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Laguna: conheça o clube vegano que sonha com a elite nacional em dez anos

Criada em 2022, SAF potiguar tenta provar que é possível ganhar território mesmo sem consumir produtos de origem animal — e jogando bonito

Por Maria Fernanda Lemos Atualizado em - Publicado em

Série A: o alvo

Um dos donos do Clube Laguna, Gustavo Nabinger recorda aos risos de um relato que conta ter escutado dos próprios jogadores com quem trabalhou ao fim do último ano: "a melhor história é de um zagueiro nosso, que comprava Nutella e levava escondida para o café da manhã. Ele posicionava o pote no meio das pernas e passava no pão para comer".

O caso aparentemente simples, do defensor fissurado pelo doce, virou uma espécie de folclore na curta história da SAF (Sociedade Anônima do Futebol) fundada por Nabinger e outros dois sócios - Rafael Eschiavi e Deia Nabinger -, há pouco mais de um ano.

A agremiação de Tibau do Sul, pequeno município de cerca de 15 000 habitantes do Rio Grande do Norte, é a primeira a adotar ao veganismo nas Américas. E Nutella, ao menos por lá, passa bem longe.

A pasta de avelã criada há décadas possui entre os sete ingredientes de sua receita atual o leite, um dos itens abolidos na filosofia vegana, que evita qualquer alimento ou matéria-prima de origem animal. Foi a única "fuga" registrada até aqui, conduzida com jogo de cintura pelos dirigentes do clube.

"No final do ano levamos alguns atletas para participar da Vegfest, uma feira vegana muito conhecida. Ele foi um dos escolhidos e falamos: 'agora você vai experimentar essa versão vegana'. Só soubemos no fim do ano desse caso. Entregaram ele, né? Mas levamos tudo numa boa", disse Nabinger, também treinador da equipe.

Gustavo Nabinger: ex-volante que virou treinador e cartola
Gustavo Nabinger: ex-volante que virou treinador e cartola

"Esse é um valor nosso, os atletas que chegam precisam saber e respeitar [o veganismo]. Do portão para fora, claro, não controlamos ninguém", completa.

O projeto do Laguna leva à risca o ideal de que é possível fazer futebol profissional - e em alto nível - sem o consumo de produtos animal, com sustentabilidade e jogando bonito. Há outra meta ainda mais audaciosa: chegar na elite do futebol nacional em apenas dez anos.

"O nosso objetivo é chegar na Série A do Campeonato Brasileiro em até dez anos, até 2032. Há o exemplo do Cuiabá, que subiu rapidamente de divisões", explica.

Não há nas seis refeições diárias oferecidas pelo clube (entenda melhor no capítulo Cardápio diário) absolutamente nada proveniente de animais. Itens como carnes, ovos ou derivados de leite são abolidos no dia a dia. A suplementação também vem toda de origem vegetal.

Os uniformes utilizados pelos atletas, confeccionados pela fornecedora Escudetto, são 100% poliéster e feitos de materiais inorgânicos - produzidos a partir de plástico e outros elementos sustentáveis. As aplicações, exceto o escudo do time, também possuem materiais sustentáveis.

Atletas almoçando no refeitório; dieta é fiel ao veganismo
Atletas almoçando no refeitório; dieta é fiel ao veganismo

"O veganismo é algo anterior ao clube. Sou vegano desde 2020, antes disso já era vegetariano desde 2003. A Deia, outra sócia, é vegana há seis anos e vegetariana há três. E o Rafael, também sócio, se tornou vegetariano no processo de construção da empresa. Então, não tinha como fazermos algo que não tivesse essa filosofia. Imagine servirmos 40 refeições diárias com carne e queijo? Não faz sentido para nós", explica o técnico e dirigente.

Na primeira competição profissional disputada, a segunda divisão potiguar, no segundo semestre de 2022, o acesso bateu na trave. O time terminou na segunda colocação, com 26 pontos, empatado com o Alecrim, mas com saldo de gols inferior. Só o primeiro colocado conseguia o acesso.

