Publicidade
Publicidade

Craques na redoma

Campeões mundiais andavam de Kombi, pagavam aluguel e estavam sempre à mão para atender torcedores e repórteres. Transformados em celebridades, hoje as milionárias estrelas da bola vivem sua fama globalizada cercadas de assessores e agentes

Era fácil para um repórter entrevistar Pelé quando ele reinava absoluto no futebol, consagrado com a conquista de três Copas, dois títulos de campeão mundial de clubes e já com mais de 1 200 gols no currículo. Bastava esperá-lo chegar, em torno das 4 da tarde, por uma entrada lateral do estádio da Vila Belmiro, em Santos. Ele mesmo vinha dirigindo seu Mercedes. Sozinho, sem segurança, sem ninguém para lhe abrir a porta, estacionava o carro na rua. “Tudo bem, passa depois lá no vestiário”, ele respondia ao pedido, que nem tinha sido agendado previamente. Os autógrafos para algum fã de plantão eram assinados ali mesmo, na calçada, rapidamente mas com um mínimo de atenção. Terminado o treinamento, mal saído do banho, Sua Majestade atendia o jornalista enquanto se enxugava.

Publicidade

Uma cena parecida com essa seria impensável no futebol de hoje, em que os jogadores se comportam, vivem e são tratados como celebridades de difícil acesso. Durante toda a duração da Copa, vários deles dão apenas uma ou duas entrevistas coletivas, sentados diante das logomarcas dos patrocinadores, e raramente concedem exclusivas. Quando isso acontece, falam para a televisão. No caso dos brasileiros, o privilégio, por força de contrato de direitos de transmissão, é quase sempre da Rede Globo.

Cerca de meia hora depois de terminadas as partidas, eles passam por um corredor em direção ao ônibus que os levará de volta para o hotel ou o aeroporto. É a chamada zona mista, em que repórteres credenciados se acotovelam junto a cerquinhas e às vezes imploram por rápidas declarações. Ela foi criada na Copa de 1994 e a partir daí implantada nos principais estádios ao redor do mundo. Nenhum jogador é obrigado a parar, e muitos seguem em frente, impávidos, carregando nécessaires de grife e com fones de ouvido que os protegem das perguntas. Foi o que fez o português Cristiano Ronaldo na segu­nda-feira, em Salvador, depois que sua seleção apanhou de 4 dos alemães: marchou firme em direção ao ônibus da delegação, sem se deter, como um táxi em noite de chuva.

Publicidade

Na terça, encerrado o jogo em que o Brasil empatou com o México por 0 a 0, na Arena Castelão, de Fortaleza, ninguém seguiu o mau exemplo de CR7. Sob o impacto de um resultado que nenhum dos comandados de Felipão previa, eles deram declarações rápidas e cuidadosas, escoltados por três assessores da CBF. Desde a invenção desse método de entrevistas superficiais e tumultuadas, nunca mais jornalistas puderam entrar em um vestiário para procurar os jogadores sem a barreira dos funcionários encarregados de resguardá-los. Hoje em dia, qualquer jogador de nível de seleção ou de um grande clube brasileiro – para não falar dos que atuam na Europa – tem pelo menos um assessor de imprensa, não raro dois ou três, que serve de intermediário, ou de escudo, como se preferir, entre ele e a mídia. Em outras palavras, para colocar as coisas como elas são: entre o jogador e seus fãs, que em última análise estão para o futebol como o contribuinte de impostos está para o governo, pois são eles que pagam a conta ao adquirir ingressos, dar audiência à TV e consumir os produtos que anunciam.

“Isso começou comigo, em 1990, quando me tornei assessor de imprensa do Flamengo e organizava as entrevistas”, afirma o carioca Rodrigo Paiva, que mais tarde passou a trabalhar para os atacantes Romário e Ronaldo. Desde 2001, ele exerce essa função na seleção brasileira. “Hoje em dia qualquer jogador tem o seu”, diz. “Só o Neymar dispõe de um escritório com umas trinta pessoas para atendê-lo.” A assessora do astro, Helena Passarelli, que se tornou seu anjo da guarda no período em que ele defendia o Santos, não confirma esse número. Sexto jogador mais rico do mundo, aos22 anos, com um patrimônio estimado em 243,6 milhões de reais, o camisa 10 mora em uma mansão de 1 000 metros quadrados em Barcelona.

