Cafu: “Não sei descrever a dor de jogar terra sobre o caixão de um filho”
Ídolo nacional que jogou quatro Copas, o ex-lateral fala pela primeira vez da perda de Danilo, de 30 anos, vítima de um problema cardíaco
A cada cinco dias, Marcos Evangelista de Morais, o Cafu, vai sozinho ao cemitério e deposita flores no túmulo de Danilo, que morreu aos 30 anos, enquanto disputava uma pelada com o pai no campo que fica dentro do condomínio onde mora a família, em Alphaville, nos arredores de São Paulo. “Não sei como descrever a sensação de jogar terra sobre o caixão de um filho”, diz Cafu, ao falar pela primeira vez publicamente sobre a fatalidade, ocorrida no dia 4 de setembro. O ex-jogador tentou socorrer Danilo, carregou-o no colo até o carro e saiu em disparada rumo ao hospital. As tentativas dos médicos para reanimar o paciente revelaram-se infrutíferas. Danilo sofria de aterosclerose coronária (entupimento dos vasos do coração). O episódio representou uma trágica rasteira do destino. Na ocasião de sua morte, Danilo se preparava para uma cirurgia de cateterismo, que estava agendada para dois dias depois. Feita a tempo, a operação poderia salvar sua vida. Cafu chora todos os dias e não teve coragem de entrar no quarto de Danilo nem de voltar ao campo onde a convulsão aconteceu. Ele era o mais velho dos três filhos do ex-capitão da seleção brasileira (casado há 35 anos com Regina Feliciano, Cafu tem também Wellington, 29, e Michelle, 27). O ex-jogador, de 49 anos, recebeu VEJA em duas ocasiões em sua casa para falar sobre essa perda enorme.
O que ocorreu na tarde de 4 de setembro? Havia um jogo com amigos marcado para o dia 5, mas eu teria uma viagem de trabalho aos Estados Unidos e antecipei a partida. O Danilo estava no mesmo time que eu. Em um intervalo, ele saiu e eu segui jogando, pois sou fominha. Três minutos depois, notei um tumulto fora do campo. Por curiosidade, fui ver o que estava acontecendo, e deparei com meu filho sofrendo convulsões. Entrei em pânico, pois ele tinha um histórico cardíaco delicado. Ligamos para os bombeiros, e eles disseram que chegariam em dez minutos, mas meu filho não poderia esperar. Pedi que retirassem as crianças dali, para que não vissem a cena e a correria. Carreguei o Danilo no colo, coloquei-o no carro e em cinco minutos chegamos ao hospital.
Como foram os momentos seguintes? Ele já estava pior quando chegou ao hospital. Os médicos tentaram reanimá-lo de muitas formas (pausa). Depois de meia hora, um médico me chamou num canto. Eu disse: “Doutor, não precisa falar nada. Estou vendo que ele não responde”. Fiquei de pé, orando e pedindo a Deus que não levasse meu menino (chora). Não foi possível.
“Ainda não assimilei o fato de que enterrei um filho. Vou ao cemitério a cada cinco dias, não tive coragem de entrar no quarto dele e nunca mais pisei no campo onde tudo aconteceu”
Qual era o problema cardíaco de Danilo? Ele sofria de aterosclerose coronária precoce (entupimento dos vasos do coração, algo mais comum após os 65 anos), que era tratada com o cardiologista Luiz Carlos Valente. A primeira aparição da doença também ocorreu dentro de um campo. Enquanto jogávamos bola, o Danilo sentiu fortes dores no peito. Saiu da partida e, passado um tempo, parecia tudo bem. Mas, naquela madrugada, sem avisar ninguém da casa, ele voltou a sentir-se mal e dirigiu sozinho até o hospital, onde foi feito um eletrocardiograma. O diagnóstico mostrou que o garoto, de então 24 anos, havia sofrido um infarto. O Danilo me ligou às 7 horas pedindo que eu fosse ao hospital. Meu filho foi transferido para o Hospital do Coração, em São Paulo, e lá colocaram um stent nele. Depois disso, a doença parecia controlada. Ele tinha uma consulta agendada para dois dias depois de sua morte, justamente para fazer um cateterismo e ver se seria preciso trocar o stent. Não deu tempo. Houve uma progressão da doença e meu menino não resistiu.