"Fomos vice com menos de um mês de treino e perdendo por saldo de gols. É um compromisso que eu tenho, de que a gente vai chegar na Série A com uma equipe que as pessoas gostem de ver, que parem para assistir", assegura Nabinger.

Esse ano o time tentará outra vez. Pelo projeto, é preciso pressa para chegar ao topo.

Jogo bonito

O principal rosto do Laguna em nada se ilude sobre os tempos como jogador. Ex-volante que se aposentou precocemente dos gramados, ainda aos 26 anos, Nabinger diz que parou após três anos como profissional por um motivo bem simples: a pouca qualidade técnica.

O período dentro de campo, ele diz, foi utilizado como uma espécie de estágio privilegiado: "eu fui jogador, mas daqueles de mentira, né? Eu não era bom, era um perna de pau", conta com sinceridade.

"Mas eu sabia que queria estar no futebol. Pensava: 'se não der para ser jogador, serei treinador mais cedo. Se for jogador, vou ser treinador quando encerrar a carreira'. Então, eu encarei muito como uma faculdade, joguei profissionalmente três anos fazendo perguntas o tempo todo para cada treinador que tive, para os preparadores físicos, encostando em jogadores experientes que haviam jogado em times maiores, observando os treinos, anotando…", completa.

Formado em publicidade e propaganda, também cursou educação física e tem as licenças A e B da CBF. Foram os contatos e percepções nos tempos de jogador que lhe abriram portas para entender exatamente o que queria: o futebol precisa ser um espetáculo.

Jogadores do Laguna durante o treino
Jogadores do Laguna durante o treino

O slogan do clube é exatamente esse: "alegria de jogar", inspirado em equipes marcantes como a seleção brasileira de 1982, o Palmeiras dos anos 1990 e mais recentemente no Santos, de Neymar e Paulo Henrique Ganso, e no Barcelona, de Pep Guardiola.

"Esses times não deram certo? Eu sou muito competitivo, mas nem sempre dá e o 'resultadismo' atrapalha muito. Por isso os treinadores escolhem caminhos mais rápidos. É mais fácil ensinar a equipe a defender e contra-atacar do que coordenar o time para sair jogando de trás, ter um jogo posicional. Isso requer templo, erros no caminho. E automaticamente atletas mais talentosos perdem espaço. É uma reação em cadeia que não quero", argumenta.

Atual elenco do Laguna posado após um treinamento
Atual elenco do Laguna posado após um treinamento

Ele conta ter ficado impressionado ao assistir a uma partida da primeira divisão do Campeonato Paulista que terminou sem nenhuma finalização certa em gol: "na minha concepção o futebol ficou chato. Imagine ir assistir a um jogo às 21h30, durante a semana, e voltar para cada sem ter visto um chute certo a gol. Cadê a emoção do jogo?".

Nabinger diz ainda ser frequente de muitos atletas com quem já trabalhou relatos sinceros de que já não possuem mais prazer em jogar futebol. Sem estar ameaçado no cargo, ele espera recuperar isso. No currículo, se orgulha de ter ajudado na formação de nomes como o dos volantes Gabriel Menino, do Palmeiras, Vinicius Zanocello, do Fortaleza, e Xavier, ex-Corinthians e, atualmente, no Avaí.

Antes de assumir o projeto do Laguna, ele trabalhou nas categorias de base do Guarani, Figueirense, Ponte Preta e Vila Nova-GO. Estagiou em clubes da Europa como Celta de Vigo e Deportivo La Coruña.

A inspiração alemã

Por mais sugestivo que possa parecer, não é o Forest Green Rovers a principal inspiração para o surgimento do Laguna. É claro que há referência, “é um case de sucesso…”, afirma Gustavo Nabinger. O time inglês da cidade de Nailsworth é o primeiro vegano da história do futebol. A prática começou em 2011, quando o clube foi comprado por um empresário do ramo de energia eólica. Além da abolição de alimentos de origem animal, uma série de transformações sustentáveis ganharam espaço no clube, o que o fez ser reconhecido pela ONU e pela Fifa como o “o mais ambientalmente sustentável do mundo” e o único neutro em emissão de carbono.

