Cejas, o primeiro Bola de Ouro da Revista Placar
Teimosia do destino: com o inesquecível goleiro argentino foi embora outro goleiro do Santos, contemporâneo no futebol e na hora da partida final: Jair Estevão
No gol, a regra impede dois goleiros ao mesmo tempo, mas, na hora do adeus, a vida infelizmente permite que dois goleiros viajem, juntos, para sua última morada. A morte nada sabe de regulamentos terrenos. Foi o que aconteceu na recente sexta-feira 14 de agosto. Um dia duplamente triste para o sempre grande Santos da Baixada e, claro, para todos aqueles que, por amar o futebol, amamos quase com idêntica paixão seus protagonistas, que viram ídolos, preenchem a memória de lembranças inesquecíveis, quase todas únicas, um pouco mentidas, sabiamente mentidas, agigantadas pelo passar do tempo, engrandecidas pelo enxugamento dos dias que hoje vivemos.
O clube que fez conhecer o melhor do Brasil em tantos lugares do planeta onde nunca antes tinha-se aberto um mapa perdeu, em poucas horas, dois goleiros. De relevâncias opostas, mas um tão importante quanto o outro no coração de sua torcida, que, no agito dos jogos, os classifica por conquistas, mas depois os classifica por sentimentos e sentimentalismos. Assim, todo aquele que vestiu a camisa amada passa à eternidade. E, quando mortos, mais merecida ainda!
A essa eternidade passou Agustín Mario Cejas, argentino de nascimento, feito futebolisticamente no Racing Club de Avellaneda, onde foi campeão mundial, mas consagrado definitivamente no Santos, ao lado de Pelé. E, paralelamente, como um Coutinho de inferior divulgação, isto é, um parceiro entre os mais de milhões que teve Pelé entre verdadeiros e falsos, também disse adeus outro arqueiro. Um desses que a maioria mal repara: Jair Estevão, de apenas oito partidas com as cores do Peixe. Em 1969. Ao lado do Rei. Jair é lembrado por isso, um pouco, e muito mais por um jogo em particular: sim, os santistas sabem que ele protagonizou um momento desses que a história reserva para poucos. Essa curiosidade impediu que o Jair dos oito jogos caísse no pior dos esquecimentos, o dos ignorados.
Foi no dia 14 de novembro de 1969, segundo guardam as crônicas, contra o Botafogo da Paraíba. Pelé havia feito o gol de número 999 na carreira, selando uma vitória, mais uma, 3 x 0. À espera de uma partida mais relevante para marcar o milésimo, esse que percorreria o mundo, que seria quase tão importante como a primeira pisada do homem na Lua. Foi aí que apareceu a rara figura de Jair Estevão, pois o juiz, possivelmente procurando se eternizar junto ao gol mil do craque de Três Corações, assinala pênalti para o Santos. Sabido era que Pelé chutava todas as punições desde os doze passos. Mas o que fazer? Se errasse era indigno, se marcasse estragava a festa que o milésimo gol esperava protagonizar. Num Maracaná lotado! Jair, orientado pelo técnico Antoninho, graciosamente simulou uma contusão entregando a meta santista a Pelé. Assim, o Rei não cobraria o pênalti que poderia resultar no milésimo gol. Na época os goleiros não executavam pênaltis… Rogério Ceni teria se retirado frustrado.
Esse Jair que anos depois iria embora junto a Cejas foi o mesmo que ajudou um outro argentino, Edgardo Norberto Andrada, a tomar o honroso gol mil de Pelé cobrindo o gol do Vasco da Gama, no Maracanã, tal como mandava o figurino, duas partidas depois. Também de pênalti. O gol mil tinha que ser de pênalti, atal hora e em tal jogo, estava marcado como uma cesariana. O parto era especial. Jair sabia muito bem disso. E justamente por isso fez sua parte.
Mas Cejas foi muito grande. Como goleiro e como pessoa. Nunca precisou simular uma lesão para entrar na história. Ele escrevia a história. Deixou-nos aos 70 anos, por causa de complicações derivadas do mal de Alzheimer. Cejas, além de defender a seleção de seu país nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964, o já mencionado Racing, onde estreou aos 17 anos e com quem ganhou as copas Libertadores e Intercontinental e, obviamente, o Santos, também degustou as camisas dos argentinos Huracán e River Plate e a do Grêmio de Porto Alegre. Atuou entre 1970 e 1974 no clube da Vila Belmiro, sendo o terceiro estrangeiro que mais partidas disputou: 253. Só perde para outro goleiro, o uruguaio Rodolfo Rodríguez, e outro compatriota, o zagueiro argentino José Manuel Ramos Delgado. No Racing, ainda hoje, é quem mais atuou e aí ostenta o recorde de minutos com o gol invicto. Também foi seu treinador e secretário técnico. Havia se retirado do futebol profissional em 1981.
Para nós, da PLACAR, sua morte tem mais um significado. Em 1973, ano em que também foi campeão paulista com o Santos, dividiu a primeira Bola de Ouro da história, prêmio que concede nossa revista, com o zagueiro uruguaio Atilio Ancheta, do Grêmio. Eles foram os primeiros estrangeiros a merecer nossa distinção. Inesquecível. Como as tardes em que a torcida de seu Racing gritava seu nome: “Agustín! Agustín! Agustín!”, sempre acentuando o “í”. É história demais para uma simples crônica, como esta. Cejas merece um livro.