É fato: o futebol brasileiro é pouco intenso. Mas por quê?
Atletas e analistas opinam sobre estudo divulgado pela CIES Football Observatory que colocou o Brasileirão na 26ª posição e apontam possíveis soluções
Um estudo baseado em dados da empresa francesa de estatísticas SkillCorner, divulgado na última segunda-feira, 17, pelo Observatório de Futebol do Centro Internacional de Estudos de Esporte (CIES Football Observatory, pela sigla em inglês), analisou a porcentagem da distância percorrida em alta intensidade (mais do que 19.8 km/h) e colocou o Brasil abaixo de ligas pouco tradicionais como a sueca, polonesa e a grega. Os números não mentem, mas é preciso interpretá-los. Calendário sufocante, gramados ruins, calor, arbitragem… o que leva o futebol brasileiro a ser menos corrido? E ainda: qual a gravidade do problema?
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PLACAR procurou ex-atletas, dirigentes, analistas e árbitros para o debate, visando encontrar os porquês deste fenômeno e buscar possíveis rumos para alterar este cenário. Nas redes sociais, comentaristas repercutiram o tema. O lateral Dodô, do Atlético Mineiro, foi o primeiro atleta de renome a repercutir o estudo.
“São dados interessantes. Mas quantos jogos a mais na média se joga no Brasil? Quantos graus de temperatura a mais na média? Muitos jogadores do Atlético Mineiro e outros clubes não puderam nem tirar férias no fim da temporada 2020. Folga é uma coisa que não existe no nosso calendário…”, escreveu Dodô em suas redes sociais.
São dados interessantes. Mas quantos jogos a mais na média se joga no Brasil? Quantos graus de temperatura a mais na média? Muitos jogadores do @Atletico e outros clubes não puderam nem tirar férias no fim da temporada 2020. Folga é uma coisa que não existe no nosso calendário … https://t.co/ZuZ8rjNlCy
— Dodô Pires (@dodopires) August 16, 2021
Com passagens no futebol italiano por Roma, Inter de Milão e Sampdoria, o jogador admitiu a intensidade mais alta, mas ponderou o tempo de preparação das equipes do velho continente, além da recuperação física dos atletas.
“Por experiência própria na Europa posso dizer que realmente a intensidade de jogo é mais alta. Mas também posso afirmar que não se compara o tempo de preparação que se tem. E sim, descanso entre os jogos também faz parte da preparação. Aqui no Brasil ainda temos muito mais quantidade do que qualidade. Não acho que não somos capazes de jogar no mesmo nível de intensidade que outros países. Simplesmente não podemos nos preparar como eles. Qual a opinião de vocês?”.
Intensidade x qualidade
Também partindo da experiência dentro das quatro linhas, Zé Elias, ex-atleta e comentarista do Grupo Disney, falou a PLACAR: “Eu discordo um pouco desse ranking, acho que o Brasil não é o 1º, mas também não é o 26º, um exemplo disso é que o nosso campeonato é muito mais difícil de jogar do que a liga grega”. Além disso, falou sobre os motivos para o jogo brasileiro estar abaixo do alto nível. “O calendário, o condicionamento dos treinadores e o medo de perder para não ser demitido, as distâncias das viagens. Tudo isso inibe as qualidades que temos aqui.”.
O Brasil é um país continental, o que expõe os atletas a longas viagens. Como agravante, um calendário elaborado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e aprovado pelos dirigentes dos clubes acaba com pré-temporadas e sufoca atletas entre jogos. Em 14 de maio, em levantamento realizado pela PLACAR, o Palmeiras havia entrado em campo 38 vezes na temporada, média de 1 jogo a cada 3,5 dias.
“É duro, pesado, temos de pensar no presente e no futuro, na gestão de energia. A cada jogo, entra em campo quem está com força máxima. É humanamente impossível.”, desabafou na época o português Abel Ferreira, treinador do clube paulista.
Com o intuito de enriquecer a discussão com base teórica, o analista de desempenho e produtor de conteúdo da página de Instagram Futebol e Tática, Eduardo Barthem, respondeu questionando: “Em primeiro lugar, precisamos entender o que é a intensidade no jogo de futebol. Será que ela pode ser resumida apenas as distâncias percorridas em alta velocidade? Apenas sob o viés físico? Muitas vezes o atleta percorre grandes distâncias sem um objetivo concreto. Eu não consigo enxergar isso como definidor de intensidade.”.
Visões profissionais
Perguntado sobre a influência do clima quente na queda de intensidade do futebol brasileiro, Eduardo disse: “O clima é um fator que influencia no desgaste dos atletas, pois aqui se joga grande parte do campeonato em temperaturas muito elevadas. Mas não é o único. Os longos deslocamentos pelo país e o calendário absurdo são alguns outros até mais relevantes nesse sentido.”.
O coordenador científico do Palmeiras, Daniel Gonçalves, falou também em maio a PLACAR sobre a maratona de jogos que a equipe enfrentava e o quanto isso impactava nos resultados em campo. O profissional ressaltou o cansaço que os atletas acumulavam com o grande número de partidas.
“Um jogo de futebol promove uma fadiga bastante acentuada, porque o atleta é exigido em potência e resistência, o que causa dano muscular e metabólico. Além da exigência intelectual e mental, pois uma partida é um jogo de oposição, que você precisa de estratégias para vencer o adversário”, explicou.
O ex-árbitro e comentarista Arnaldo Cézar Coelho também elencou fatores decisivos: a temperatura elevada, a falta de qualidade dos gramados e um “vício” do jogador no país procurar faltas, esfriando, consequentemente, a intensidade das partidas.
