A honra sobe ao pódio em Tóquio
O drama do maratonista japonês que se matou depois de perder a prata dentro do estádio olímpico – e a conexão com a frustração de Kohei Uchimura
É possível haver silêncio dentro do silêncio? Sim, é o que se ouviu pela televisão, quando Kohei Uchimura parecia pronto para iniciar a prova da barra fixa no Centro de Ginástica Ariake, emoldurado por um infinito teto de cedro. Não se ouvia nem um pio, nada, nem mesmo o canto dos tsurus, porque Uchimura, de 32 anos – “o rei” – é considerado no Japão, e para além de suas fronteiras, um dos maiores atletas da história. Ele foi bicampeão olímpico do torneio individual geral, em Londres e depois no Rio de Janeiro. De 2009 a 2016 nunca perdeu. Para-se tudo para vê-lo. E então, venerado e amado, lenda viva em Tóquio, girou em torno da barra, leve e deslumbrante como sempre. De repente, suas mãos escorregaram depois de uma pirueta rápida em demasia. E o silêncio dentro do silêncio aumentou. O erro representou a desclassificação e o fim de uma carreira única. Passou cabisbaixo e irritado entre os companheiros e sumiu por trás dos cinco anéis olímpicos que compõem a decoração do ginásio. Depois, amuado, ele diria: “Meu desempenho não foi algo realmente aceitável”, disse. “Não acho que depois da apresentação de hoje eu mereça ser chamado de rei”.
A decepção de Uchimura só não foi mais ruidosa, insista-se, porque as arquibancadas estavam vazias. Mas ele achar que já não merece ser chamado de rei, o constrangimento diante de seus súditos, é atalho para uma das histórias mais tristes do Japão olímpico. Cabe, portanto, um retorno a 1964, aos primeiros Jogos de Tóquio. Mais de 70.000 fãs lotavam o Estádio Olímpico e explodiram em êxtase quando Kokichi Tsuburaya despontou no portão principal a caminho da medalha de prata da maratona. O ouro, previsivelmente, seria do etíope Abebe Bikila, que vencera a prova quatro anos antes, em Roma, correndo descalço. Tsuburaya, ovacionado pelo público, parecia exausto. Os músculos já não respondiam ao cérebro. O fazendeiro que se tornara soldado corria, naquele dia, apenas sua quarta maratona. Seria o primeiro pódio japonês no atletismo. O cansaço era sinônimo de perseverança e resistência de uma nação inteira saída da guerra havia apenas 19 anos. Lá vinha o Japão entrando na pista.
O frenesi aumentou quando o britânico Basil Heatley despontou 40 metros atrás de Tsuburaya. A euforia rapidamente se transformou em pavor e de pavor em frustração. O japonês foi ultrapassado. Ficou com o terceiro lugar, quatro segundos atrás de Heatley. A prata virara bronze. E, no entanto, depois do susto, a plateia saudou a extraordinária conquista do conterrâneo, pouco se incomodando com a cena que acontecera, a ultrapassagem de última hora. Depois do pódio, Tsuburaya ergueu a medalha, fez uma reverência para os fãs e especialmente para o camarote onde estavam o príncipe herdeiro e a princesa. E, no entanto, apesar do sorriso tímido, parecia arder por dentro. Ter descido um degrau diante dos olhos do mundo, já no estádio, era dor que, aparentemente, nunca deixou de sentir. O que ele disse, há 57 anos, se assemelha com o que afirmou Kohei Uchimura, agora: “Cometi um erro imperdoável na frente do povo japonês”.
O maratonista anunciou que nos Jogos do México, em 1968, compensaria a derrota. Mas ele nunca chegou ao México. Treinou como nunca, mas em 1967 lidava com uma hérnia de disco e lesões nos tendões de Aquiles. Em 8 de janeiro de 1968, depois de ter sido deixado pela namorada em sua cidade natal, Sukagawa, Tsuburaya usou uma lâmina de barbear para cortar sua artéria carótida. Foi encontrado morto agarrado à sua medalha de bronze. A carta de suicídio, divulgada pela família, virou um símbolo de honra no Japão: “Meu querido pai e minha querida mãe, seu Kokichi está cansado demais para correr. Por favor, perdoe-o.” Soube-se, depois, que ele enviara uma carta também ao presidente do Comitê Olímpico Japonês com um pedido de desculpas. “Lamento não ter conseguido cumprir minha promessa. Oro por seu sucesso na Olimpíada do México”. Tsuburaya tinha 27 anos. “Trabalho árduo, humildade, responsabilidade e fidelidade; Tsuburaya conecta muitos aspectos comportamentais do Japão”, disse Roy Tomizawa, autor do livro 1964 – The Greatest Year in the History of Japan ao The New York Times. “A simplicidade e a poesia do bilhete suicida que ele deixou é comovente, embora simples e discreto. Entende-se porque tantos japoneses ficaram comovidos”.
Entende-se porque Kohei Uchimura dizer que já não pode ser chamado de rei é comovente.