‘A bola é meu remédio’, diz atacante que marcou na volta do futebol alemão
Matheus Cunha foi o primeiro brasileiro a fazer um gol na primeira grande liga reiniciada na Europa
Sei que estou vivendo um capítulo decisivo da história da humanidade. Depois que meu filho nascer e quando eu tiver netos, poderei contar a eles que em 2020 presenciei uma das mais graves epidemias que o mundo já viveu. Vou abrir os livros e lembrar de cada momento. Os dias confinados, a saudade que senti dos familiares e, o mais importante, quanto aprendi a valorizar aqueles que amo e os que me amam também. Senti e sinto saudade da minha família. Meus pais, irmã, amigos, avós e outros parentes. Meu filho está para nascer e minha mãe não pode estar aqui comigo nesse momento tão emocionante. É doloroso. Uso a tecnologia para matar um pouco a saudade, mas a falta do beijo, do abraço e do calor humano, tão brasileiros, machuca.
Saí de casa com 14 anos para tentar ganhar a vida com o futebol. Lembro de cada detalhe. O êxito no CT Barão, no Recife, a ida para o Coritiba, o sucesso em um torneio Sub-17 na Europa e, logo em seguida, aos 17 anos, a ida para o Sion, da Suíça. Cheguei para atuar no time Sub-20, mas acabei jogando entre os profissionais. Logo comecei a me destacar na equipe, com gols e boas atuações. Um ano depois estava me transferindo para o Red Bull Leipzig, da Alemanha, onde passei a disputar torneios maiores, entre eles a famosa Liga dos Campeões da Europa.
A saída precoce do Brasil, decisão complicada, valeu a pena. Hoje estou no Hertha Berlin, convocado constantemente para a seleção brasileira pré-olímpica e, no meu país de origem, onde nem sequer joguei profissionalmente, muitos me conhecem. Com toda essa vivência, aprendi a controlar meus sentimentos. Mas agora é diferente. É distância misturada com preocupação. A cada notícia de mais mortes no Brasil, meu coração aperta. Dá certo alívio ter minha mulher comigo e, muito em breve, um bebê, que chegará para acalmar meu coração e me dar força. “Mãinha”, em breve a senhora estará aqui, com seu neto. Mariah, seu irmão sente muito a sua falta.
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E como esquecer, por minutos que sejam, dos problemas? Tenho o futebol. Jogar bola é minha profissão, diversão e remédio para os dias difíceis. Foram dois meses de aflição com o confinamento. Mais angustiante do que não entrar em campo era não ter a previsão do retorno. Felizmente vivo em um país considerado referência em saúde pública. Em virtude do bom trabalho do governo alemão, o futebol pôde voltar. Com uma nova metodologia, é claro. No começo, foi assustador. A gente fica dentro de casa, vendo as notícias, e é difícil ter a exata dimensão das coisas. No primeiro dia de treino depois da paralisação, tive um choque de realidade. Treino individual? Como assim? O jogador gosta da bola nos pés e do ritual antes e depois de cada partida. A “resenha” no vestiário, as brincadeiras, os desafios no videogame, a experiência de dividir quarto… Almoço no refeitório? Nada. Agora pego minha refeição e a levo para casa. Banho no vestiário? Nem pensar. Volto com o uniforme ainda no corpo.
Mas, no último sábado, 16, sentir novamente “frio na barriga” e ter insônia antes do jogo foi como um remédio para a saudade da minha família. Essa sensação agiu como um calmante, já que havia a possibilidade de meu filho nascer justamente na semana de concentração obrigatória com o clube. No final, deu tudo certo. Meu filho está esperando o “papai” para nascer, e mais: voltei com o gol e a vitória por 3 a 0 do Hertha contra o Hoffenheim. Como todos os olhos do mundo estavam acompanhando o Campeonato Alemão, a primeira grande liga reiniciada na Europa, tem gente falando que esse foi um dos gols mais bonitos do ano. Mas quero mesmo é que venham vários outros. Estou feliz pela volta do futebol, ainda que de uma nova maneira. Não devemos, agora, contestar os protocolos, mas celebrar e agradecer por estarmos voltando a fazer o que amamos, dando alegria aos torcedores pela televisão.
Depoimento dado a Miler Alves
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688