“Primeira coisa diferente é a temperatura, o calor do ano todo no Brasil, que faz com que o desgaste seja maior. O segundo, a qualidade do gramado, que é muito ruim, um pouco mais alta e faz com que haja mais contato físico entre os jogadores. A terceira é um vício do futebol brasil, que ao invés do jogador receber a falta, ele procura a falta, ele prefere receber a falta do que fazer uma jogada de risco. Outras vezes, os árbitros não estão preparados e apitam qualquer falta para manter o jogo em controle”, afirmou Arnaldo a PLACAR.
No Campeonato Brasileiro, a Chapecoense é a equipe com menor média de faltas cometidas por partida. De acordo com números do Footstats são 221 em 16 jogos, 12,9 por partida. Na Premier League, que iniciou na última sexta-feira, Newcastle e West Ham tem média de apenas 3 faltas por jogo.
“Já vivenciei diversas ligas, jogando principalmente na Itália, no Brasil e Japão. E, como técnico, teve também Turquia e Grécia. Se falam como intensidade de jogo, pode ser, pelo que vejo na liga inglesa, italiana e espanhola. Mas, pelo se falam de qualidade e dificuldade, o Campeonato Brasileiro é muito mais difícil de ganhar, pela quantidade de grandes times que têm. O problema é a desorganização. Por exemplo, em todo lugar do mundo, quando tem jogo de seleção, para o campeonato. Então, dificilmente os times jogam desfalcados nas ligas. Enquanto no Brasil, muitas vezes, o jogador convocado não participa de Copa do Brasil, Libertadores. Em organização e calendário, eles ganham da gente. Mas essa posição de 26º é brincadeira, né? Eu acho que é por causa disso, pela nossa bagunça. Tem também a saída de jogadores no meio da competição pelo calendário diferente”, opinou Zico, atualmente diretor técnico do Kashima Antlers, a PLACAR.
Em gramado ruim, tem jogo bom?
A baixa qualidade no campo de jogo é, infelizmente, um ponto tradicional do futebol brasileiro. Na própria elite do campeonato nacional são poucos os estádios que permitem que a bola role com tranquilidade. Um dos grandes alvos de reclamação acerca da qualidade da grama é o Castelão, palco do futebol no estado do Ceará. O Fortaleza, um dos mandantes do local, desenvolve uma tendência de futebol bem jogado no Brasil e conta atualmente com um time intenso, sob treinamentos do argentino Juan Pablo Vojvoda. Marcelo Paz, presidente do clube cearense, afirma que o time busca perfis de treinador, não nomes.
“Acredito que tenhamos uma qualidade menor em questão dos gramados. Em primeiro está a Premier League, aqui temos gramados que dificultam o jogo mais rápido. Acho que velocidade e intensidades são fatores importantes, ajudam a ganhar jogos, sermos mais competitivos sobretudo com equipes de menor orçamento como a nossa”, afirmou a PLACAR.
“Velocidade não necessariamente é qualidade, tanto que a segunda liga em questão é a polonesa. O futebol polonês até produz bons jogadores, mas a liga em si é fraca comparada as demais da Europa. Não existe um só modo de vencer e ganhar”, completou.
Eduardo Barthem também falou sobre a baixa qualidade dos “palcos” do futebol brasileiro. “O gramado ruim deixa o jogo mais lento, dificulta a troca de passes e aumenta muito o risco de lesões”. É evidente, o quesito estrutural do futebol no Brasil atrasa a evolução do esporte no país.
Caminhos para a melhora
O Brasil é um cenário que não pode ser desvinculado da grande qualidade técnica. Ano após ano, apesar da baixa qualidade do campeonato local, jogadores surgem e são vendidos para os grandes centros, muitos deles conquistam protagonismo. Porém, a liga brasileira, assim como todas do cenário americano, está em um degrau inferior à Europa. Ainda no continente, o futebol brasileiro é superior e os resultados nas competições imprimem isso.
Alguns pontos de evolução aconteceram no Brasileirão, principalmente nas oportunidades a treinadores estrangeiro, que agregaram culturalmente e taticamente ao país. Marcelo Paz, presidente do Fortaleza, falou sobre a mudança no padrão de contratação: “Acho que o futebol brasileiro nos últimos anos se abriu mais ao conhecimento externo, passamos a ter mais treinadores estrangeiros como Jesus, Sampaoli e Vojvoda. O futebol brasileiro se abriu a comandantes estrangeiros. Algumas equipes passaram a marcar com linha alta, fazerem a pressão pós-perda, as equipes começam a optar por zagueiros mais construtores, que saibam fazer um passe entrelinhas e a figura do camisa 5 que só marca está sumindo.”
No entanto, ainda há muito a evoluir e o caminho é longo, como disse o analista Eduardo Barthem: “O futebol brasileiro é um desperdício e muito disso se passa por quem está em seu comando, seja das federações ou dos clubes. Temos um fator técnico muito qualificado e isso é o mais difícil no futebol, mas essa técnica precisa ser potencializada, através de uma estrutura séria. O futebol brasileiro se autossabota. É difícil cravar uma solução que atenda um país tão grande, mas entendo que falta vontade para mudar o atual cenário.”.
Atualmente, além de Vojvoda, dos 20 técnicos que dirigem os clubes da Série A cinco são estrangeiros: o argentino Hernán Crespo, do São Paulo, os portugueses Abel Ferreira, do Palmeiras, e Antonio Oliveira, do Athletico Paranaense, o uruguaio Diego Aguirre, do Internacional.