Em uma escala de dor, nenhuma supera a de perder um filho… Não vou nem deixá-lo terminar a pergunta (choro). Enterrar um filho foge do contexto geral, de tudo o que você sente ao longo da vida. A cada cinco dias, vou ao cemitério visitar o túmulo. Eu não assimilei o que aconteceu. Não tive coragem de entrar no quarto dele até agora, meu filho Wellington recolheu as coisas e colocou tudo para doação. Nunca mais pisei no campo onde aconteceu a convulsão. Não sei como descrever a sensação de jogar terra sobre o caixão de um filho sabendo que ele não vai mais voltar (choro). A morte de um filho acompanha um pai e uma mãe para o resto da vida.
Como têm sido essas semanas iniciais de luto? Choro todos os dias sozinho. Quando entro em casa, procuro me mostrar forte. Afinal, sou a pilastra da família. Choro em geral no trânsito e ligo para amigos apenas para chorar. Eles até sabem e ficam calados, então eu choro, choro e choro. Chorar alivia o peito.
O senhor nasceu em família católica, religião segundo a qual a morte ocorre mediante a vontade de Deus. Isso ajuda a aliviar a dor? Tanto o padre quanto o pastor disseram a mesma coisa, que sempre há o momento de Deus e que não podemos contestar a vontade dele. Poxa, mas eu também tinha as minhas vontades e planos para o Danilo ao meu lado. Existe um confronto com Deus nesse sentido. O que posso garantir é que o céu ganhou um anjo. Deus queria alguém muito bom ao lado dele. Eu digo: “Senhor, ele era muito novo. Pode não ter vivido o suficiente. Se foi a sua vontade, respeito; mas preferia ele aqui conosco”. Aí eu leio a Bíblia e peço a Deus que faça bom uso do anjo que agora está ao seu lado. Sinto demais sua ausência. Cadê o menino que usava meus perfumes só para me sacanear?
Seus ex-colegas de gramado se manifestaram? O Danilo viveu comigo fora do Brasil e foi aos jogos das Copas de 1994, 1998, 2002 e 2006. Absolutamente todos os jogadores entraram em contato. Após o enterro, fiquei dias sem ligar o telefone. Quando fui ver as mensagens, havia mais de 5 000.
A tragédia vai mudar de alguma forma as atividades que o senhor mantém após a aposentadoria do futebol? Não, preciso trabalhar para manter a cabeça ocupada. Estive na China há três semanas, para lançar um programa do governo local que visa à criação de escolas de futebol de alto padrão. Sou embaixador da Copa do Catar, então viajo para divulgar o evento. Também faço parte do corpo conselheiro da Fifa, cuja missão é se reunir a cada três meses para propor melhorias no futebol. Foi minha a ideia de fazer uma quarta substituição durante a prorrogação. Agora tentaremos outra mudança: permitir que o lateral seja cobrado com os pés, em vez de com as mãos.
Por qual motivo essa mudança seria melhor? A Fifa quer possibilitar mais chances de gol durante uma partida. Essa mudança permitiria que a cobrança do lateral tivesse a força de uma falta. Também faço parte da comissão disciplinadora da CBF. Mas meu maior trabalho é com a Fundação Cafu.