Pelé, quando voltou internacionalmente consagrado da Suécia com a faixa de campeão mundial, em 1958, continuou residindo em uma pensão perto da Vila Belmiro. Ele tinha 17 anos. Mais velho daquele fabuloso escrete, o lateral-esquerdo Nilton Santos vivia com a família em um apartamento alugado e pegava lotação para ir treinar no Botafogo. O incomparável Garrincha ainda não tinha carro. Até o início da década de 90, nem jogadores nem clubes empregavam assessores de imprensa.

Publicidade
Continua após a publicidade

A mudança não poderia ter sido mais radical. Antes expostos e disponíveis, os jogadores entraram em uma redoma dourada. As gerações projetadas na era do rádio em geral não ganhavam o suficiente para enriquecer – e, quando ganhavam, eram muitas vezes mal aconselhadas na hora de investir. Elas deram lugar aos futebolistas que iriam se beneficiar com a exposição na TV, os contratos publicitários e os patrocínios das multinacionais que souberam associar sua imagem ao mais popular e universal dos esportes – beneficiando os principais ídolos. Diz o paulista J. Hawilla, ex-repórter de rádio que preside a Traffic, uma das maiores empresas de marketing esportivo do país: “O motor da transformação foi o dinheiro. Há vinte ou trinta anos, os principais clubes europeus começaram a obter altos lucros com patrocinadores, direitos de transmissão e comercialização de suas marcas, sobretudo depois que milionários russos e árabes entraram no mercado. Parte desses recursos foi repassada aos jogadores, cujos salários se multiplicaram. Vieram os assessores, agentes e empresários, e com eles os nossos craques viraram celebridades globais. Da Europa, o processo foi exportado para o Brasil”.

O trio de ouro
O trio de ouro VEJA

Do ponto de vista dos superjogadores, tamanha transformação equivale à descoberta do pote de ouro no fim do arco-íris. Cristiano Ronaldo, com um salário anual de 51,7 milhões de reais, acumula um patrimônio de meio bilhão de reais. O argentino Messi está em um patamar semelhante. Ao lado das fortunas que foram brotando da grama, o bilionário futebol do século XXI consolidou uma globalização que tem na Copa a sua vitrine mais vistosa. É com a camisa de cada seleção que os craques reconquistam a própria nacionalidade perante os torcedores. No resto do tempo, espalham-se pelas arenas do planeta bola. Assim, dos 736 jogadores inscritos neste Mundial, 114 – o que daria para escalar dez times -, ou 15% do total, atuam na Inglaterra (veja a reportagem na pág. 132). O Bayern de Munique, sozinho, forneceu catorze jogadores que estão competindo no Brasil. E é o Brasil um dos países que mais refletem o fenômeno. O torcedor precisa puxar pela memória para lembrar dos tempos em que todos os convocados vinham de equipes do Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Foi o que aconteceu no tricampeonato de 1958/1962/­1970. A realidade agora é outra. Dos 23 atletas reunidos por Felipão, dezenove foram chamados do exterior.

Até 1974, a seleção brasileira preparava-se para ir à Copa concentrada no espartano hotel Retiro dos Padres, no bairro carioca de São Conrado. “Contando, ninguém acredita. O hotel tinha um único telefone, que ficava na cozinha e era de manivela”, recorda o atual coordenador técnico Carlos Alberto Parreira. “Nós nos revezávamos para ligar.” Os jogadores saíam dali para os treinamentos no clube Itanhangá dentro de Kombis. Hospedados em hotéis luxuosos e transportados em um multicolorido avião fretado, com traslados em belos ônibus pintados de verde e amarelo, eles não podem ter saudade de um universo que não conheceram. Se estão mais isolados e muito menos acessíveis, ficaram cada vez mais ricos e, como protagonistas, ajudam a fazer do futebol, com sua arte e estrelismo, o espetáculo fantástico que nestes dias deixa o mundo hipnotizado.

Com reportagem de Renata Lucchesi

Para ler outras reportagens compre a edição desta semana de VEJA no IBA, no tablet, no iPhone ou nas bancas.

Outros destaques de VEJA desta semana

Continua após a publicidade

Publicidade