MP do futebol x Globo: clubes apostam no Bragantino como ‘agente do caos’
Clube de Bragança Paulista (SP) é o único da Série A sem qualquer vínculo com a emissora e tem apoio dos colegas para transmitir seus próprios jogos
O Campeonato Carioca de 2020 terminou na última quarta-feira 16 como esperado, com título do Flamengo, mas as disputas judiciais e polêmicas envolvendo a Rede Globo e a Medida Provisória 984/2020, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e que passa a dar aos mandantes o direito de transmitir seus jogos, devem invadir também o Campeonato Brasileiro, que começa em 9 de agosto. Recentemente, Guilherme Bellintani, presidente do Bahia, afirmou nas redes sociais que o momento atual, de pandemia, contratos cancelados, calendário ameaçado, entre outros fatores, é ideal para emergir uma “Teoria do Caos” no futebol nacional. Na esteira desta tese, os cartolas a favor da MP já têm um forte aliado e candidato a “agente do caos’: o Red Bull Bragantino, único clube da Série A sem nenhum tipo de vínculo assinado com a Globo.
ASSINE VEJA
Num primeiro momento, a medida provisória, batizada informalmente nos corredores de Brasília como “MP do Flamengo”, causou receio nos dirigentes que não participaram de sua elaboração. No entanto, depois que as oito agremiações (Palmeiras, Bahia, Santos, Ceará, Fortaleza, Athletico-PR, Internacional e Coritiba) que mantêm um contrato (litigioso) para TV fechada com a Turner se reuniram com Bolsonaro em Brasília, o cenário mudou. Dezesseis dos 20 clubes da Série A se assinaram um manifesto conjunto de apoio à MP (clique aqui para lê-lo) – as exceções são Botafogo, Fluminense, São Paulo e Grêmio.
Teoria do Caos. Futebol brasileiro passa por impressionante oportunidade de mudança. Direitos do mandante, streaming, calendário ameaçado, contratos cancelados, Coronavírus, PIB negativo. A Teoria do Caos parece chegar ao futebol. A seguir, Efeitos Borboletas e possíveis tufões.
— Guilherme Bellintani (@gcbellintani) July 2, 2020
O maior interessado na MP é justamente o Red Bull Bragantino. Totalmente repaginado após assumir o formato de clube-empresa, o clube de Bragança Paulista (SP) negou propostas da Globo e pretende se agarrar à MP, repetindo exatamente o que o Flamengo fez no Campeonato Carioca – transmitir ou vender seus direitos como mandante. “O Bragantino vai montar sua própria estrutura, nas plataformas da Red Bull mundial, e transmitir os jogos no Brasileirão”, revelou Marquinhos Chedid, presidente do clube, a PLACAR, há duas semanas. O canal internacional da marca austríaca de energéticos no YouTube tem hoje 9,4 milhões de inscritos, quase o dobro da FlaTV.
Especial: Red Bull Bragantino, o clube-empresa que promete fazer barulho em 2020
As declarações de Chedid causaram incômodo internamente e o clube diz que não vai mais se manifestar sobre o assunto. No entanto, André Sica, advogado de Palmeiras e Bragantino, e que vem sendo um “representante informal” dos clubes a favor da MP, diz não apenas que o clube de Bragança tem respaldo jurídico para se fazer valer da medida e mostrar seus 19 jogos em casa, como terá o apoio dos colegas, que não veriam problema em ter suas visitas a Bragança exibidas nas plataformas da Red Bull.
“Os clubes aceitariam com certeza e não existe a menor dúvida de que o Bragantino possa mostrar suas partidas com base na MP. Na verdade, seria a maior injustiça do mundo cercear um clube do direito de transmitir seus jogos só porque os outros assinaram com outra empresa”, diz. O grupo a favor da MP defende que a medida não retira nenhum direito da Globo (que já não poderia mostrar o Bragantino de qualquer forma), apenas possibilita que não haja “apagões”, ou seja, jogos sem nenhuma transmissão. A emissora discorda desta visão.
Entenda o imbróglio jurídico
O cenário para o Brasileirão é idêntico ao do Campeonato Carioca, basta trocar Red Bull Bragantino por Flamengo. Único sem contrato com a Globo no Estadual, o clube rubro-negro se fez valer da MP e transmitiu seu jogo contra o Boavista na FlaTV, em 1º de julho. Um dia depois, a emissora rescindiu o contrato alegando “quebra de exclusividade“, alegando ter direito de transmissão sobre os jogos do Boavista – não do Flamengo. A Globo entende que contratos previamente assinados devem ser mantidos, enquanto quem não assinalou com ela se baseia na MP, que é válida por 120 dias até ser votada no Congresso, para “desbloquear” jogos. Os 16 clubes unidos já fazem lobby por sua aprovação no Congresso.
