Com sucesso na Netflix e nas redes sociais, Fórmula 1 ultrapassa a crise
A categoria começa a deixar o passado para trás e dá salto de popularidade, atraindo o público jovem
“Construí um restaurante cinco estrelas e o estão transformando em um McDonald’s”, esbravejou o magnata britânico Bernie Ecclestone ao deixar o comando da Fórmula 1 após quase quatro décadas, em 2017. Purista inveterado, ele não se conformava com a “americanização” da categoria, comprada pelo Liberty Group, dos EUA, por 8 bilhões de dólares. Ele temia a pasteurização das corridas. “Você não pode ir a um recital de balé usando tênis de corrida”, complementou Bernie a VEJA, durante o GP do Brasil daquele ano. Na época, sua revolta, de modo a manter o brilho original do circo, se limitava a ações singelas, como a presença de uma escuderia na cor rosa ou a retirada das grid girls, as mulheres que rodeavam os pilotos antes de os motores roncarem. Ainda que não admita publicamente, Bernie, hoje com 90 anos, deve aceitar a realidade: os novos donos conseguiram rejuvenescer a Fórmula 1.
Estima-se que, entre 2008 e 2016, a categoria tenha perdido um terço de sua audiência global — sem comemorar um título desde Ayrton Senna em 1991, os brasileiros certamente contribuíram consideravelmente para a debandada. Nem mesmo o surgimento de um ídolo carismático como o heptacampeão Lewis Hamilton foi capaz de evitar a perda de interesse dos jovens, um fenômeno claramente observado também no futebol. Para Ecclestone, quanto mais exclusivo fosse o padoque, maior seria a curiosidade dos fãs. O novo chefe, o americano Chase Carey, com anos de experiência como executivo da 21st Century Fox, porém, tinha outros planos: transformar as corridas em um espetáculo e os pilotos em pop stars.
Várias ações de marketing foram implementadas. A mais certeira delas foi, sem dúvida, a parceria com a Netflix, que em 2019 lançou a série Formula 1: Drive to Survive (Dirigir para Viver, em português). A terceira temporada, que mostra os efeitos da pandemia no padoque, mal foi lançada e já está entre as mais vistas da plataforma. O grande mérito do produto foi humanizar a categoria, com uma narrativa intrigante e acesso total aos bastidores. O público-alvo deixou de ser o fanático. Mesmo que nem sequer saiba do que se trata um pit stop, é possível que o espectador se identifique com as piadas de um mecânico ou com o desespero da mãe de um piloto do pelotão de trás, e decida assistir à corrida no domingo por isso. Dados da consultoria Nielsen Sports (leia no quadro) comprovam a relação direta entre o sucesso da série e o crescimento da audiência jovem.
No início, as tradicionais Ferrari e Mercedes se negaram a abrir sua intimidade, mas cederam diante da ótima repercussão. Em um dos episódios recentes, a abertura foi tanta que o finlandês Valtteri Bottas chegou a aparecer nu, em uma sauna, reclamando dos privilégios que seu parceiro Hamilton recebe da Mercedes. O exagero na roteirização não tira o charme da série. “A Netflix potencializa alguns fatos, uma pequena faísca pode virar uma fogueira, mas faz parte do show”, diz Felipe Giaffone, ex-piloto e comissário da federação internacional, hoje comentarista da Band. Um dos episódios mais comentados usa e abusa de chamas reais, ao exibir por todos os ângulos o acidente do qual Romain Grosjean, da Haas, escapa com vida após seu carro se partir ao meio e pegar fogo, no GP do Bahrein.
Campanhas contra o racismo e jogos de videogame, os chamados e-sports, também fortaleceram a marca. Outro tiro certo foi o investimento nas plataformas digitais. Em 2020, a F1 viu crescer em 99% o engajamento em suas redes sociais — na contramão, a Liga dos Campeões de futebol teve queda de 11%. Antenados, os novos pilotos mantêm canais em diversas redes. Recentemente, os brasileiros Pietro Fittipaldi, neto do bicampeão Emerson e piloto reserva de F1 da Haas, e seu irmão Enzo chegaram a um acordo para transmitir suas participações em outras corridas no canal Fittipaldi Brothers, na Twitch. “Foi um sucesso, com meio milhão de espectadores. É um modelo novo que tem tudo para crescer”, diz Pietro.
Os efeitos são sentidos também no meio tradicional, a TV aberta. A Band vem se consolidando no segundo lugar de audiência (chegou a liderar no Paraná, na última corrida) e recebeu elogios pelas transmissões mais completas. “Tenho ouvido relatos diários de pessoas que voltaram a ver corridas junto com os pais, como nos velhos tempos”, diz o veterano comentarista Reginaldo Leme, que, assim como a F1, trocou a Globo pela Band em 2021. A ausência de brasileiros no grid já não preocupa como antes: “Aprendemos a admirar o talento de outros pilotos”. A velocidade, ao que parece, está na moda novamente.
Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736