Cristiane Rozeira: “Seguimos enfrentando problemas dentro e fora de campo”
A artilheira da seleção brasileira fala sobre as recentes conquistas do futebol feminino
Quem me viu comemorando três gols na estreia da Copa do Mundo do ano passado na França talvez não tenha a menor ideia de como é a vida de uma jogadora de futebol. Ao longo de meus 35 anos, cansei de me decepcionar com promessas vazias e falsas esperanças de que o futebol feminino ganharia, enfim, seu devido reconhecimento. No entanto, não posso negar: há um movimento interessante acontecendo em prol da modalidade. A última grande vitória foi o fato de a CBF igualar as diárias e premiações entre atletas das seleções masculina e feminina e ter contratado duas mulheres para sua diretoria. Quando entrei na seleção, ainda adolescente, a diária era de 25 reais. Agora, será ao menos vinte vezes maior. A mais recente final do Paulistão, entre Corinthians e São Paulo, lotou os estádios das duas equipes e teve transmissão ao vivo na TV aberta, o que vem acontecendo também agora no Brasileirão 2020. Ainda é pouco: seguimos enfrentando problemas dentro e fora de campo, como a falta de registros com carteira assinada, a deficiente estrutura dos clubes e, claro, a questão dos salários, muito afetados durante a pandemia. Mas é certamente bem melhor do que quando comecei.
Sou nascida e criada em Osasco, na Grande São Paulo, filha de caminhoneiro e empregada doméstica. Desde pequena, gostava de jogar bola com meus irmãos e amigos. Os vizinhos olhavam torto, chamavam-me de “mulher-macho”, zombavam do meu pé sempre sujo. Eu chorava, não sabia me defender como hoje, e minha mãe sofria tanto quanto eu. Ela tentou me afastar do futebol, mas arranquei a cabeça de todas as bonecas que ela me dava para transformá-las em bola. Era minha paixão, não tinha jeito. Um vizinho, o falecido seu Josias, foi meu maior incentivador. Foi ele quem bancou minha entrada em uma escolinha, onde aprendi os fundamentos e aprimorei minha perna esquerda. Eu era criança e fazia o trajeto a pé, uma hora para ir, outra para voltar. Não tinha medo. Aos 14, saí de casa para morar no alojamento do Juventus, em São Paulo. Ali, virei adulta cedo. Em um ano, estava tabelando com a Marta na seleção e, pouco depois, já rodava o mundo.
Vivi na Alemanha, na Suécia, na Rússia, nos Estados Unidos, na Coreia do Sul, na França e na China. Aprendi inglês, conheci lugares incríveis, conquistei títulos e consegui dar uma boa condição à minha família. Muita gente acha que eu sou milionária, como os craques do masculino, mas não tem nada disso, levo uma vida simples. Depois da Olimpíada do Rio, em 2016, caí no buraco. Eu me lesionei, terminei um relacionamento, minha avó faleceu. Tive depressão e pensei em largar tudo, até a seleção, que sempre foi meu sonho. Tive propostas de gigantes da Europa, como o Barcelona, mas recusei, pois queria estar mais perto dos familiares e ver o futebol brasileiro avançar. O tempo curou as feridas, eu voltei para o Brasil depois de um ano difícil na China. Foi um período complicado, mas de aprendizado.
Hoje posso dizer que vivo meu momento mais maduro e feliz, jogando no Santos e casada. Troquei alianças recentemente com minha parceira, Ana Paula, e já planejamos ter filhos. Antes eu não falava sobre vida pessoal e o fato de ser lésbica, tinha receio. Mas sempre fui bocuda, brigo pelo que é justo, já quase parti para cima de torcedor homofóbico. Minhas amigas brincam que sempre fui feminista sem saber. Atualmente sou a maior artilheira da história das Olimpíadas e sonho em ampliar esse recorde. Sobretudo, conquistar uma inédita medalha de ouro em Tóquio, no ano que vem. Nos últimos anos, lutei demais para seguir jogando, treinei incansavelmente. Valeu a pena, pois deu tempo de vivenciar, dentro de campo, importantes conquistas do futebol feminino.
Depoimento dado a Luiz Felipe Castro
Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704