“Mas se tem um time que eu me inspiro muito é o St. Pauli, da Alemanha. É um clube muito maior que o futebol e o entretenimento. Ele levanta a bandeira e representa muita coisa. Usa a força do esporte e da visibilidade que tem para reforçar posicionamentos”, revela o ex-jogador e sócio do Laguna.

St. Pauli luta contra o racismo ou qualquer tipo de discriminação
St. Pauli luta contra o racismo ou qualquer tipo de discriminação

O St. Pauli não é um clube vegano. Fundado na cidade de Hamburgo por operários do bairro que dá nome ao clube, a equipe também não é reconhecida pelos títulos expressivos, afinal, passou a maior parte da centenária história em um sobe e desce entre a terceira e a quarta divisão do futebol alemão.

O diferencial é justamente a postura, principalmente da torcida, frente às questões sociais, na luta contra o racismo, o fascismo, a xenofobia e a homofobia. Essa identidade é uma característica tão enraizada entre os adeptos, que não é raro ver bandeiras no estádio e ações do próprio clube contra qualquer tipo de discriminação.

Para ele, os times de futebol mais antigos quando surgiram, ainda no século XIX, eram mais integrados e atuantes na sociedade, mas ao longo dos anos foram perdendo essa característica para a lógica mercantil. O principal objetivo do jovem Laguna, enquanto clube e empresa, é ser um agente transformador e de impacto socioambiental para jogadores e comunidade. “A gente acha que o clube pode ter esse papel de se comunicar com a comunidade, representar a comunidade e de transformar a comunidade e o nordeste é um lugar muito propício para estar”, ressalta.

Cardápio diário

O veganismo é uma filosofia de vida pautada na retirada gradual de todo tipo de alimento de origem animal da alimentação - diferente da dieta vegetariana, em que o adepto restringe o consumo de carne de origem animal.

Para fornecer alimentação vegana aos atletas, o Laguna buscou a parceria da Sociedade Vegetariana Brasileira, que possui um green team (um 'time verde', em tradução livre do inglês), com chefs de cozinha, nutricionistas e psicólogos. O cardápio dos atletas foi criado pelas chefs veganas Mirna Ribeiro e Cá Botelho, de grande renome no Brasil.

O cardápio de um dia do Clube Laguna
Café da manhã, pós-treino e almoço oferecidos pelo Laguna

O cardápio varia durante a semana, mas costuma se basear em arroz, feijão ou lentilha ou grão de bico, massa, verdura, muitos legumes, carboidratos como batata, mandioca, algum tipo de proteína vegetal.

O clube oferece seis refeições diárias (café da manhã, vitamina com suplementação pós treino, almoço, lanche da tarde, janta e ceia) e faz acompanhamento nutricional individual nos atletas.

O cardápio de um dia do Clube Laguna
Café da tarde, jantar e ceia complementam as seis refeições diárias

“Temos o papel de informar, acredito muito na informação, porque o veganismo é importante para o planeta. E a partir disso podem decidir melhor se querem ser onívoros, vegetarianos e veganos. Queremos levar informação e sabor para que as pessoas possam perceber que podem ter até uma alimentação melhor. Além disso, oferecemos uma qualidade superior de refeição a maioria dos clubes, até alguns de Série A, em termos de qualidade e valor nutricional”, explica o treinador.

Difícil? Só de longe

Mais comum do que se pensa, a dieta vegana é seguida por vários atletas de alto nível do esporte mundial, como Serena Williams, Novak Djokovic, Lewis Hamilton, Marta, Alex Morgan, entre outros.

“Pensam que a gente come só berinjela, folha, tomate? Não é assim. Me sinto ótimo”. O relato anterior é de Igor Potiguar, centroavante e camisa 9 do Laguna. Para o jogador de 25 anos, a adaptação ao cardápio vegano foi positiva e bem menos desafiadora. Quando criança, segundo ele, era comum a ausência de carne vermelha nas refeições em casa, tendo em vista o difícil acesso e o valor do alimento. “Já passei por tanta coisa na minha vida, que não posso reclamar de nada tão saudável. Temos variação todos os dias”, diz ele, com semblante sério.