A Fundação Cafu teve problemas de atraso de salários e não pagamento de FGTS de funcionários. Além disso, houve uma diminuição no número de crianças assistidas. Qual a razão dessa crise? Criei a fundação em 2003, com meus recursos. Tem gente que pensa que se trata de aulas de futebol, mas não é isso: a missão é a inclusão social. Há aulas de balé, capoeira, violão, basquete, vôlei, artesanato… Formamos centenas de cabeleireiros. Com a crise econômica, muita gente cortou investimentos no terceiro setor. A população carente fica ainda mais vulnerável. O orçamento da Fundação Cafu, que era de 120 000 reais por mês, caiu demais e atrasamos salários. Atualmente, tiro do meu bolso 40 000 reais para manter a entidade, que antes da crise assistia 950 crianças todos os dias. Hoje, ela atende metade disso. Se não entrarem recursos e a fundação não ficar autossustentável, deveremos fechar no fim do ano.
O Jardim Irene, bairro da periferia de São Paulo que foi homenageado pelo senhor no momento de levantar a taça do penta, no Japão, está melhor? Sim, está menos violento e tem mais opções de lazer. Muitos professores e pais me agradeceram porque a existência da Fundação Cafu fez com que os alunos tivessem melhor desempenho escolar. Eu perdi amigos de infância para o crime. Muitos morreram, outros foram presos. Uma realidade não mudou: a periferia continua esquecida pelos governos e pela população em geral.
Como o senhor analisa a seleção brasileira hoje? Com exceção de Neymar, nenhum craque foi revelado nos últimos dez anos. O motivo: falta comprometimento. Além disso, a dinâmica do futebol de base está errada.
“Após o enterro, desliguei o celular. Quando fui ver as mensagens, havia mais de 5 000. Todos os meus ex-colegas de seleção me procuraram para prestar solidariedade”
Explique melhor. O pai de um garoto bom de bola entrega a carreira dele bem cedo a um empresário ou procurador. Alguns meninos começam a ganhar 30 000, 50 000 reais por mês. Imagine o que isso não faz com a cabeça deles, ainda mais se tiveram origem humilde. Aos 23 anos, não querem mais saber de nada. Eu recebia ajuda de custo para transporte quando comecei. Há uma questão de geração também.
Como assim? A nova geração não aceita ouvir “não”. Os jogadores precisam saber que a rotina tem de ser treinar, jogar e descansar. Muitos jovens se irritam por levar uma dura ou quando alguém levanta a voz para eles. Sem persistência e sem reconhecer eventuais falhas, não há avanço. Eu ouvi nove “nãos” até que fosse aceito por um clube. Meu encontro com o Telê Santana (1931-2006) foi perfeito: ele amava dar treino e eu, aprender. O Telê corrigiu a minha maneira de chutar a bola, exaustivamente. Enquanto meia, eu dava pauladas. Como lateral, precisava aprender a chutar de forma que a bola fizesse um arco — então virei esse lateralzinho que vocês conheceram.
O senhor faturava 7 milhões de reais por ano no começo dos anos 2000. Hoje, Neymar ganha 395 milhões por ano. O que mudou? Os salários e cachês de publicidade são outros, até porque não havia rede social nem toda a grana que ela acarreta. Não acho errado receber muito; se alguém paga, é porque a pessoa dá retorno de imagem e financeiro. Sou muito grato por tudo o que o futebol me deu. Nasci filho de uma empregada doméstica e de um servidor público, cheguei a morar com cinco pessoas em um único cômodo. Agora, o que vemos é que os jogadores até ganham muito dinheiro, mas não têm foco.
Seu filho Danilo não tentou ser jogador profissional? Sim, ele jogava como centroavante nas partidas aqui em casa e, no passado, chegou a atuar no time de base do Milan, quando moramos na Itália, mas se deu conta de que aquela não era a praia dele e saiu. Era agregador e piadista, tirava sarro de todo mundo. Dentro de casa, ele me chamava de “capitão”. Para quem é pai, a dor cega. Eu não perdi apenas um filho. Perdi um amigo de futebol e de truco, meu companheiro de viagens e de cervejadas. Perdi tudo. O Danilo preenchia a casa.
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659