Fifa planeja novo VAR para acabar com polêmicas de arbitragem
Dois anos após a introdução da tecnologia de vídeo nas partidas, um sistema mais eficiente está em estudo para a Copa do Mundo de 2022: o VAR 2.0
Muitos povos reivindicam a invenção do futebol, mas foram os ingleses que, em 1863, conseguiram montar o primeiro livro de regras, como a que proíbe conduzir a bola com as mãos. Estava lá também a lei do jogo que causaria celeuma mais de 150 anos após sua introdução: o offside ou, como chamamos no Brasil, impedimento. A versão atual determina que o atacante, no momento em que o companheiro de equipe passa a bola, não pode estar à frente do último defensor adversário (o goleiro não conta). Parece simples, mas não é, pois o bandeirinha — árbitro auxiliar que acompanha a linha da bola — nem sempre consegue determinar se o atacante está ou não avançado. Para ajudar a falível percepção humana, a tecnologia, com outro árbitro colocado em uma cabine de vídeo, foi introduzida a fim de detectar o impedimento. No entanto, já que a solução parece não ter sido definitiva, a Federação Internacional de Futebol (Fifa) decidiu atualizar o sistema com um projeto apelidado de VAR 2.0.
O VAR (sigla em inglês para árbitro assistente de vídeo) foi testado por dois anos até ser aprovado pelo conselho da associação de futebol (conhecido pela sigla Ifab) em março de 2018. No mesmo ano, foi usado em todas as partidas da Copa do Mundo da Rússia. No Brasil, passou a ser acionado na série A em 2019 e, desde então, a polêmica anda correndo solta. No caso específico do impedimento, a imagem é congelada no momento do passe. Uma linha vermelha é traçada manualmente pelo árbitro de vídeo, demarcando a posição do atacante, enquanto uma linha azul é colocada paralelamente para indicar a posição do defensor. Se a linha vermelha estiver à frente da linha azul, na direção ao gol, o impedimento estará confirmado. A decisão, que antes era tomada pelo bandeirinha, a olho nu, em fração de segundo, passou a ser referendada por duas linhas eletrônicas paralelas, consultadas pelo árbitro em uma tela ao lado do campo. Tudo estaria perfeito, se não fosse por alguns detalhes. E, como dizem, o diabo está nos detalhes.
No futebol, nenhum jogador de linha usa as mãos e os braços, a não ser para repor a bola em jogo. Fora isso, todo o corpo joga. Além dos pés, é permitido tocar a bola com a cabeça, as pernas, o tronco e os ombros. Dessa forma, o atacante pode estar impedido por apenas uma cabeça inclinada à frente da linha azul. Se o operador de vídeo traçar a linha vermelha a partir de outra parte do corpo mais recuada, fatalmente validará um gol irregular. A ideia, portanto, é encontrar uma solução 100% precisa, capaz de mapear todo o corpo do atleta com sensores de captura de imagem. Além disso, o sistema seria semiautônomo, enviando um sinal ao árbitro assim que o software detectasse a infração.
Três empresas disputam a concorrência para implementar o VAR 2.0, mas a Fifa demanda também a criação de uma tecnologia mais barata que possa atender às divisões inferiores que não conseguem arcar com os custos do árbitro de vídeo. Em 23 de novembro, o Ifab deu continuidade ao desenvolvimento, tendo em vista a Copa do Mundo de 2022. Conforme apurou VEJA, uma das concorrentes é a sueco-americana ChyronHego, que em 2017 foi premiada com o Emmy de Tecnologia e Engenharia pelo serviço de monitoramento de beisebol para a TV americana.
No Brasil, o jogo segue com seus percalços. O presidente da comissão de arbitragem da Confederação Brasileira de Futebol, Leonardo Gaciba, admite que a marcação das linhas manualmente não é imune a erros. No entanto, mostra-se otimista quanto ao árbitro de vídeo. “Foram dois erros em mais de 1 000 lances de impedimento. Já evoluímos, mas é preciso lembrar que o VAR é uma criança de dois anos. É difícil ter paciência com crianças, mas é necessário”, diz o árbitro a VEJA.
Críticos alegam que o novo VAR seria desnecessário se o Ifab mudasse a regra do impedimento, que ainda é complexa. Para isso, bastaria determinar que as linhas vermelha e azul fossem demarcadas exclusivamente pelos pés dos jogadores, ignorando o resto do corpo. O próprio Gaciba revelou ter feito essa proposta ao conselho internacional, mas a deliberação aponta para a implementação do VAR 2.0 e não para a mudança da regra. O futebol é um esporte que, nos últimos 150 anos, sofreu relativamente poucas transformações em sua essência e, talvez por isso, seja facilmente assimilado. A Fifa, uma entidade centenária e conservadora, levou décadas para aceitar interferência tecnológica no jogo. Agora que pegou o gosto, talvez não seja a hora de desmotivá-la.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716