A Covid-19 e o coração dos jogadores de futebol: ‘A vacina é segura’
PLACAR ouviu especialistas em cardiologia para explicar eventos como o de Agüero e Erikssen e possível relação com o coronavírus
No dia 12 de junho de 2021, durante a primeira rodada da Euro 2020, Christian Eriksen, da Dinamarca, sofreu uma parada cardíaca e precisou ser ressuscitado em campo, contra a Finlândia. Meses depois, o argentino Sergio Agüero, do Barcelona, foi diagnosticado com um quadro de arritmia e foi forçado a encerrar a carreira. Em meio à pandemia de Covid-19, jogadores passaram a sentir sequelas cardiovasculares, como foi o caso de Alphonso Davies, do Bayern de Munique. Os casos tensos e de grande repercussão colocaram a cardiologia no centro do debate esportivo. PLACAR ouviu especialistas em problemas do coração para desvendar algumas dúvidas sobre o assunto.
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Problemas cardíacos em atletas não são novidade. No Brasil, o caso mais conhecido foi o do defensor Serginho, que morreu em campo após crise causada por uma hipertrofia cardíaca, enquanto jogava pelo São Caetano, em 2004, no Morumbi. Após o evento, foram estabelecidos maiores cuidados com o coração de atletas no país.
Outros episódios marcantes foram o de Washington, atacante que, em 2002, precisou ser submetido a um cateterismo para desobstruir as artérias do coração e ficou conhecido como “coração valente” quando retornou aos campos, e Renato Abreu, meio-campista que se recuperou de uma arritmia cardíaca em 2012 e voltou a atuar. Nas últimas semanas, o goleiro Matheus Cavichioli, do América Mineiro, foi diagnosticado com entupimento arterial e passou por procedimento cirúrgico para correção.
O que diz a ciência
Médicos mundo afora vêm monitorando a situação. O estudo Registro de Mortes Súbitas em Futebol Fifa, do alemão Florian Egger, referência europeia em medicina esportiva, registrou que entre 2014 e 2018 um total de 617 jogadores tiveram morte súbita relatada. Em atletas maiores de 35 anos, a causa líder foi a doença arterial coronariana e em pessoas de 16 a 34 anos, o maior fator foi “morte súbita sem explicação”. Em 2019, a Sociedade Brasileira de Cardiologia divulgou uma pesquisa elencando os principais motivos de mortes súbitas em esportistas: miocardiopatia hipertrófica (desenvolvimento excessivo do coração) e miocardite (inflamação no músculo do coração) estão na lista.
A PLACAR, a doutora Renata Castro, pós-Phd em cardiologia pela Universidade de Harvard e especialista em medicina do esporte, explicou que nem sempre esportistas são saudáveis. “Existe um mito sobre isso. É possível que o atleta tenha um problema prévio que se manifesta ainda jovem. Antigamente acreditava-se que quanto mais exercício físico, melhor. Não é assim. Existe uma dose ideal e tudo precisa ser estudado. Histórico clínico, estilo de vida e nível de treinamento devem ser analisados”.
“O treino moderado é saudável e essencial, previne comorbidades, como a obesidade, diabetes e hipertensão. O problema é passar disso. Cada um tem seu limite e o acompanhamento é necessário”, completa Renata.
A ciência evolui anualmente e inovações tecnológicas colocam a medicina, cada dia mais, em um patamar altíssimo. A expectativa de vida média subiu nos últimos anos (no Brasil está em 76,8, uma alta de 3,3 anos na última década) e doenças vistas como trágicas passaram a ser tratadas. No entanto, o coração dos jogadores de futebol ainda parece um assunto a ser explorado.
Renata apresenta um contexto histórico e geográfico. “Até a década de 70, havia um número relevante de mortes durante a prática de exercício físico, principalmente na região de Veneto, Itália, local com alta incidência de Displasia Arritmogênica do Ventrículo Direito, o que causa arritmia. A partir daí, reduziu-se este número de mortes com a avaliação pré-atividade, que consiste em uma consulta, exame físico e eletrocardiograma”, explicou.
Assim, com o protocolo adotado por grande parte do mundo, houve uma redução significativa em eventos de morte súbita. A taxa, porém, não chegou a zero, segundo ela, por falta de aprofundamento no tema. “Existem problemas que exigem mais exames, como um teste cardiopulmonar e ecocardiogramas. Porém, isso não é institucionalizado”.
O médico Roberto Yano, cardiologista especializado em Estimulação Cardíaca Artificial pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular e Associação Médica Brasileira (AMB), afirma que por mais que um atleta seja monitorado com mais frequência e que na grande maioria dos casos seja possível realizar procedimentos de prevenção à casos mais graves, nem sempre episódios de parada cardíaca em campo podem ser previstos em exames. “Os casos mais comuns de atletas que morrem subitamente são decorrentes de uma doença genética chamada cardiomiopatia hipertrófica, em que o diagnóstico pode ser feito através de um simples ecocardiograma.”
