Armando Bó: ‘O Fifagate foi mais criativo que a ficção’
Vencedor de um Oscar, o diretor da série ‘El Presidente’, disponível na Amazon Prime Video, falou a VEJA e PLACAR sobre corrupção no futebol e machismo
Em 2015, uma batida policial deflagrada em um hotel de luxo em Zurique abalou as estruturas do futebol mundial. O episódio foi o estopim do chamado Fifagate, que colocou na cadeia alguns dos cartolas mais poderosos até então. Os absurdos detalhes da operação conduzida pelo FBI a pedido da Justiça dos Estados Unidos serviram de base para a série de TV dirigida pelo argentino Armando Bó (roteirista vencedor do Oscar por Birdman).
Os oito episódios giram em torno da vida e ascensão de Sergio Jadue (vivido por Andrés Parra), presidente da federação de futebol do Chile, um personagem menos conhecido dos brasileiros, porém central na revelação do esquema de corrupção. Jadue escapou da prisão após a ação na Suíça, pois era um dos delatores que colaboraram com a investigação. Hoje o ex-dirigente chileno, que enriqueceu graças aos milhões de dólares recebidos em propinas, vive em Miami e aguarda sua sentença em liberdade. ‘El Presidente’ está disponível na plataforma de streaming Prime Video, da Amazon.
Torcedor do Independiente de Avellaneda e fã de Messi, Armando Bó concedeu a seguinte entrevista na véspera do lançamento da série, na semana passada. A história completa de Jadue você pode conhecer na edição de junho de PLACAR, já disponível no GoRead e no aplicativo para tablets e smartphones.
Antes de ‘El Presidente’, o quão familiarizado você estava sobre o futebol e seus bastidores? Sim, amo o futebol. Por ser argentino, consigo ver o esporte de uma forma distinta, com toda sua beleza. Assisto às partidas, já fui a Copas do Mundo. Sou um grande fã de Messi. Essa parte eu amo. E por conhecer tão bem o esporte, também posso vê-lo por um prisma de cinismo e ironia. Ver o crescimento de relevância em nossa sociedade. E como ele foi manejado de uma forma muito maluca, quase irreal. O escândalo Fifagate é uma das situações em que a realidade é mais criativa que a ficção. Os fatos foram tão absurdos, como esses homens, uns senhores, administravam o negócio que é o futebol. Como conseguiram obter tanto poder, tanto dinheiro. Foi bastante desafiador encontrar o tom da série, pois eles operavam quase que sem supervisão alguma. Era ao mesmo tempo o cúmulo da corrupção e o cúmulo da normalidade, na forma como se portavam.
Por que contar essa história do ponto de vista do presidente da Federação Chilena de futebol, um personagem menos conhecido? Veja, todos os dirigentes eram homens já de certa idade: Grondona, Havelange, Teixeira. Agora, esse (Sergio Jadue) é um cara jovem, espécie de anti herói. Para mim é tragicômico o que acontece com ele: um cartola de um time pequeno que ninguém conhece ou se importa, apaixonado por aquilo que faz, estúpido e inteligente ao mesmo tempo, por vezes instintivo. Podemos ver na série que a medida que tornava-se cada vez mais bem sucedido no trabalho, a pressão em sua vida pessoal aumentava tanto ou mais, seja pelo FBI ou pela riqueza que estava acumulando. E como tudo explode ao final. Para mim o tom dessa história é uma sátira, uma paródia. Para mim, seria impossível contar essa história de uma maneira realista, e a história de Sergio é um excelente pontapé inicial para abrir essa caixa preta maluca que é o Fifagate. É, de fato, um local pouco provável para se começar. E gostei justamente disso. A ironia da série já começa ao mostrar o Chile como um lugar importante para o mundo, pelo menos nessa história. Se fosse contada pelo ponto de vista brasileiro ou argentino, acho que já seria algo esperado.
A agente do FBI que aborda Jadue na história é real? Ela foi criada para a série. Tenho certeza de que houve um agente do FBI que o abordou, sabemos disso, é claro, pela pesquisa que fizemos, mas não sei se era igual à personagem de Karla (Souza, atriz mexicana que interpreta a agente Lisa Harris). Muitas coisas são ficcionais. De novo, para abordar essa história maluca temos que criar um ambiente tão insano quanto. Em nível de criatividade, o que esses caras fizeram, é preciso exagerar em tudo.
