O teorema de Curry
Pré-convocado para a Olimpíada do Rio, o armador do Golden State Warriors virou o grande nome de uma reviravolta na principal liga de basquete do mundo: na NBA, agora, todas as equipes querem mais arremessos de 3 pontos.
Chuá, chuá, chuá – três, quatro, cinco, até onze vezes em um único jogo, como aconteceu em 2013 numa partida contra o New York Knicks. Por um átimo de segundo faz-se silêncio no ginásio. Stephen Curry sobe cerca de meio metro do chão e solta a bola. Numa parábola que sai de suas mãos em um ângulo de 50 a 55 graus, nem mais, nem menos, o couro de 623 gramas cruza o ar, vence os 7,25 metros da linha de 3 pontos, desafia a gravidade e rasga metaforicamente a rede de náilon. O ruído, multiplicado por um microfone colado à tabela, é a senha para um coro de suspiros na arena e, certamente, diante da televisão. Chuá, chuá, chuá. É quase teatral, dramático, o tempo preciso parece extraído de uma peça de jazz. Curry deixa a bola sair de suas mãos três décimos de segundo depois de iniciar o arremesso – um mísero mas fundamental décimo de segundo mais rápido que os demais jogadores. É velocidade que desnorteia os marcadores.
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Aos 27 anos, o armador Wardell Stephen Curry II, filho de um ex-jogador, o camisa 30 do Golden State Warriors, de Oakland, na Califórnia, começa a fazer história debruçado nas estatísticas. Não é de agora o brilho de Curry – nas quadras profissionais desde 2009, na temporada de 2014-2015 ele foi escolhido o MVP, the most valuable player, o melhor do ano, ao levar o Warriors a um título que não vinha havia quarenta anos.
O biênio 2015-2016 segue na mesma toada, e a montanha de marcas o faz grande. Algumas, de perder o fôlego: Curry, no atual torneio, converte uma média de 30 pontos por partida (o segundo colocado não chega a 28 por jogo). Até a última terça, 26, Curry havia disputado 459 partidas na NBA. Em arremessos de 3 pontos, o armador registrava 1 401 cestas em 3 165 tentativas. Esse aproveitamento, de 44,3%, o instala como o segundo jogador mais preciso da história da liga americana em tiros de longa distância – o primeiro da lista é justamente o treinador de Curry no Warriors, Steve Kerr (726 em 1 599, 45,4%), que jogou no Chicago Bulls dos anos 90 ao lado do inalcançável Michael Jordan. É de Curry, aliás, o recorde de cestas de 3 em uma só temporada: 286. Desde 2012, ele foi o jogador da liga que mais arremessou (e o que mais acertou) de trás da marca de 7,25 metros, com três quebras de recorde. Na atual temporada, sua pontaria está ainda mais afiada. Se mantiver a média dos primeiros 43 jogos (ele só ficou de fora de duas partidas até agora), preveem-se 363 bolas de 3 nos 82 jogos da temporada regular de 2015-2016. É espantoso.
Os feitos do craque levam o Golden State Warriors a alturas inéditas. Foram 24 vitórias nos 24 primeiros jogos da temporada, atropelando o recorde anterior de quinze triunfos nas quinze disputas iniciais – até a terça 26, eram 41 vitórias e apenas quatro derrotas. Faltam 37 jogos até os playoffs. O objetivo agora é superar o feito inédito do Bulls de Jordan, que fechou 1995-1996 com 72 vitórias e dez derrotas.
Se estatística aborrece, direto ao ponto: ver Curry (e o Warriors) é um deleite, simples assim. Ele próprio, com falsa modéstia, tenta pintar um desenho de si mesmo e de seu poder de atração (é o recordista de vendas de camisas na NBA; a filha Riley, de apenas 3 anos, virou xodó depois de aparecer ao lado do pai numa entrevista). “Não sou o que pula mais alto, não sou o maior nem o mais forte. Pareço uma pessoa normal”, diz com frequência. Normal? O.k., comparado a gigantes como Michael Jordan (cinco vezes MVP) e, mais recentemente, a Kobe Bryant e LeBron James, seu 1,91 metro de altura não impressiona. Ele parece até pequeno. Falta-lhe a destreza, falta-lhe o voo rumo à cesta, parado no ar como uma borboleta, que fizeram de Jordan um mito, dono do mais espetacular repertório de fundamentos do basquete. Mas pôr Curry entre os normais é reduzi-lo a muito pouco. Pré-convocado para a seleção americana, muito provavelmente chegará à Olimpíada do Rio, em agosto, no ápice da forma e da fama, magnético e incontornável.
