O ocaso da malandragem
Nenhum jogo foi mais decisivo em 2018 do que o embate entre o árbitro de vídeo, a grande novidade da Copa da Rússia, e a esperteza dos jogadores de futebol
Uma nova expressão consolidou-se no léxico popular em 2018. Há quem diga que namorados já não têm mais uma “DR” quando dão de discutir o relacionamento. Agora, “chamam o VAR”. O ato de riscar no ar um retângulo imaginário usando os dedos indicadores é hoje facilmente compreendido desde que, na Copa do Mundo da Rússia, entre junho e julho, revelou-se o sucesso do árbitro de vídeo e suas três letrinhas, na sigla em inglês. O VAR, o novo personagem do futebol, responsável por rever as jogadas polêmicas de uma partida em monitores de televisão, já se tornou inevitável, está nas discussões do cotidiano e delas não sairá tão cedo. Foi tão relevante que despontou até na decisão do Mundial em Moscou, entre França e Croácia. Ajudou a confirmar um pênalti em favor dos franceses na vitória por 4 a 2. “Decretamos a morte do gol em impedimento”, disse o presidente da Federação Internacional de Futebol, a Fifa, o suíço Gianni Infantino, comemorando a eficácia da novidade.
Assim, os gramados passaram a ser palco de uma queda de braço inusitada entre a tentativa de enganar o juiz e a ferramenta criada para impedir a velha malandragem no futebol. Ou, dito de outro modo: uma polarização entre a esperteza dentro do campo e a busca pelo erro zero. O placar estava em 7 a 1 para os espertalhões. Com o VAR, apesar de todas as suas deficiências, o jogo ao menos empatou — 7 a 7, e vem virada aí. Como qualquer tecnologia que depende do veredicto humano, o árbitro de vídeo não está imune a erros. Sua adoção, contudo, aplicou um duro golpe em um dos grandes males do esporte: a malandragem, celebrada pelos que dela se beneficiam e amaldiçoada pelos que com ela se prejudicam. A história da bola nos pés está repleta de passagens nas quais, seja por inépcia, seja por desatenção, o juiz foi induzido a erro por um jogador que fingiu ser derrubado pelo adversário ou que pôs deliberadamente a mão na bola para marcar um gol.
Na Copa da Rússia, a personificação mais nítida da tentativa de ludibriar o homem do apito foi o camisa 10 da seleção brasileira. Na Copa, Neymar caía a cada toque leve de um zagueiro e rolava 423 vezes sobre si mesmo. De tanto espernear sem motivo, o atacante conquistou a antipatia universal e foi alvo de uma tonelada de memes na internet. Até quando tinha razão — e houve, sim, momentos em que estava certo — sua reação exacerbada jogou contra. Diante da Costa Rica, Neymar sofreu um pênalti de verdade, mas os operadores do VAR resolveram cancelá-lo, supondo que a reação do jogador fosse encenação. O comportamento de Neymar, uma modalidade do velho “jeitinho brasileiro” (veja o artigo do filósofo Roberto Romano), ganhou um inimigo com o árbitro de vídeo. A simulação não morreu, mas está ferida. O argentino Maradona, o maior dos milongueiros, até ele, o criador da Mano de Dios, admitiu o avanço ético com a verificação dos lances por meio de vídeo. E o que no passado foi bonito ou sagaz saiu do tom. Na Copa de 1962, torneio do qual o Brasil saiu bicampeão, o zagueiro Nilton Santos, chamado de “a enciclopédia”, foi celebrado por uma flagrante contrafação. Ao cometer falta em um adversário espanhol, rapidamente deu dois passos para sair da grande área. O juiz não percebeu o engodo e marcou falta, deixando de assinalar pênalti. O craque Tostão, hoje exímio cronista, identificou o problema: “Os jogadores brasileiros reclamam demais, tumultuam, pressionam e desrespeitam o árbitro”.
Os inimigos do VAR acham que o futebol pode estar ficando chato, previsível. Para eles, fazem parte do charme do esporte a controvérsia e a dissimulação. É um ponto de vista. Em entrevista à revista Placar publicada em 2012, o ex-jogador Edmundo, provocador nato, desenvolveu um raciocínio próprio: “Eu sou da época antiga. Não sou a favor de replay nem de tira-teima. Eles fizeram com que o jogador brasileiro perdesse a malandragem, a vivência de puxar o cara dentro da área e fazer o gol. Agora a televisão mostra que ele fez falta, vão puni-lo. Acabou o glamour”.
