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‘Dizem que brasileiro não tem memória, mas corintiano tem’

Uma pequena saga familiar naquela noite inesquecível de 13 de outubro de 1977 – quando enfim o Corinthians foi campeão paulista

O texto a seguir foi escrito em 2005 – quase três décadas depois da vitória do Corinthians contra a Ponte Preta, naquele histórico 13 de outubro de 1977, no Morumbi. Vale relembrá-lo no aniversário de número 46 da noite em que Basílio virou o “pé de anjo”.

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O aparelho celular tocou com o irritante ruído de sempre, que antes constrange quem está ao redor. Levantei-me rumo ao corredor, levei comigo o incômodo som e atendi. “Queria falar com o Fábio”. À minha resposta, “sou eu”, veio a identificação, em voz grave. “É o Basílio”. Seguiram-se segundos de silêncio, de ambos os lados, até que pudesse me recompor do susto e da emoção. Basílio? Ele existe, e sempre imaginei que fosse um sonho. Tinha deixado recado horas antes, mas nunca supus que um dia o pé-de-anjo pudesse aparecer ao telefone. Há 28 anos e pouco mais de um mês, desde o 13 de outubro de 1977 em que ele marcou o gol diante da Ponte Preta aos 36 do segundo tempo e encerrou o jejum de títulos do Timão, João Roberto Basílio virou lenda. Antes que me acusem de exagero, cabe uma comparação para dar a noção exata do que significa tê-lo na linha. Imagine que um jornalista estivesse preparando uma reportagem a respeito da primeira viagem do homem à lua e alguém telefonasse anunciando: “Aqui é o Neil Armstrong”. Com um detalhe: Basílio é muito, mas muito mais relevante que Armstrong.

Ele está com 56 anos e 85 quilos, diante dos 28 e 73 quilos daquela noite de quarta-feira. Mantém, é claro, os mesmos 1m80, embora já ligeiramente curvado. Uma artrose no joelho da perna esquerda o faz caminhar com um balanço diferente. Trabalha numa cooperativa de futebol em parceria com a prefeitura de São Paulo cujo presidente é o Badeco (ex-Portuguesa) e o tesoureiro, o Dudu (ex-Academia). Basílio tem três filhos e dois netos, todos corintianos. O mais novo, Washington Luís Júnior, de 6 anos, vê e revê em vídeo o lance decisivo que mudou a vida do avô e a história de uma geração paulistana. Na preliminar do jogo de domingo passado contra o Internacional, aquele em que o juiz muito corretamente não deu o pênalti de Fábio Costa em Tinga, o camisa 8 de 1977 atuou ao lado de Biro-Biro e Dadá Maravilha. Emocionou-se com os gritos de “Basílio, Basílio” na improvisada volta olímpica diante da Fiel. Chorou mais tarde, quando um homem de seus 40 anos entrou no vestiário com uma réplica da camisa dos anos 1970. “O sonho do meu pai, já falecido, era ter um autógrafo seu”, disse. “Finalmente consegui realizar o sonho dele”.

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O autógrafo e o sonho fizeram Basílio ter certeza que aquele gol, um único gol, o transformou num atleta especial, um brasileiro com uma história única. Em uma única palavra: herói. “Dizem que brasileiro não tem memória, mas corintiano tem”, decreta. Memória e saudades daqueles dias de quase três décadas atrás me atormentam desde o domingo passado. Cismei em localizar, na casa do meu pai, onde cresci corintiano, o ingresso daquela partida de 13 de outubro de 1977. Ela faz parte de uma coleção muito bacana que inclui as entradas de outras finais corintianas e até o tíquete da final da Copa do Mundo de 1978, na Argentina, enviado por um querido e saudoso primo portenho.

As relíquias ficavam debaixo do vidro que cobria uma escrivaninha do meu quarto. Um dia o vidro quebrou e os ingressos foram parar num saco plástico carcomido pelo uso. Procurei, procuramos, e nada (aliás, cadê aquelas dezenas de edições das revistas PLACAR e Onze francesa, empilhadas e amarradas com barbante?). A prova viva de que o 13 de outubro houve, o papel picotado, seria uma espécie de Rosebud a me transportar para aquele tempo alvinegro. Oitava série do ginásio. Durante a tarde, nada fazia, a não ser importunar minha mãe, ansioso, com uma pergunta que virou piada: “o que vou fazer agora? tá chato, assim, parado”. Ouvia rádio, muito, punhas os LPs e compactos na vitrola Technics e, ao som de uma improvável canção gravada por Moacir Santos (todo mundo na vida um dia pode errar), a “Balada número 7”, em homenagem a Garrincha, eu imitava os lances de um craque que definitivamente não era. Mas tinha o Corinthians. No primeiro dos três jogos contra a Ponte, vitória por 1 a 0. No trágico domingo, derrota por 2 a 1. Até que chegamos à finalíssima.

Cadê o ingresso? Nada dele. Mas achei uma série de slides, amarelados, ligeiramente mofados, do século passado. São fotos daqueles dois jogos decisivos. As fotos de domingo, claras de sol, parecem escuras porque perdemos. As de quarta, escuras, parecem claras porque vencemos. Olhaí embaixo.

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A segunda final, vencida pela Ponte Preta, em 1977
A segunda final, vencida pela Ponte Preta, em 1977
A festa do terceiro e decisivo: Corinthians, enfim, campeão!
A festa do terceiro e decisivo: Corinthians, enfim, campeão!

