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Aymoré Moreira a PLACAR em 1970: ‘Eu também barraria Pelé’

Pouco antes da estreia na Copa, o ex-treinador escreveu um ruidoso e corajoso artigo. Deu o que falar, gerou insatisfação e reverbera até hoje

O futebol perdeu o seu rei nesta quinta-feira, 29. Pelé, o maior de todos os tempos, morreu aos 82 anos “em decorrência de falência de múltiplos órgãos, resultado da progressão do câncer de cólon associado à sua condição clínica prévia. Fica o legado, as histórias. Em 1970, pouco antes da estreia na Copa que consagraria ao Rei a condição de único atleta três vezes vencedor de um Mundial, o ex-treinador Aymoré Moreira escreveu um ruidoso e corajoso artigo. Deu o que falar, gerou insatisfação e reverbera até hoje. PLACAR recorda:

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“‘Aymoré, você barraria Pelé?’ Tenho ouvido muito essa pergunta nos últimos dias. Não se trata de barrar. Eu testaria todas as fórmulas possíveis para ter um bom time com Pelé. Entretanto, se fosse impossível montar um esquema em que Pelé, como todos os demais jogadores, trabalhasse para o time, eu não chegaria ao ponto de sacrificar a seleção: barraria Pelé. Falaria com ele francamente, explicaria meus motivos. Mas o barraria. Acho que qualquer técnico tem que ter independência e liberdade para fazer isso.

A primeira vez que vi Pelé jogar foi pelo Santos, antes da Copa de 1958. Ele era mais moço, quase um menino, jogava como o técnico mandava, era orientado dentro de campo pelos companheiros. Era muito ligeiro e já tinha as mesmas virtudes de hoje, embora a experiência as tenha desenvolvido com o tempo. Era constantemente lançado em profundidade. Ele voltava para buscar jogo, mas, sempre que um companheiro dominava a bola, partia para a frente, para a área.

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Hoje, joga de maneira inteiramente diferente. Pelé achou aos poucos o lugar e a forma de jogo mais apropriados para ele, que lhe deram a marca de grande jogador. Em 1958, na Suécia, ele era lançado na área. Passou a ser o homem que lançava, e não mais o lançado. Desenvolveu um rush todo seu, com a bola nos pés. Encontrou, afinal, a movimentação que lhe convinha.

Em 1970, Aymoré Moreira (1912-1998) era colunista de PLACAR: figura histórica do futebol brasileiro, foi treinador campeão do mundo pela seleção na Copa de 1962 -
Em 1970, Aymoré Moreira (1912-1998) era colunista de PLACAR: figura histórica do futebol brasileiro, foi treinador campeão do mundo pela seleção na Copa de 1962 –

Minha experiência com Pelé começou na seleção paulista, em 1959 ou 1960, no Campeonato Brasileiro. Ele já era um jogador consagrado, que se aprimorava. Daí em diante só o dirigi em seleções, assim mesmo em poucas ocasiões: na Copa de 1962, machucou-se no segundo jogo. Numa excursão à Europa, em 1963, contundiu-se no primeiro jogo. Voltou ao time algum tempo depois, mas se machucou de novo

De sua atuação depende toda a equipe. Os times armados em função de seu jogo caem bastante quando ele não pode jogar. E aí está todo o perigo. Muitas vezes, inconscientemente, ele prejudica o time. Ele necessita de muito espaço no lado esquerdo; sem isso, não é o mesmo. Por sua grande categoria, merece cuidados especiais dos adversários. Um quadro que jogue em função de Pelé corre o risco de tê-lo bem marcado e aí nada vai dar certo.

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Em cada seleção da Europa há um homem especializado em marcar Pelé. Se um desses marcadores consegue anulá-lo, o time brasileiro se perde. O pior é que durante muito tempo não se tomou qualquer providência para evitar uma dependência total de seu futebol. Pelé é necessário e pode ser muito útil, mas não é indispensável. A seleção já provou isso: em 1962, fomos campeões sem ele.

Por isso, gostaria de lembrar uma coisa: nenhum brasileiro admite que Pelé possa cair de produção, que ele tenha realmente caído de ritmo. Em suma: não admite que ele acabe. Pelé hoje é um veterano, com 29 anos, mas com treze anos de futebol, com a média de quase cem jogos por ano. E a forma que ele escolheu de jogar é das mais cansativas. Nenhum outro jogador teria resistido tanto tempo. Só Pelé, excepcional jogador e atleta notável.

Pelé e Tostão na final entre Brasil e Itália, no Estádio Azteca, na Copa do México-1970
Pelé e Tostão na final entre Brasil e Itália, no Estádio Azteca, na Copa do México-1970 –

Qual deve ser a função de Pelé na seleção? O mais racional é que se procure para ele uma nova função, de acordo com o que ele é, não com o que ele foi. Hoje ele não tem mais condições de ajudar a defesa. Não aguenta mais o vaivém. Tê-lo atrás, desarmando e lançando apenas, sem o vaivém, não vale a pena. É preferível tê-lo na frente. Parece que João Saldanha teve esse problema: não queria Pelé adiantado, mas ele é mesmo incapaz de fazer o vaivém. Onde Zagallo vai colocar Pelé? Essa é a pergunta e eu não sei respondê-la. Lá na frente, é a minha ideia.

Abrindo caminho, desbravando espaços para que outros cheguem ao gol. É hora de mantermos a cabeça fria e termos em conta dois fatores que considero fundamentais: (1) não se pode adaptar a seleção brasileira ao padrão de jogo de Pelé; e (2) como ele é um grande jogador, temos de buscar fórmulas para adaptá-lo à seleção. É essa a tarefa de Zagallo.”

Texto adaptado da publicação da edição 1467, de setembro de 2020

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