O historiador Hilário Franco Júnior, professor aposentado da Universidade de São Paulo e autor de diversos ensaios sobre futebol, tem a resposta na ponta da língua: “O glamour não deveria estar no ato irregular, e sim em enganar o adversário dentro das regras”. Eis a beleza do drible, diz Hilário, o puro ato de fingimento em insinuar-se para um lado e ir-se pelo outro. O sociólogo Roberto DaMatta, outro pensador brasileiro que frequentemente se debruça sobre o futebol para explicar nossa sociedade, encerra o jogo com uma tirada elegante: “O árbitro de vídeo tornou-se elemento do jogo, e quem é craque não se preocupa com isso. Pelé não deixaria de ser Pelé pela introdução do VAR”. Que em 2019, ao menos no futebol, o embate entre tentar enganar e tentar corrigir seja menos frequente.
Uma investigação na sala do VAR em Moscou
Luiz Felipe Castro
Na ponta do lápis: 455 lances foram analisados pelos treze árbitros de vídeo que se revezaram na chamada “Sala do VAR”, um bunker repleto de televisores instalados em Moscou, durante os 64 jogos da Copa do Mundo. Nessas quase cinco centenas de jogadas controvertidas, o árbitro da partida foi rever o lance no monitor à beira do gramado em somente vinte oportunidades — e em apenas três decidiu ignorar o que viu na tela e manter sua decisão original. Trata-se, em última instância, de uma decisão humana, do juiz.
Como humanos podem cometer erros, o VAR atravessou o torneio levando pancada de tudo quanto é lado, apesar de seu evidente bom desempenho. “Estamos falando de 99,3% de acerto e vocês, jornalistas, estão interessados no 0,7%?”, desabafou Pierluigi Collina, ex-árbitro italiano, diretor do Comitê de Arbitragem da Fifa, o famoso careca da final da Copa de 2002, vencida pelo Brasil. Não apenas os jornalistas estão interessados nesse 0,7% — esse incômodo naco de dúvida que alimenta discussões acaloradas —, mas todos os apaixonados pela bola. E a função do VAR, tudo somado, é justamente pôr alguma razão no que sempre foi palpite, achismo, torcida ou simplesmente birra.
Convém ressaltar que o VAR ainda está na sua infância. A reportagem de VEJA apurou que em pelo menos um momento fundamental da Copa houve crise no centro moscovita de decisões do árbitro de vídeo. Foi na partida de quartas de final entre Brasil e Bélgica, em Kazan. A jogada em questão: aos dez minutos do segundo tempo da partida, quando o time de Tite já perdia por 2 a 0, o atacante brasileiro Gabriel Jesus invadiu a área pela direita e foi ao solo depois de rápido contato com o zagueiro belga Vincent Kompany, milésimos de segundo antes de a bola se perder pela linha de fundo. O árbitro de campo, o sérvio Milorad Mazic, ignorou o carrinho e apontou tiro de meta. Em Moscou, debruçada diante das telas, a turma do VAR entrou em polvorosa. Imagens daquela noite, analisadas detalhadamente, comprovam a tensão. O italiano Daniele Orsato, chefe do grupo de árbitros encastelados na sala, responsável pela comunicação com o árbitro no gramado, paralisou a imagem no primeiro contato de Kompany. Vacilou alguns segundos. Teve uma discussão prolongada com outro profissional atrás dele, o alemão Felix Zwayer, e nada. Não chamou Kazan. O jogo seguiu.
“Para mim foi pênalti. Foram dois os contatos de Kompany em Gabriel, o segundo com a bola já fora de campo. O primeiro contato é o que conta, e as câmeras mostraram uma falta clara”, disse a VEJA Luca Marelli, ex-juiz da primeira divisão italiana e que hoje se dedica a um blog sobre arbitragem. “Pipocou”, berrou Galvão Bueno na Globo, ao tratar do VAR. Com esse pênalti o Brasil empataria a partida que tirou a seleção da Copa da Rússia? Talvez sim, talvez não. O que importa é outra constatação: o VAR não faz mágicas. É coisa de gente de carne e osso, como comprova o quiproquó recuperado por VEJA. Diminui as celeumas, mas está longe de resolvê-las todas.
Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614