O da direita sou eu. O da esquerda, meu irmão, o Rogério, que vive em Paris desde 1984. O flash não disparou. Como toda graça de uma boa lembrança é dividi-la, pedi ao Rô que escrevesse dez linhas sobre aquela noite, sem nada consultar, a não ser as reminiscências. Eis o que ele mandou, meia hora depois do pedido (parou de fazer o que tinha de fazer porque o Timão tudo pode):

“Que medo tremendo de perder, a gente sabe que a Ponte é mais time. Desenhei uma bandeira que fiz a Dete costurar: dois tecidos costurados um sobre o outro – de um lado uma tira preta no meio de duas brancas, do outro lado uma tira branca entre duas pretas… O tecido satinado vem das Casas Pernambucanas, mas a bandeira vai ficar em casa, junto ao lençol do estampado com o timão. O ritual da ida ao estádio, nós dois frenética e fanaticamente apressados esperando no carro o papai chegar, como sempre. O estádio bem mais vazio por causa da decepção do domingo anterior. Muita tensão. Do jogo, poucas recordações – um tanto truncado – até o momento do gol sofrido, arrancado na marra, à imagem do que é o time: muito voluntarioso mas fraco tecnicamente. Em resumo, o melhor time do mundo! Daí pra frente, nada mais importa: nem escola, nem família, nem amigos, nada. O que vale é estar ali. E só quem está ali sabe o que isso quer dizer. The place to be. A única vontade é tornar eterno, paralisado no tempo, esse momento de comunhão popular, de admiração por onze laboriosos correndo atrás de uma bola, como se a vitória deles fosse nosso ingresso no paraíso. Uns pulam, outros choram. Todos se abraçam. A volta de carro em meio a multidão emocionada, a pele arrepiada com a narração-discurso do Osmar Santos na JP, repetida à exaustão. Sofrêramos por 23 anos de derrotas, ganhar o campeonato é um ato de bravura e libertação. Acreditando que dali para a frente a vida será diferente… De madrugada, volta pra casa. Sozinho com minha bandeira, subo no capô do carro para festejar. Só tenho futebol na cabeça, só Timão no coração. Feliz porque o papai reviveu de novo conosco o que nos parecia impalpável até então: Corinthians campeão! Em trinta segundos o mastro da bandeira, um tubo de PVC ridiculamente fino, rompeu-se… Será que assim basta? Cacilda, como éramos drogados por futebol! Não é de se espantar que o Gustavo siga a mesma sina…”

Emocionado com as lembranças, pedi ao meu pai que também escrevesse algo, no mesmo esquema, de chofre. Queria ter o trio completo. O terceiro irmão, Breno, é santista, e naturalmente não foi ao jogo, já viúvo do Pelé. Minha mãe ficou em casa. Eis o que meu pai, Max, escreveu:

“Jogo decisivo, aquele Corinthians e Ponte Preta de 1977. Havia no ar um misto de esperança e apreensão no rosto das dezenas de milhares de pessoas que afluíam ao Morumbi na noite da memorável partida. ’Vamos embora, pá. Temos de chegar cedo e ocupar nosso lugar de sempre no Morumbi.’ Mal dava para segurar a ansiedade dos meus filhos corintianos Fábio, 13, e Rogério, 12. Um arremedo de bandeira alvinegra segura pelo Rogério esvoaçava para fora da janela do carro. A caminho relatava aos meus filhos os campeonatos de 1951, 1952 e 1954 vencidos pelo Corinthians, 23 anos antes. À época tinha 14, 15 e 17 anos, mas meu pai não ia ao campo de futebol. O jogo anterior da melhor de 3 tinha sido vencido pela Ponte, um belo time. Nunca o Morumbi tinha estado tão cheio. Creio que lá estiveram 123 mil torcedores, que saíram frustrados com a vitória da Ponte tão frustrados que que no jogo decisivo apenas parte dessa torcida, receosa, resolveu comparecer. Mas nós éramos 3 fanáticos. Seria ou não quebrado o jejum de 23 anos sem título? Interessante é que nesse lapso de sofrimento, e muitas vezes de humilhação, a torcida corintiana só fez crescer. Sofrida, porém… Fiel torcida. Gol do Basílio num bate-rebate angustiante. E aquela festa de fogos de artifício. Nas arquibancadas, sorrisos e abraços apertados. Afinal nós 3 fanáticos nos encontrávamos com outros igualmente fanáticos nas mesmas localidades do estádio. Éramos velhos conhecidos. A interminável volta para casa, passando nas imediações do cenário da comemoração da Avenida Paulista. Para que voltar logo para casa se os meus pequenos fanáticos estavam comemorando seu primeiro campeonato, de sabor especial, e eu revivendo na sua meninice a minha meninice de campeão. Mais de 3 da manhã, a mãe nos recebe no portão angustiada. Mas a bronca se tornou impossível: lá estávamos os 3, suados, desgrenhados, gritando a plenos pulmões para toda a vizinhança ouvir: Corinthians Campeão!”.

Em tempo: para quem teve paciência de chegar até aqui, e ainda se lembra do que foi escrito lá em cima, a Dete, que saudades Dete, era uma das senhoras baianas que trabalhava em casa (a outra era a Maria, ê Maria…). A Dete fazia uma empadinha de queijo fenomenal, nos ajudou a crescer, nunca leu o Machado de Assis mas sabia que o menino é o pai do homem. O Gustavo, esse é meu filho de sete anos. Vamos ao jogo domingo para, suados, desgrenhados, gritar a plenos pulmões para toda a vizinhança ouvir: Corinthians Campeão! E lá na frente, bem na frente, no futuro, dentro de 28 anos, juntos poderemos lembrar a frase do Basílio, o pé-de-anjo: “Dizem que brasileiro não tem memória, mas corintiano tem”.

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