Contra tudo e contra todos: os desafios da polêmica Olimpíada de Tóquio
Com estádios e ginásios vazios, os Jogos acontecerão, apesar do vírus. O dinheiro e a cultura milenar explicam a decisão de seguir em frente
No Japão, o atraso médio do Shinkansen, o trem-bala, é de inaceitáveis doze segundos. Para o prêmio Nobel de Literatura de 1968, Yasunari Kawabata, em japonês “nenhuma palavra diz mais que o silêncio”. As jovens orientais são ensinadas a pôr o brinco do lado direito com a mão esquerda porque o gesto soa mais delicado. O termo shokunin, cuja tradução literal é “artesão ou artífice dedicado ao trabalho”, tem um significado mais amplo e sutil: pode ser entendido como perfeccionismo, a atenção obsessiva e inegociável com os detalhes do cotidiano. E como é possível que nesse país pontual, calado, atrelado a miudezas e respeitoso possa ser realizada a Olimpíada de Tóquio, que parece estar no avesso desses atributos, em plena pandemia do novo coronavírus? Sim, há um quê de estereótipo na definição do jeito de um povo, exagerado olhar forasteiro, mas é retrato próximo da realidade — e parece inacreditável que as autoridades políticas e esportivas, filhos de uma cultura estrita, tenham confirmado a realização do evento, com abertura prevista para a próxima sexta-feira, 23 de julho.
Por que, enfim, manter os Jogos? Não há resposta única, mas uma delas não tem nada de especificamente nipônico: o dinheiro. Se o torneio fosse cancelado, depois do adiamento do ano passado, as perdas estimadas chegariam a 16 bilhões de dólares, com subtração de patrocínios, rompimento dos direitos de televisão e compensações devidas ao Comitê Olímpico Internacional (leia a reportagem na pág. 62). Ressalve-se que o orçamento inicial para a organização da Olimpíada, divulgado em 2013, era de 7,5 bilhões de dólares. Mais que dobrou, depois de ter sido transferido de 2020 para 2021, com a aplicação de protocolos de saúde para evitar o contágio pelo vírus entre a chamada “família olímpica”, feita de atletas, treinadores e dirigentes. Mas a engrenagem não parou, e a graxa que a fez andar talvez tenha uma liga geopolítica. Os Jogos de Inverno de 2022 acontecerão em Pequim, na China — e o Japão não poderia se dar o luxo de conceder ao oponente histórico, em permanente guerra fria, quando não quente, o direito de realizar uma festa que soasse como gloriosa celebração da retomada da normalidade. Os japoneses queriam ter essa primazia. No entanto, ela parecerá manca e precoce — embora, como em toda Olimpíada, nos próximos dias viveremos inesquecíveis momentos de glória e drama, a beleza indizível do esporte.
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Contudo, na semana passada, o governo anunciou, pela quarta vez desde o início da pandemia, a decretação do estado de emergência em Tóquio, que vigorará até 22 de agosto (os Jogos terminam em 8 de agosto). Na prática, ele determina o fechamento antecipado de bares e restaurantes, às 20 horas, e a proibição da venda de bebidas alcoólicas. As restrições tentam barrar o contágio do vírus. E foram, tal qual no Brasil, tratadas de hipócritas e desnecessárias pelos proprietários dos estabelecimentos, economicamente feridos. O Japão soma 825 000 casos do novo coronavírus, com 15 000 mortes. Há três semanas a média móvel diária cresce, tendo chegado a 586 casos. No Japão, apenas 30% da população já recebeu a primeira dose de alguma vacina (no Brasil, 40%). Totalmente protegidos, com duas doses, são 18% (no Brasil, 15%). Ancorado nessas estatísticas, e com receio dos ginásios e estádios se transformarem em bomba biológica de contaminação, o COI e os responsáveis pela organização anunciaram o que se dizia à boca pequena: não haverá público em Tóquio durante as disputas, nem mesmo de cidadãos locais. “Peço desculpas a quem comprou ingressos”, resumiu a presidente do Comitê Organizador, Seiko Hashimoto. Pela primeira vez, uma Olimpíada não terá torcedores, em ruidosa mudez. Na marra, ironicamente, será aquilo que vinha sendo ensaiado desde que, em 1964, nos outros Jogos de Tóquio, começaram as transmissões via satélite: um espetáculo de televisão, só de televisão, e agora também das redes sociais.