“A nossa compreensão é que a Globo não tinha tecnicamente razões jurídicas para rescindir o contrato do Campeonato Carioca. Foi uma manobra para retaliar a MP e aproveitar o momento para cortar o investimento nos Estaduais. Ela pode eventualmente tentar a mesma jogada no Brasileirão, mas eu diria que ela enfrentará uma resistência muito maior. E, ao contrário do Carioca, o Brasileirão tem um valor muito grande para a emissora”, diz o advogado André Sica.
Recente reportagem de VEJA destrinchou a MP e mostrou que o futebol, de fato, é um dos principais produtos vendidos pela Globo ao mercado publicitário. Estima-se que a emissora fature 1,8 bilhão de reais com a venda das seis cotas anuais de propaganda vinculadas às suas transmissões de futebol, além de outro 1,4 bilhão recolhido dos torcedores que pagam pelo serviço pay-per-view dos jogos no seu canal Premiere. Na última quarta, o Flamengo cedeu a transmissão da final do Carioca ao SBT, que chegou a vender seis cotas publicitárias e liderar a audiência no Rio de Janeiro.
André Sica explica que os outros 19 clubes que mantêm contrato de TV aberta com a Globo respeitarão o acordo e não farão uso da MP para mudar as formas de transmissão de seus jogos em casa. O Athletico Paranaense, no entanto, pode dar uma força ao Red Bull Bragantino, pois não assinou contratos para transmissão de pay-per-view. No início do mês, o presidente rubro-negro Mario Celso Petraglia criticou o “valor vil” oferecido pela emissora e também avisou que faria uso da MP. Caso as equipes mantenham esta postura e a Globo repita o que fez no Carioca (abra mão das transmissões) poderia haver uma corrida caótica pela venda dos dez jogos de cada uma das 38 rodadas da competição.
Como o Athletico não vendeu seus direitos de transmissão do PPV para a RG em razão do valor vil nos oferecido, a proporção é de 25x para 1 do que ganha mais para o menos! Teremos 19 jogos como mandante para negociarmos por 5 anos, serão 95 jogos em casa contra todos!
— Mário Celso Petraglia (@PetragliaMario) July 3, 2020
Procurado pela reportagem, o presidente do Grêmio, Romildo Bolzan, explicou por que o clube gaúcho não assinará o manifesto a favor da MP. Segundo ele, o texto atende especialmente aos interesses dos clubes acertados com a Turner, cujo contrato é alvo de discordâncias – a emissora dona da marca Esporte Interativo diz que as equipes descumpriram cláusulas; estes, por sua vez, dizem que a Turner tenta forçar uma rescisão por não estar obtendo os lucros desejados.
“O Grêmio defende um debate mais amplo de regulação. Não discordamos da legitimidade da MP, mas não vemos oportunidade nela neste momento. Ela começou com uma demanda específica, sem um debate coletivo dos clubes, nós estamos indo à reboque disso e eu acho que esse é um mal começo. Os oito clubes que estão com a Turner têm uma demanda importante e eu respeito isso, mas não é o caso do Grêmio”. O advogado André Sica diz que a Turner “baixou o tom” e também vê a MP como uma ótima oportunidade de mercado.
Negociações em bloco a partir de 2024
Ainda existe, claro, a possibilidade de tudo transcorrer em harmonia neste Brasileirão, caso Bragantino e Athetico-PR aceitem novas ofertas da Globo ou ainda caso a emissora opte por não entrar em litígio. No entanto, caso a MP seja aprovada, certamente haverá mudanças significativas na legislação dos direitos de transmissão a partir de 2024, quando os contrato se encerram.
Enquanto nas principais (e mais ricas) ligas esportivas do mundo os direitos de transmissão são negociados em bloco, no Brasil ainda impera o sistema de comercialização individual, em que cada clube defende o próprio interesse. Na Europa, tal modelo é seguido por campeonatos menores, como em Portugal, onde hoje se arrecada ainda menos dinheiro (veja no quadro abaixo).
Segundo André Sica, as futuras negociações tendem a ser coletivas. “A MP tira a possibilidade de ‘blackout’ de jogos, enquanto a legislação atual privilegia o monopólio e o direito de bloquear jogos. Até 2024, devemos ter pouca alteração nesse cenário, mas para o próximo ciclo, a tendência é que haja uma venda por bloco”.
Ele acredita que o modelo reduziria o abismo financeiro entre os clubes (Flamengo e Corinthians são os que mais recebem cotas de TV atualmente) e permitiria atrações nos moldes dos esportes americanos, com transmissões de “Monday Night” e “Sunday Night” em distintas emissoras, por exemplo. “Vejo de forma muito objetiva: se os clubes se unirem em bloco, a MP vem para diminuir radicalmente as diferenças. Se os clubes se mantiverem isolados, o dinheiro no mercado será captado majoritariamente pelos clubes grandes. A tendência é que seja em bloco, os clubes já entenderam isso.”