasões de campo, atos de racismo e homofobia, brigas entre torcedores. No Brasil, até mesmo a cabine do VAR já foi vítima de violência.
O “clubismo” é celebrado por páginas de humor, sem as devidas ressalvas sobre seus efeitos colaterais. Derrotas normais são tratadas como vexames, tanto nas mesas de bar quanto na imprensa. Os dirigentes parecem não buscar soluções (ao contrário, muitas vezes são eles próprios a inflamar a torcida), muito menos o poder público, que se limita à tola prática de exigir presença de torcida única nos clássicos, algo que estraga a festa das arquibancadas sem resolver o problema das brigas entre organizadas fora das arenas.
Um equívoco comum nesta discussão é dizer que quem pratica este tipo de violência ou intimidação no futebol “não é torcedor, mas um vândalo, um bandido”, como se fossem condições excludentes. Não! São, sim, torcedores, fanáticos no pior sentido da palavra, e que se sentiram cada vez mais autorizados a destilar seu ódio no ambiente das redes sociais. Eles se enganam, porém, se pensam se tratar de “terra de ninguém.” Cássio fez muito bem ao denunciar seu agressor. E é completamente compreensível que sua esposa, mãe de seus filhos, esteja “orando” para que chegue uma boa proposta do exterior. Neste caso, seria chamado de “mercenário”, outro termo comum entre os fanáticos, como se fosse um crime o profissional de futebol buscar melhores condições de trabalho. Pare, pense e seja sincero: o que você faria no lugar deles? Se sentiria seguro no ambiente do futebol brasileiro?