Haverá desconforto, permanente sensação de algo muito esquisito — e, não por acaso, recentes pesquisas de opinião pública indicavam até 70% de repúdio à Olimpíada. Nas ruas de Tóquio, há indícios desse estranhamento a apenas uma semana do acender da pira olímpica. Os programas de TV sobre os Jogos são escassos. No movimentado cruzamento de Shibuya, os painéis coloridos mal tratam do assunto. Aqui e ali há protestos. Cartazes trocam os anéis olímpicos por imagens do vírus da Covid-19. É alheamento que remete a um slogan interno usado pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB), cioso dos riscos sanitários: “Estamos indo para os Jogos Olímpicos, e não para Tóquio”. Os atletas, dirigentes e jornalistas não poderão circular pela cidade, rastreados por smartphone. Precisarão informar seus passos, sem fugir do roteiro estabelecido. Não terão direito de usar transporte público nos primeiros catorze dias depois do desembarque. Em caso de teste positivo para o vírus (e numa das primeiras delegações a chegar, a de Uganda, houve um caso da variante delta), o afastamento será imediato.
“Para que e para quem será esta Olimpíada?”, indagou Kaori Yamaguchi, medalhista de bronze no judô em 1988, em um artigo que correu como rastilho. “Os Jogos já perderam o sentido e estão sendo realizados só para serem realizados”. Há o interesse financeiro, há o duelo diplomático com a China, mas por que, insista-se com veemência, chegou a hora e o cronômetro não foi desligado? Qual a graça, enfim, de uma competição acompanhada pela cidade-sede dentro das casas, no calor úmido e quase insuportável do verão? Em agosto do ano passado, houve 43 000 internações em decorrência de hipertermia, com 84 mortes. Não por acaso, a maratona foi transferida para Sapporo, 800 quilômetros ao norte de Tóquio, na mais setentrional província japonesa, de Hokkaido (e ali, com menos casos de Covid-19, talvez haja autorização de gente nas ruas).
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O incômodo está no ar. O imperador Naruhito, patrono honorário da Olimpíada e da Paralimpíada, estaria “profundamente preocupado” com a realização do evento no atual cenário. O primeiro-ministro Yoshihide Suga, que pode estar pondo sua cabeça à prêmio caso algo dê muito errado, permanece na defensiva. “Nunca coloquei a Olimpíada em primeiro lugar”, disse. “Minha prioridade tem sido proteger a vida e a saúde da população japonesa, devemos antes prevenir a propagação do vírus.” Sim, o rígido controle associado ao estado de emergência tem esse objetivo — mas qual o sentido em não ter recuado? Talvez exista uma explicação comportamental, milenar. Segundo o professor Daisuke Onuki, do Departamento de Estudos Internacionais da Universidade Tokai, o japonês é um povo do fazer, diferente do brasileiro, que é do sentir. “Nossa força e fraqueza estão aí, uma vez que começamos, temos dificuldades em parar”, diz Onuki.
“Deixe a água levar o passado”, diz um provérbio japonês. Louva-se constantemente o aqui e agora. Essa celebração do momento, apartado do que veio antes e do que virá depois, foi lindamente esmiuçada por um raciocínio do renomado historiador Shuichi Kato (1919-2008). Ele comparou a passagem do tempo na cultura japonesa a um tipo de arte, o emakimono, ou apenas emaki, a pintura em rolo que vem do século XIII. Ela tem uma peculiaridade. É feita para ser apreciada cena a cena. Com a mão direita é enrolada a parte já vista, e com a esquerda vai se desenrolando a parte ainda não vista, e nenhuma delas pode ser apreciada junto com a imagem que está diante da visão no momento. “O presente está separado tanto do passado quanto do futuro, cada cena é autoconclusiva, não afeta os acontecimentos anteriores e posteriores”, escreveu Kato em Tempo e Espaço na Cultura Japonesa. É um modo de entender os Jogos.