Existem duas personagens mulheres bastante marcantes na série, ambas obrigadas a lidar com o preconceito e o machismo do ambiente do futebol. Essa característica tóxica foi algo que você buscou ressaltar na série? É verdade que esta série se passou em 2014. Nesses últimos seis anos, o mundo mudou drasticamente. A percepção do que é uma atitude machista ou não também se alterou radicalmente. Para mim, por um lado é interessante comparar a estrutura do FBI e da Conmebol e da Fifa e como elas se tocam nesse ponto. E definitivamente não queria que essa fosse uma série voltada para homens. Claro, é uma história sobre futebol, mas também sobre mafiosos. Pelo lado do humor, foi interessante colocar Sergio pressionado por essas duas mulheres. Parecia uma panqueca. Então foi bom pelo aspecto dramatúrgico e, claro, abordar o machismo do ambiente retratado.
Como você definiria o personagem principal. Por vezes ele parece um pouco ingênuo… Não diria ingênuo, ele é um anti herói. A todo momento ele busca usar seus instintos. Vindo de uma cidade pequena como La Calera ele não estava preparado para o cargo que o destino colocaria em seu caminho. Ele estava aprendendo durante a jornada, começando lá debaixo, e de certo modo isso também é engraçado. Para mim, como um criador, era importante não apenas relatar os fatos como aconteceram, mas imaginá-las de uma forma que fosse divertida, um bom entretenimento. O tom, é claro, é sempre um pouco exagerado, propositalmente.
Pessoalmente, você ainda consegue apreciar o futebol mesmo após conhecer a fundo todos os seus segredos mais sórdidos? Para mim não é um problema. Amo o futebol e sempre o amarei. Daqui a alguns anos, quando Messi parar de jogar, não sei o que vou fazer. E isso nada tem a ver com corrupção. É sobre apreciar o melhor jogador, sobre 22 pessoas correndo atrás de uma bola. Mas eu me questiono o por quê disso. A corrupção é da natureza humana. Claro que esse é um caso de excesso, e acho que por isso, para mim, torna-se divertido. Profissionalmente, recontar a história do Fifagate é uma oportunidade fantástica, um tema internacional e relevante, e com o tom da sátira característica de Birdman, agora como diretor e criador.
E que outra história futebolística você quer contar? Não é que agora quero me tornar o cara do futebol. Quero sempre estar mudando. Mas se encontrar alguma história especial, diferente. Mas não dá para falar muito do futuro.
No anel de Julio Grondona, está escrito a mensagem em espanhol: “Tudo passa”. Você acredita que o Fifagate limpou o ambiente do futebol de uma vez por todas? Sou um pouco cético quanto a isso, é claro. Acho que os dirigentes aprenderam com essa turma, e não repetirão os mesmos erros, pelo menos não da mesma forma. Foi algo tão grandioso que imagino que alguma limpeza foi feita. Mas as pessoas que governam entidades esportivas na América Latina e no mundo já faziam parte dessa engrenagem a muito tempo. Por isso sou cético, mas espero que mude, mas se não mudar, faz parte de como as coisas são por aqui infelizmente.
Então você não viu mudança alguma… Antes do Fifagate, ninguém falava a respeito desse assunto, pelo menos não com a mesma intensidade. Por isso imagino que os dirigentes estão aguardando tudo passar, como dizia o anel de Grondona. Mas não quero ser tão dramático sobre isso. Não é como o contexto de Narcos, onde se vendia drogas e se matava gente. Por isso para mim o tom da sátira e da paródia se encaixa na série. É um caso terrível, mas nem tanto.
O timing do lançamento de El Presidente coincide com a paralisação das partidas em todo o mundo. Foi sorte? Não existe nada de sorte sobre uma pandemia. Sugiro que as pessoas assistam à série porque é divertida, não é algo feito apenas para quem gosta de futebol. Traz temas como o comportamento de máfia, de corrupção. Mas nunca substituirá uma partida de futebol, nem tem a pretenção de competir por atenção com jogos ao vivo.