Ameaça de boicote à Copa América, escândalo sexual na CBF, rixas nas redes sociais: o tempo é de crise no esporte
“Quando nasce um brasileiro, nasce um torcedor.” Essa foi a mensagem inicial do aguardado manifesto preparado pelos jogadores da seleção a respeito da realização da Copa América no país. Dias antes, o técnico Tite e o volante Casemiro garantiram que havia algo relevante a ser dito “no momento oportuno” sobre a competição cujas sedes originais, Colômbia e Argentina, abriram mão devido a tensões sociais e à pandemia, e que a CBF chamou para si, em tabelinha afinada com a Conmebol e o governo federal. O clima de mistério incendiou o ambiente na confederação e abriu margem para criativas interpretações. Na política, as diferentes correntes ideológicas imediatamente escolheram seus heróis e vilões. No fim, o objetivo sempre foi um só, o mesmo de sempre: fugir completamente do debate.
Tite, logo ele, sempre ensaboado e político (no sentido de escapar dos temas embaraçosos com seu linguajar empolado), foi a grande vítima das ilusões. Ao se negar a dizer se havia chance de o Brasil não jogar o torneio, foi alçado pelos radicais da esquerda à condição de opositor de Jair Bolsonaro e tratado pela direita igualmente radical como “hipócrita e puxa-saco de Lula”, nas palavras do senador Flávio Bolsonaro, o filho do presidente. De repente, a realização da até então irrelevante competição virou uma bandeira bolsonarista. A engenhosa narrativa incluiria ainda uma guerra entre Globo e SBT. Tudo bobagem. “Por diversas razões, sejam elas humanitárias ou de cunho profissional, estamos insatisfeitos com a condução da Copa América pela Conmebol. (…) Somos contra, mas nunca diremos não à seleção”, foi o trecho mais incisivo do comunicado, ainda que nada explicasse.
A história se repete. Com raríssimas exceções, a boleirada costuma demonstrar ojeriza ao termo “política”, ainda que isso vá na contramão da postura de grandes ídolos da atualidade, como o heptacampeão de Fórmula 1 Lewis Hamilton ou o astro da NBA LeBron James. Até mesmo a história de João Saldanha (1917-1990), o jornalista comunista (este, sim, de carteirinha) demitido do cargo de técnico da seleção às vésperas do tri no México, em 1970, é um tanto romantizada. “Ele escala o ministério, eu escalo a seleção” é a famosa frase direcionada por ele ao presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985). O ditador queria Dadá Maravilha no time. Saldanha não, o que teria provocado sua demissão sumária. Não foi bem assim. Rixas com Pelé, chamado por ele de “cego”, e com o técnico do Flamengo, Iustrich, ameaçado com uma arma, ajudaram a acelerar a entrada de Zagallo no comando.
De volta à era Tite, eis a confusão: houve entre atletas e comissão um desconforto com a mudança de última hora da sede do torneio e com a forma como souberam disso (via imprensa). A relação com o presidente afastado Rogério Caboclo nunca foi das melhores e azedou de vez diante da truculência do mandatário ao ser questionado em uma reunião por Neymar e outras lideranças. O grupo não queria ter de responder por uma decisão essencialmente política, enquanto Caboclo se calava, muito mais para fugir da iminente eclosão do escândalo pessoal (a denúncia de assédio sexual e moral feita por uma funcionária) que o derrubou. A pandemia nunca pautou o debate.
Vazamentos de áudios de 2018 em que Caboclo demonstrava desconfiança sobre a comissão técnica e o desejo dos atletas de descansar após uma temporada caótica também pesavam. A possibilidade de não entrar em campo foi, sim, debatida, inclusive com outras seleções, mas não houve consenso. Há no grupo diversos apoiadores de Bolsonaro e alguns críticos. “Somos um grupo coeso, porém com ideias distintas”, diz trecho do manifesto, que nem sequer cita a palavra pandemia ou faz menção a suas vítimas. O zagueiro Marquinhos resumiu bem o que pensa a sua geração. “Se alguém quiser se posicionar politicamente, que o faça em casa”, disse o jogador que, ironicamente, vive há anos na França, a pátria das revoluções. Liberada em sessão de emergência pelo STF, a Copa América, portanto, começará no próximo dia 13, em Brasília. Tite sai da polêmica respaldado por vitórias em campo e pelo apoio dos atletas. Caboclo, por sua vez, falhou em todas as suas tentativas, incluindo a de demitir aqueles que chamou de “traidores”. Nos corredores da CBF, os novos chefes dão como certa a sua morte política. Na confusão dos últimos dias, sobraram caneladas. Pobre futebol brasileiro.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742
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