Coronavírus, Facebook e churrasco: a tensão pré-Gre-Nal das Américas
Como a capital Porto Alegre se prepara para o primeiro clássico entre Grêmio e Inter da história da Libertadores
Quando um gaúcho conhece outro, uma das primeiras perguntas mútuas será essa: “Tu é gremista ou colorado?”. Fato. A observação é do articulista do jornal Zero Hora David Coimbra. “O gaúcho tem mais medo de perder Gre-Nal do que contrair coronavírus”, exagera David. Porém, superlativos à parte, Porto Alegre viverá nesta quinta-feira 11, na Arena, um dos episódios mais marcantes da sua secular rivalidade entre Grêmio e Inter: o primeiro Gre-Nal válido pela Copa Libertadores da América.
Se jogar um clássico por torneio continental pode ser fato comum para paulistas, argentinos, uruguaios, espanhóis, italianos e ingleses, para os gaúchos, é algo inédito. E Porto Alegre vive dias intensos desde que o Inter ingressou no Grupo E da Libertadores – o mesmo de Grêmio, América de Cali (COL) e Universidad Católica (CHI) –, após passar por dois mata-matas qualificatórios, derrotando Universidad de Chile e Tolima (COL), este último o algoz do Corinthians na pré-Libertadores de 2011. Assim que o dramático 1 a 0 sobre os colombianos foi encerrado – com os colorados atuando com um jogador a menos durante boa parte do segundo tempo, depois da expulsão de D’Alessandro –, o Gre-Nal se anunciou com os cânticos da torcida do Inter no Beira-Rio: “Ô, Grêmio, pode esperar, que a tua hora vai chegaaaaar…”.
E finalmente ela chegou. Agora, gremistas e colorados disputarão um clássico que será lembrado por décadas. Talvez até para sempre. Até hoje, o Gre-Nal mais importante válido por um torneio que não se chame Campeonato Gaúcho foi o do Brasileirão de 1988 (mas que foi disputado já em 1989 porque o campeonato se estendeu ano afora). Jogado no Beira-Rio, ele era válido pela semifinal do torneio nacional. O Inter ganhou de virada, por 2 a 1, jogando todo o segundo tempo com um a menos – o lateral-esquerdo Casemiro, contratado justamente junto ao Grêmio, recebeu o cartão vermelho. O Inter foi à final com o Bahia, perdeu, e a virada sobre o Grêmio acabou sendo um troféu moral eterno. Pois o Gre-Nal do Século pode ser hierarquicamente superado pelo Gre-Nal das Américas – tal nomenclatura foi adotada para o clássico pelos dois clubes.
Enquanto Renato Gaúcho (é Portaluppi, tchê!) e o argentino Eduardo Coudet definem as suas equipes para o clássico da Arena, no bairro boêmio da capital gaúcha, a Cidade Baixa, técnicos de som instalam telões em bares, que certamente estarão lotados para o histórico jogo. Como o clássico é a partida da quinta-feira, os direitos de transmissão são do Facebook – até as quartas de final, os direitos dos duelos de Libertadores às quintas serão da empresa de Mark Zuckerberg –, sem TV fechada, muito menos aberta.
No ano passado, a partida entre Libertad e Grêmio, o jogo de volta das oitavas da Libertadores, transmitido via Facebook, registrou mais de 24 milhões de contas reagindo ao evento nas redes sociais. Número superior até mesmo à partida entre San José e Flamengo, que registrou um pico de mais de 1 milhão de contas assistindo ao jogo simultaneamente (um recorde). Porém, com a dupla Gre-Nal “unida”, essa marca rubro-negra pode estar em risco. Enquanto o Inter ainda não teve “jogos de Face”, Libertad e Grêmio atingiu 746 000 contas simultâneas.
Assim, em tempos de redes sociais, os bares apostam na boa conexão de internet para dar ao público fora do estádio uma boa transmissão, na cerveja (elemento fundamental às arquibancadas dos esportes de massa, e que foi banida do futebol gaúcho há alguns anos) e, claro, um churrasco gaúcho. “Já revisamos toda a rede e colocamos dois telões, na frente e nos fundos do bar. Porque o interesse no Gre-Nal será muito grande, e teremos casa lotada”, conta Jacinto Silva, gerente do Bar Pedrini, um dos mais tradicionais da região.
Nas ruas de Porto Alegre, torcedores com camisas compradas e tricolores são facilmente encontrados desfilando pela cidade. O avanço do surto de coronavírus, que já adiou ou afetou dezenas de eventos esportivos pelo mundo e deve parar até as Eliminatórias Sul-Americanas, é uma preocupação geral. Mas no Sul há uma certeza no ar: a Conmebol não ousaria frustrar os gaúchos e fechar as portas do Gre-Nal da América. O curioso é que até mesmo os “estrangeiros” estão tomando partido para o clássico. Enrique Domingues, 21 anos, paulista de Ribeirão Preto, torcedor do Palmeiras, e que se mudou para a capital gaúcha a fim de cursar Medicina, já fez a sua opção: “Vou torcer para o Grêmio. O Inter nos eliminou na última Copa do Brasil, e ainda não esqueci isso”, garante o estudante. “Porto Alegre vai viver um dia de Copa do Mundo. Ruas vazias, todos na frente da TV ou da tela do computador, ou do telefone”, agrega o colega de Enrique, o colorado Carlos Nunes, 20. “Mas acredito que os dois passem adiante nesse Grupo E. São os dois times mais fortes”, finaliza Domingues.
Nas ruas da cidade, 450 brigadianos (como são chamados os policiais militares do Estado) estarão deslocados para o clássico. Todo o cuidado é pouco. Apesar de a torcida mista (espaço criado na Arena e no Beira-Rio para os Gre-Nais, onde um torcedor só pode ir acompanhado de um amigo ou familiar com a camisa do adversário) ter sido vetada para o jogo da Libertadores, e de apenas 2 000 colorados terem direito ao ingresso na casa tricolor, há um clima de civilidade no ar. Renato e Coudet trocaram elogios e cumprimentos em seu primeiro encontro. Além disso, as duas direções marcaram um jantar para a véspera da partida, a fim de confraternizar, e de dar o exemplo de boa vizinhança.
“Vou torcer para Grêmio e Internacional passarem à próxima fase (da Libertadores). Tem que torcer para o que é nosso, não tem que ficar torcendo para os outros, tem que torcer para o futebol brasileira”, disse o técnico gremista na antevéspera do clássico. “Fui o primeiro a torcer pelo Internacional na pré-Libertadores. Sei da rivalidade e o quanto é importante disputar uma competição dessas contra o nosso maior rival”, completou Renato. “Será um jogo lindo, contra o nosso maior rival”, respondeu o o argentino Coudet.
Sílvio Favale, repórter do diário Olé, o principal jornal esportivo da Argentina, lembra que o Gre-Nal terá uma atenção toda especial dos hermanos. “Há grande interesse no jogo de Porto Alegre, sobretudo porque o Inter tem uma colônia argentina muito grande, com Coudet, D’Alessandro, Victor Cuesta, Damián Musto, Renzo Saravia, Martín Sarrafiore, além do peruano Paolo Guerrero, que recentemente esteve nos planos do Boca Juniors”, conta Favale.
O certo é que a Copa Libertadores da América verá nesta quinta-feira um duelo maior do que Porto Alegre. O Gre-Nal – ladeado ao churrasco e à Revolução Farroupilha – é o maior patrimônio gaúcho. Toda uma cultura, uma forma de viver, em azul e vermelho.