França x Alemanha: um clássico europeu cada vez mais miscigenado
Estreia das equipes na Eurocopa marca encontro entre dois elencos fortíssimos e repletos de atletas com ascendência africana
“Quando eu faço gols, sou francês. Quando não faço e as coisas vão mal, eu sou árabe”, cravou Karim Benzema, atacante nascido em Lyon, de ascendência argelina e muçulmano, em entrevista de 2015. Justamente na Eurocopa que marca seu retorno à seleção francesa (após quase seis anos, por polêmica com o ex-companheiro Mathieu Valbuena), as equipes participantes, não apenas a França, estão cada vez mais miscigenadas — o que, no entanto, não diminuiu os debates sobre racismo e xenofobia no continente.
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No França x Alemanha marcado para começar às 16h (de Brasília) desta terça-feira, 15, em Munique, válido pela primeira rodada do grupo F, 20 jogadores dos dois elencos não nasceram nos países em questão ou têm ascendência estrangeira (africana, em sua grande maioria). Os franceses Kylian Mbappé e N’Golo Kanté, candidatos à Bola de Ouro de 2021, são apenas algumas das atrações. Entre os nascidos fora, está o meio-campista Thomas Lemar, de Guadalupe (ilha francesa no mar do Caribe). Na seleção alemã, há quatro jogadores com pais africanos, entre eles, o atacante Leroy Sané, que tem ascendência senegalesa.
O debate em questão envolve cultura, etnia, identidade, guerras e busca por oportunidades e a formação das equipes nada mais é que um reflexo de décadas de migração e das mudanças demográficas dos países. Em uma era de debate intenso sobre o racismo, com protestos ligados ao movimento Black Lives Matter vaiados em alguns estádios e rejeitados por algumas seleções, contar com tantos negros de destaque nos campos do continente colonizador torna-se um fenômeno cada vez mais relevante.
A fala de Benzema que abre este texto se baseia em fatos históricos. A França é, de fato, o melhor exemplo de que quando as coisas vão bem, como é o caso na atual campeã do mundo, o preconceito acaba indo para debaixo do tapete. No título inédito da Copa, em 1998, num time que tinha Zinedine Zidane (filho de argelinos) e Lilian Thuram (nascido em Guadalupe), entre outros, aquela seleção virou um símbolo de diversidade. O tradicional “bleu, blanc, rouge” (azul, branco, vermelho) da bandeira deu lugar à expressão “bleu, blanc, beur” (azul, branco, árabe), uma forma de louvar a pluralidade. No entanto, nos fracassos das Copas de 2002 e 2010, com uma composição étnica bastante semelhante, voltou a imperar o racismo, sobretudo de representantes e adeptos dos partidos de extrema direita do país.
Nos dias atuais, apesar das discussões pela busca de igualdade serem mais constantes, muitos negam o problema, como Noel Le Garet, presidente da Federação Francesa de Futebol. “O racismo não existe no futebol”, afirmou. Do lado da Alemanha, porém, há uma voz combativa. Antonio Rudiger, zagueiro que ergueu a Liga dos Campeões deste ano pelo Chelsea, nascido na periferia de Berlim, é filho de pais de Serra Leoa, que fugiram da Africa em meio a guerras.
“Os clubes e os jogadores postam uma pequena mensagem no Instagram: Chega de racismo!!!. Todos agem como se fossem ‘apenas alguns idiotas’. Há uma investigação, mas nada acontece”
Antonio Rudiger, zagueiro alemão
Alvo de racismo cometido por torcedores das ultras neonazistas do Lazio enquanto jogava pelo Roma, na Itália, o defensor publicou recentemente um artigo no site The Players Tribune (clique aqui para ler na íntegra) sobre o preconceito racial no futebol. Na carta, Rudiger relata sua infância pobre e os problemas para superar a desconfiança até mesmo de vizinhos. Além disso, critica fortemente as instituições do futebol que não combatem efetivamente a discriminação étnica no esporte.
“Muitas pessoas não sabem o que aconteceu lá. África? O que é a África? Apenas as imagens na TV das crianças com barrigas grandes e famintas.”, escreveu Antonio Rudiger. Ele criticou as campanhas e hashtags contra o racismo que, segundo ele, não resolvem o problema. “De vez em quando, temos uma grande campanha nas redes sociais, todo mundo se sente bem consigo mesmo e, então, voltamos ao normal.”
Apesar de se tratar de um clássico europeu, com quatro jogos na história das Copas do Mundo (com um empate, duas vitórias da Alemanha e uma da França), o duelo só ocorreu uma vez em Eurocopas, justamente na última edição. Na semifinal de 2016, a França venceu por 2 a 0 e chegou à decisão, na qual seria derrotada por Portugal, com um gol de Éder — jogador nascido em Guiné Bissau, na África.
A pluralidade em campo
França
- Mike Maignan: nascido na Guiana Francesa, de mãe haitiana e pai francês
- Steve Mandanda: nascido na Rep. Dem. Congo (na época, Zaire)
- Presnel Kimpembe: pai congolês e mãe haitiana)
- Jules Koundé (pais de Benin)
- Raphael Varane (pai martiniquense)
- Kurt Zouma (pais da Rep. Centro-africana)
- N’Golo Kanté (pais de Mali)
- Paul Pogba (pais e irmãos de Gui né)
- Thomas Lemar (nascido na ilha francesa Guadalupe)
- Moussa Sissoko (pais de Mali)
- Ben Yedder (ascendência da Tunísia)
- Karim Benzema (pais argelinos)
- Kingsley Coman (pais de Guadalupe)
- Ousmane Dembélé (pai da Mauritania)
- Marcus Thuram (filho do Lilliam Thuram, de Guadalupe, e nascido na Itália)
- Kylian Mbappe (pai camaronês e mãe argelina)
Alemanha
- Antonio Rudiger (pais de Serra Leoa)
- Serge Gnabry (pai da Costa do Marfim)
- Jamal Musiala (Pai Nigeriano-Britânico)
- Leroy Sané (pai senegalês)