Se já sabemos que na compilação de dados Curry é definitivo, que no contato visual é um colírio para quem aprecia esporte, outro modo de entender o fenômeno é saber como funciona a mecânica corporal de seus arremessos de 3 pontos e como ele os aprimorou. Com a palavra, um especialista no assunto. “É simples: rapidez, treinamento e cara de pau”, disse a VEJA Oscar Schmidt, o maior pontuador do basquete mundial (49 737) e exímio arremessador de 3 pontos. Cara de pau, Oscar? “É, só tendo muita coragem para mandar essas bolas de tão longe como ele”, diz o ex-camisa 14 da seleção brasileira. O Mão Santa está certo. Curry pratica muito. Um de seus exercícios favoritos é atirar 100 bolas de cinco pontos diferentes da quadra. Seu recorde na brincadeira é 94 cestas em 100 tentativas.
Repetição é fundamental, claro. Mas analisar o desempenho de Curry apenas pelos números também é diminuí-lo. Vê-lo, hoje, é tão ou mais divertido que acompanhar os jogos de Messi, Suárez e Neymar pelo Barcelona ou um duelo entre Novak Djokovic e Roger Federer no tênis. Deixar o adversário sentado depois de um drible desconcertante? Tem, sim, senhor. Bola de 3 ao soar do relógio? Com certeza. Cesta do meio da quadra? Já aconteceu nesta temporada. A cadeia cinética de seu arremesso, que se inicia com a freada abrupta das pernas e termina com o placar mexido, é material extensamente dissecado por especialistas em biomecânica, física e até por uma companhia de balé de San Francisco. Curry, tudo somado, é uma aula de trigonometria. Preparemo-nos, portanto, para uma nova era do basquete ou ao menos o surgimento de um ícone. Curry roubou parte do reinado de LeBron James, o ala do Cleveland Cavaliers.
Os dois, Curry e LeBron, aliás, nasceram na mesma maternidade de Akron, no Estado de Ohio. Embora o “Rei James” (como LeBron é conhecido) vença o “Assassino com Cara de Criança” (alcunha de Curry) na disputa de salários – a vantagem é de 12 milhões de dólares -, é no armador-cestinha do Warriors que as crianças agora se espelham. “Todos nós queríamos ser como Jordan, e a garotada de hoje crescerá vendo Steph jogar”, diz o ex-jogador Jason Kidd, atualmente técnico do Milwaukee Bucks.
Curry, porém, passaria despercebido se seu grande truque, os 3 pontos, representasse hoje, para os treinadores, o que significava na temporada de 1979-1980, quando esse arremesso foi introduzido na NBA. No início, a pontuação maior para a cesta de longa distância foi tratada como uma invencionice, algo para animar partidas no final de cada quarto de hora, ou a derradeira alternativa para um time em desvantagem. “Não vou preparar jogadas baseadas em arremessos de 7 metros de distância”, disse então o técnico do Phoenix Suns, John MacLeod. “É uma forma muito chata de jogar basquete.” Como no beisebol, contudo, a aferição e a divulgação de estatísticas cada vez mais apuradas derrubaram verdades preestabelecidas. As equipes passaram a perceber o evidente aumento de eficiência ao obter 1 ponto a mais a cada ataque. De menos de três tentativas por jogo no primeiro ano da nova regra, a quantidade chegou nesta temporada à média de 24 arremessos por jogo, com média de oito acertos.
Vive-se o apogeu dos arremessos, dos quais o de 3 pontos virou marca de excelência. A foto acima mostra a cesta (de 2 pontos, ressalve-se) marcada por Michael Jordan a seis segundos do término do jogo decisivo da final entre Chicago Bulls e Utah Jazz, em 1998. Era a última partida do gênio, que depois voltaria, num vaivém à Sinatra. É o registro de um dos momentos mais eletrizantes da história do basquete. De lá para cá, a NBA perdeu força, perdeu graça, com o sumiço de jogadores que tudo resolviam, como mágicos que eram – apesar de Kobe Bryant e LeBron James representarem a exceção que confirma a regra. A mineração de dados mostrou aos técnicos com suas pranchetas que o passe é tudo, que a rotação sem parar, de modo a encontrar o jogador mais apto a alçar a bola à rede, faz toda a diferença. E houve, desde o fim da era Jordan, tempos mais democráticos, mais coletivos e menos individualistas. Aqui estamos, até que surgiu Stephen Curry – aquele ao redor de quem boa parte da movimentação do Warriors se constrói, até que ele esteja em um canto ótimo da quadra e chuá.
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