“Em atletas com mais de 35 anos, a principal causa de morte súbita é o infarto agudo do miocárdio. Apesar disso, existem causas idiopáticas e que não são possíveis de serem detectadas, ou seja, faz-se o “screening” do atleta, os exames são todos normais e o paciente ainda assim apresenta um episódio de morte súbita. São casos raros”.
O doutor Ricardo Petraco, médico PhD e cardiologista da Imperial College, de Londres, afirma que o futebol europeu é rígido em relação ao assunto e que é extremamente raro que haja uma doença não identificada nestes exames. Ele, no entanto, citou o caso do dinamarquês Eriksen para explicar que a possibilidade, ainda que remota, existe. “Antes de ir para a Inter de Milão, o Eriksen atuava no Tottenham, que tem um dos cardiologistas mais respeitados do mundo, e mesmo assim ele não escapou do evento”, disse. “O tipo de problema cardíaco de atletas é diferente do das pessoas comuns. Claro que há muita repercussão, todo mundo fica sabendo quando acontece, mas é extremamente raro”.
Covid, vacina e cardiologia
O tema ganhou ainda mais notoriedade em um contexto de pandemia, no qual vozes importantes do esporte como o tenista sérvio Novak Djokovic, o surfista americano Kelly Slater e o jogador de basquete americano Kyrie Irving se negaram a tomar vacina e adotaram uma postura negacionista em relação à eficácia, na contramão de todas as evidências científicas. Apesar do número crescente de casos da variante ômicron, o de óbitos se mantém bem abaixo dos índices pré-imunização. Antes de qualquer elaboração, Ricardo Petraco e Renata Castro são enfáticos: “A vacina é muito segura”.
Por outro lado, contrair o vírus pode ser um risco, até para jogadores. O jovem lateral Alphonso Davies, do Bayern de Munique, teve o coração atacado pela infecção e foi diagnosticado com miocardite. Outro caso foi o de Pierre Aubameyang, que precisou ser desligado da seleção de Gabão após alterações cardíacas serem encontrada após a doença.
“Inicialmente, acreditava-se que a Covid era apenas uma virose respiratória, mas é um vírus que pode atingir diversos sistemas do corpo e o coração é um dos órgãos mais afetados. A miocardite, por exemplo, é a agressão do vírus ao músculo cardíaco. Não podemos esquecer também da trombose coronariana, que pode causar um infarto agudo do miocárdio”, disse Renata.
Ricardo, antes de alertar sobre a Covid, lembrou que outras infecções por vírus também podem causar uma miopericardite, apesar do coronavírus demonstrar estar afetando mais. Entretanto, é preciso calma, segundo o médico: “Qualquer um pode ter uma inflamação cardíaca após a doença, mas em grandíssima maioria é leve. O problema costuma ser para quem tem uma doença cardíaca prévia, que pode ter uma complicação maior. Mas um jogador não vai morrer disso”.
Quanto às especulações que aliam vacina e problemas cardíacos, o pós-doutor falou: “Se você é do grupo de risco, você pode pegar Covid, ter uma miocardite e morrer disso. Se você se vacinar e desenvolver uma miocardite, o que já é extremamente raro, a chance disso terminar em morte é muito reduzida”.
E completou: “As pessoas precisam entender que quando você vacina milhões de pessoas em um espaço de tempo, vai ser fácil um antivacina negacionista encontrar qualquer relação temporal, pois infartos, problemas cardíacos e cânceres continuarão acontecendo. Para encontrar uma relação causal entre o imunizante e qualquer efeito colateral, é preciso que seja provado um aumento significativo da doença em pessoas vacinadas”.
De acordo com as novas orientações do Ministério da Saúde, um positivo para a Covid-19 pode sair do isolamento após cinco dias, mediante à teste PCR negativo, ou depois de dez dias. Entretanto, nem sempre um atleta está apto para voltar à prática imediatamente após o fim da quarentena.
“Existe um protocolo para a avaliação do atleta após uma infecção moderada ou grave da Covid, que inclui consulta, exame físico, eletrocardiograma, teste cardiopulmonar de esforço, ecocardiogramas, testes laboratoriais e, eventualmente, ressonância. O objetivo disso é procurar sequelas e orientar o retorno seguro”, relata Renata Castro.
Questionado sobre a importância da reavaliação de um jogador após a infecção de Covid, Roberto Yano afirma ser essencial para qualquer pessoa, não apenas para atletas a bateria de exames pelo departamento médico para descartar qualquer indício de sequela.
“No caso de atletas isso se torna obrigatório. Atletas devem ser avaliados com mais detalhes se não tiveram nenhuma sequela cardíaca. Pois como demandam de mais energia ao coração, o risco de complicações nos pós infecção, caso fique com alguma sequela, é maior, sem dúvida”, afirma Roberto.