No dia de aniversário de PLACAR, um passeio pelas capas mais marcantes
A edição de janeiro relembrou as aventuras na escolha dos personagens que, por meio século, ocuparam o espaço mais nobre do jornalismo esportivo do Brasil
No dia 20 de março de 1970, há exatos 50 anos, chegava às bancas a primeira publicação dedicada a maior paixão dos brasileiros: o futebol. Como um agradecimento a sua legião de leitores, PLACAR abre uma reportagem inédita da edição comemorativa ao cinquentenário, de Janeiro de 2020, e assinada pelo jornalista Marcelo Duarte. O ex-diretor de redação da revista relembra as aventuras e as dificuldades – quase sempre superadas com criatividade – na escolha dos personagens que por meio século ocuparam o espaço mais nobre do jornalismo esportivo do Brasil.
“E se ele não topar?”, perguntou o diretor de redação, Juca Kfouri.
Estávamos reunidos para decidir os detalhes da capa da primeira edição do novo projeto de PLACAR (“Futebol, Sexo e Rock & Roll)”, que seria lançado dali a algumas semanas. O personagem escolhido foi o centroavante Edmundo, apelidado de “Animal” pelo locutor Osmar Santos. A vida conturbada e os inúmeros problemas particulares transformaram o jogador do Palmeiras num barril de pólvora sempre com o pavio aceso. Já tínhamos a chamada da capa em mente: “O Animal precisa de carinho”. A dúvida era: como mostrar o lado carente do jogador e, ao mesmo tempo, a ousadia de nosso novo projeto? Sugeri que fizéssemos um retrato de Edmundo com cara de mau segurando um ursinho de pelúcia.
“O Edmundo pode não gostar da ideia, virar as costas e ir embora do estúdio”, uma voz alertou.
Combinamos de deixar a foto polêmica por último. Se ele se irritasse com a brincadeira, já teríamos feito o ensaio e usaríamos outra imagem na capa.
Escalamos o fotógrafo Bob Wolfenson para fazer o ensaio. A diretora de arte, Lenora de Barros, e o editor de fotografia, Ricardo Corrêa, acompanharam o trabalho. No livro Cartas a um Jovem Fotógrafo, Bob contou a estratégia para conseguir a foto. Primeiro pediu a Edmundo que tirasse a camiseta. “Sem camisa, de maneira alguma”, disse ele. “Então faça algo que não seja esperado de um jogador”. Outra negativa. Foi então que o fotógrafo sugeriu:
“Tenho um ursinho de pelúcia da minha filha aqui no estúdio. Você toparia fazer com ele?”
O bicho, na verdade, tinha sido levado por Lenora, que teve o cuidado de tirar a camiseta vermelha com o nome Pooh. Depois de tantos nãos, Edmundo aceitou a ideia.
“Faça um carinho nele!”, pediu Bob, feliz da vida com a missão cumprida.
Por todos esses ingredientes, a capa de PLACAR de abril de 1995 se tornou uma das mais icônicas dos 50 anos da revista, vendeu 242000 exemplares e deu o tom a todas as superproduções que faríamos a partir daí, na nova fase. Edmundo ainda seria contratado para estrelar o comercial de TV de relançamento.
Por coincidência, outro camisa 9 do Palmeiras marcou a minha estreia em PLACAR, em fevereiro de 1984. Fui escalado para escrever um perfil de Reinaldo Xavier, centroavante gaúcho grandão, que fez 31 gols em 95 partidas pelo Palmeiras entre 1984 e 1985. Naquele fim de semana, o time alviverde venceu o Brasília por 4 a 0 pelo Campeonato Brasileiro. Reinaldo Xavier marcou o primeiro, aos 23 minutos da etapa inicial. Minha reportagem de duas páginas virou capa da edição paulista. Obviamente, a escolha não se deu em razão da qualidade do texto do repórter iniciante. A capa dependia muito mais dos resultados dos clubes grandes. PLACAR vendia emoção. Era o torcedor do time vitorioso que, invariavelmente, se entusiasmava para ir até a banca na terça-feira comprar a revista.
Até mesmo a rivalidade entre São Paulo e Rio de Janeiro era levada em consideração. PLACAR circulou centenas de vezes com duas capas. O Brasil era dividido em dois: uma capa de São Paulo para baixo e outra capa do Rio de Janeiro para cima. Não era raro recebermos reclamações de leitores paulistas que, ao visitar o Rio na mesma semana, haviam comprado outro exemplar e só depois perceberam que o miolo era igualzinho. Na época das decisões estaduais, uma mesma edição chegava a circular com cinco capas diferentes.
