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Olha o que elas fizeram

A transmissão da Copa do Mundo de futebol feminino pela Globo é um extraordinário passo a caminho de uma evidência: a igualdade entre os gêneros

“Olha o que ele fez, olha o que ele fez!” Quem quiser acompanhar os indefectíveis bordões de Galvão Bueno, carimbo de suas transmissões das partidas da seleção brasileira, terá de acordar cedo no domingo 9. Ele não foi escalado para a partida entre Brasil e Honduras, amistoso preparatório para a Copa América, que será disputada em Porto Alegre, às 16 horas. O locutor fará a narração de outro jogo, matinal, às 9 horas. Galvão transmitirá a estreia da seleção brasileira feminina na Copa do Mundo da França, contra a Jamaica. Há ineditismos: é a primeira vez que a Globo exibirá o torneio ao vivo e pela primeira vez a voz mais conhecida da televisão terá o apoio de duas mulheres — a repórter carioca Carol Barcellos estará à beira do campo no Stade des Alpes, em Grenoble, e a paulista Ana Thaís Matos fará os comentários. Para ela, trata-se de uma reparação histórica. “Muitas colegas, até melhores do que eu, pararam pelo caminho por causa do preconceito”, diz Ana Thaís.

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Até muito recentemente, a participação das mulheres no futebol, dentro e fora de campo, era tratada com negligência, na hipótese mais benigna, inclusive pelas emissoras de televisão — a própria Globo, que detém os direitos de transmissão da Copa feminina desde 2007, nas últimas três edições vendeu os direitos de exibição do campeonato a suas concorrentes, por falta de ibope. Era decisão esperada, dado o percurso da modalidade no Brasil, quase sempre à sombra. Entre os anos de 1941 e 1979, a prática do futebol por mulheres era vetada por lei (leia no quadro abaixo). Houve, claro, como em todos os períodos de proibição, relatos de heroísmo, de insurgência. Um caso foi o da mineira Léa Campos, que fez o curso de arbitragem de futebol em 1967, mas levou quatro longos anos para pegar seu diploma. “João Havelange, o presidente da Confederação Brasileira de Desportos (órgão que foi substituído pela atual CBF), me disse que mulher tinha de lavar roupa e não era feita pra futebol”, afirma Léa. Em 1971, depois de receber uma carta escrita de próprio punho pelo general Emílio Garrastazu Médici — um ávido frequentador de estádios —, Havelange foi obrigado pelo então presidente da República a convocar a imprensa e anunciar, de cara lavada, que o país havia formado a primeira árbitra do mundo. Histórias como a de Léa estão sendo compiladas desde o mês passado pelo Museu do Futebol, encravado no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, em parceria com o Google, para a montagem do que foi chamado de Museu do Impedimento, um acervo virtual de documentos, registros e fotos dessa passagem infeliz da sociedade brasileira. Sem a luta das pioneiras, dificilmente teríamos em campo hoje uma atleta como a alagoana Marta, eleita seis vezes a melhor futebolista do mundo, e Galvão Bueno estaria fadado a só dizer “olha o que ele fez”, e não um “olha o que elas fizeram”.

Embora a Globo — e outras grandes emissoras dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia — tenha decidido iluminar a Copa do Mundo das mulheres, o fosso ainda é imenso quando ela é comparada com sua versão mais antiga, feita só de testosterona. Espera-se, agora, no Mundial feminino, que se ultrapasse o recorde de audiência da Copa de 2015, no Canadá, vista por 764 milhões de telespectadores ao redor do planeta — a Copa da Rússia, aquela em que Neymar não parava de cair, foi acompanhada por um público cinco vezes maior: 3,5 bilhões de pessoas. Há discrepância também nos valores distribuídos pela Fifa às equipes participantes. Em 2018, as 32 seleções de homens receberam 400 milhões de dólares. As 24 seleções femininas de 2019 dividirão um pote de apenas 30 milhões de dólares. É a tradução, em cifras, de uma desigualdade hoje inaceitável. Cabe outra reflexão de Ana Thaís Matos: “Enquanto se veem poucos negros e gays — pelo menos assumidos — e poucas mulheres, parece que o esporte é só para o homem branco e heterossexual. Pode soar como clichê, mas a pluralidade começa no instante em que há espaço para todo mundo, de modo democrático”. A Copa do Mundo feminina é, para além do esporte, um belo momento de uma nova e necessária postura.

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Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638

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