A Olimpíada, não fosse o vírus, seria oportunidade de o Japão se abrir ao mundo, ao atrair mais de 100 000 estrangeiros. Representaria a recuperação depois do tsunami e do acidente nuclear de Fukushima, em 2011 — como os Jogos de 1964 significaram um atalho para a saída do pós-guerra de um país que começava a liderar os avanços tecnológicos, representados pelo trem-bala. E agora, no entanto, de portas fechadas, é como se não houvesse interlocução. Apostava-se na Olimpíada para apartar a impressão de uma nação pouco afeita ao que vem de fora. Em 2020, apenas 47 refugiados foram oficialmente acolhidos. Perde-se a chance, também, da prática de um esporte prestigiado: a cortesia. Quando a apresentadora de televisão Christel Takigawa, uma espécie de Fátima Bernardes japonesa, fez o discurso de agradecimento pela aceitação de Tóquio como sede dos Jogos, em 2013, ela pronunciou sílaba a sílaba a expressão “o-mo-te-na-shi”, que pode ser interpretada como a busca de harmonia por meio da compreensão das necessidades de um hóspede. “Omotenashi não é algo simples, que possa ser dito em palavras”, diz Naofumi Masumoto, professor visitante da Universidade Metropolitana de Tóquio e da Universidade Musashino, estudioso de Olimpíadas. O conceito vai muito além da hospitalidade. “É entreter os convidados da melhor forma possível, do fundo do coração e sem segundas intenções”, afirma Izumi Egami, professora visitante da Universidade Tsukuba, responsável pelos cursos sobre boas maneiras e hospitalidade olímpicas. Esse seria um dos motivos para a gorjeta ser considerada uma ofensa no Japão. Na cerimônia do chá, existe o provérbio ichigo ichie, “um encontro que acontece uma só vez na vida”, para simbolizar o cuidado que se tem para proporcionar ao convidado um momento único e especial.
A Olimpíada de 2021 será um encontro que acontece uma só vez na vida, incomparável — mas não como imaginava o então premiê Shinzo Abe, que apareceu no encerramento dos Jogos de 2016, no Rio, fantasiado de Super Mario, o personagem-encanador dos games da Nintendo, celebrado por ser solícito. Um vírus se instalou entre a esperança anunciada há cinco anos e a dura realidade de hoje. Entre um momento e outro, pairou no ar o medo de que, uma vez mais, a Olimpíada de Tóquio fosse cancelada. Foi o que aconteceu em 1940, atropelada pelo conflito com a China e a II Guerra. Porém já não há como parar a locomotiva, e buscam-se brechas de otimismo. “Há mérito em realizar a Olimpíada com todas as medidas sanitárias previstas”, diz o professor Masumoto. “O adiamento dos Jogos mexeu com os sonhos de mais de 11 000 atletas olímpicos e 4 400 paralímpicos, e a manutenção do torneio atende ao anseio dessas pessoas.” Não é pouca coisa. Nos próximos dias, ao som do eco de arquibancadas sem almas, acompanharemos a ginasta Simone Biles, o norueguês Karsten Warholm, dos 400 metros com barreira, o sueco Armand Duplantis, do salto com vara, e tantos outros. De algum modo, a Covid-19 será posta de lado. No entanto, “será bizarro correr em um estádio sem público”, disse o velocista americano Justin Gatlin, depois de participar de um evento-teste, em maio. Mas se não houver disseminação do vírus, já terá sido uma vitória. E se lamentavelmente não der certo, sempre teremos Paris. Os Jogos de 2024 acontecerão na capital francesa. Os de agora remetem a uma frase do escritor Haruki Murakami, o mais popular do Japão, em Após o Anoitecer, de 2004: “Um novo dia está bem próximo, mas o dia anterior ainda arrasta suas caudas pesadas. Assim como as águas do mar e do rio se enfrentam bravamente na foz, o novo e o velho tempo se chocam e se misturam”. Que comecem os Jogos.
Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747