Quando a revista era semanal, entre 1970 e 1990, a escolha da capa era um dos momentos mais tensos do fechamento das noites de domingo. Reportagens especiais tinham prioridade, e eu vivi várias dessas capas: o doping de Mário Sérgio; a entrevista de Tostão depois de onze anos de silêncio; ou o desabafo do lateral Leandro, cortado da seleção de Telê em 1986. Mas, quando os campeonatos começavam a pegar fogo, a capa só era decidida mesmo depois da rodada do domingo. E depois que os 120 rolos de filmes tivessem sido revelados. Nem sonhávamos com fotos digitais. Os negativos eram pré-selecionados pelo editor de fotografia. O diretor de redação, o redator-chefe e o diretor de arte se sentavam em frente à mesa de luz, analisavam as fotos até fazer a escolha. Os fotógrafos de PLACAR sempre foram craques. No caso das sucursais, eles cobriam apenas quinze, vinte minutos do primeiro tempo para conseguir despachar os filmes para São Paulo por avião. O laboratório demorava duas horas para fazer a revelação.
Muitas capas eram comemoradas como gols marcados no último minuto do jogo. Lembro da redação em festa quando o fotógrafo Ronaldo Kotscho avisou que tinha conseguido fazer a foto de Pelé com a camiseta “Diretas Já!”. Kotscho foi para o Rio de Janeiro com a camiseta amarela com letras silcadas em preto. Esperou uma pausa do Rei do Futebol nas filmagens do longa-metragem Pedro Mico. Também houve muita vibração quando fotografamos Jorginho, do Palmeiras, segurando um porquinho em novembro de 1986. Amargando dez anos sem títulos, a torcida palmeirense resolveu adotar o apelido “porco” e PLACAR negociou com a diretoria palmeirense a permissão para a foto. Jorginho mostrou muita habilidade para segurar o bichinho. “Eu nasci no interior, em Marília, e tenho prática com animais”, explicou. A derrota do Brasil para a França, na Copa de 1998, mereceu uma foto de Dunga cabisbaixo e uma chamada dramática: “Adeus, penta”.
Como leitor, na infância e na adolescência, eu não tinha o hábito de colecionar a revista. Gostava, isso sim, de recortar os escudinhos para os botões. Também recortava algumas fotos para usar no jornalzinho esportivo que fazia na escola. Foram poucas as edições que efetivamente guardei – e as capas eram sempre a razão de poupá-las da tesoura. Tenho até hoje a revista número 1, de março de 1970, com Pelé na capa. Pelé e Garrincha juntos em novembro de 1982 pareceu uma capa premonitória. O Anjo das Pernas Tortas morreria dois meses depois. Jorginho, o mesmo do porquinho, cumprimenta o árbitro José de Assis Aragão, que tocou para o gol do Santos uma bola que estava saindo pela linha de fundo em outubro de 1983. Ou, no mês seguinte, o dedo apontando a direção da saída para o técnico Carlos Alberto Parreira da seleção. Tenho também na minha estante a edição da Máfia da Loteria, de outubro de 1982. Uma capa toda preta e o título: “Exclusivo! Desvendamos a Máfia da Loteria Esportiva”.
Mesmo com o fim da era “Futebol, Sexo & Rock ’n’ Roll”, os retratos criativos continuaram sendo marca registrada da revista. Mas nem sempre a redação conseguiu contar com a boa vontade dos personagens. Aí foi preciso apelar para a tecnologia. E conto dois segredinhos. Ao acertar com o Chelsea, o técnico Luiz Felipe Scolari apareceu com um chapéu usado pela guarda do Palácio de Buckingham numa foto que remetia ao famoso retrato de Pelé na capa de realidade número 1, de 1966. Tudo obra do Photoshop. Em setembro de 2008, PLACAR trazia Rogério Ceni, do São Paulo, e Marcos, do Palmeiras, lado a lado no estúdio para perguntar qual dos dois era o melhor goleiro do país. Ambos chegaram a posar para as lentes do fotógrafo Alexandre Battibugli, mas o camisa 1 palmeirense apareceu sem uniforme. Coube ao então repórter Alexandre Salvador ser dublê de corpo de Marcão (seu rosto foi aplicado digitalmente).
Em outubro de 2012, quem estava precisando de um pouco de carinho era Neymar. Outra montagem fez o craque aparecer crucificado na capa, o que irritou profundamente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em nota, a entidade religiosa mirou a medalhinha no peito: “PLACAR tentou ridicularizar a fé”. Veja só: a mesma PLACAR que colocou na capa de fevereiro de 1973 o cardeal dom Paulo Evaristo Arns com uma flâmula do Corinthians, seu time de coração (leia na pág. 29). Durante a ditadura militar, o cardeal arcebispo de São Paulo lutou pela volta da democracia e pelo fim das torturas. Ficou conhecido como “Cardeal dos Direitos Humanos”. É difícil agradar a todos. Se bem que esse nunca foi mesmo o desejo das capas de PLACAR.
*Marcelo Duarte foi repórter e editor de PLACAR entre 1984 e 1989. De volta à revista, foi diretor de redação entre 1995 e 1998