Um dos pratos montados para os atletas
Um dos pratos montados para os atletas

Em termos de desempenho dentro de campo, Igor revela que em seis meses de clube não sofreu nenhuma lesão. “Espero que continue assim. Sinto que meu pós-jogo, meu pós-treino, é muito mais rápido devido a alimentação”, completou o camisa 9.

O mesmo sentimento é compartilhado pelo lateral Lucas, de 21 anos. A torcida no nariz, no primeiro contato, pareceu inevitável.

Atletas no refeitório para o almoço
Atletas no refeitório para o almoço

“Quando cheguei me assustei, achei que não ia gostar, mas acabei gostando bastante. Temos um preconceito por não experimentar”, brinca Lucas, que antes do convite para atuar no Laguna, estava desempregado. “Era uma oportunidade para mim, eu já tinha trabalhado com o Gustavo no Figueirense, então a questão de alimentação, de ficar longe, é tranquilo, vale a pena pelo nosso sonho”.

O discurso na prática

No início deste ano, os atletas do Laguna participaram de um mutirão de limpeza da praia de Pipa, em Tibau do Sul, cidade que é um dos principais destinos de férias no Brasil e que é sede do clube potiguar. Foram recolhidos mais de 23kg de resíduos e 3.615 itens de sujeira.

Realizada em parceria com a Sea Shepherd Brasil, uma ONG internacional de defesa dos oceanos, a ação representa bastante o objetivo do Laguna: expandir a marca além do futebol e se associar com entidades ligadas a propósitos sustentáveis, ao mesmo tempo em que promove a conscientização ambiental nos jogadores.

Jogadores do Laguna em ação de limpeza na praia de Pipa, no Rio Grande do Norte
Jogadores do Laguna em ação de limpeza na praia de Pipa, no Rio Grande do Norte

O Laguna possui em seu estatuto 5 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS) e é um dos únicos três times brasileiros membros do Pacto Global das Nações Unidas, uma espécie de diretrizes para promoção do crescimento sustentável e da cidadania. Além dele, apenas São Paulo e Coritiba também assumiram o compromisso.

“Temos buscado fazer diversas ações voltadas para a sustentabilidade. Esperamos agora fazer projetos sociais com os atletas para que eles também sejam inseridos na comunidade”, diz orgulhoso o treinador que ainda ressalta que dentro das dependências, os atletas são orientados a descartar corretamente o lixo e à assistir palestras sobre o tema.

Como funciona a SAF

O projeto é ambicioso e regido por propósitos. Primeira Sociedade Anônima de Futebol (SAF) do Rio Grande do Norte, o Laguna se autodefine em seu site oficial como “uma startup de impacto socioambiental através do entretenimento".

Dispostos a criar um clube diferente daquilo encontrado no mercado, os sócios Gustavo Nabinger, Rafael Eschiavi e Deia Nabinger, iniciaram uma empreitada desafiadora, segundo Gustavo, já que os três não tinham experiência alguma como empreendedores. O investimento inicial do Laguna partiu dos próprios sócios, depois, um investimento anjo custeou a primeira fase operacional do projeto.

“Eu tinha experiência com futebol, de campo, treinador. Rafael do comércio, do varejo, e a Deia trabalhou na área de gestão, mas voltada para a sustentabilidade e o marketing. Estamos buscando um investidor mais robusto para termos capital de giro para mais dois ou três anos, embora já tenhamos feito o planejamento, mas facilita para aumentar, ou não, isso”, explica Gustavo.

Laguna foi fundado em 2 de abril de 2022
Laguna foi fundado em 2 de abril de 2022

O processo de planejamento para a criação do Laguna junto a especialistas e consultoria durou cerca de um ano e meio, até a fundação oficial da empresa no dia 2 de abril de 2022. A escolha da sede em Tibau do Sul, no Rio Grande do Norte, levou em consideração fatores como a barreira de entrada no mercado (em vista de outras federações no sul e sudeste do país) e a proximidade com as principais capitais da região.

Cientes do desafio, o projeto de rentabilidade do clube é realista: dez anos, com estimativa de lucro a partir do sexto ano de atividade. “Estruturamos a empresa como uma startup. Hoje fazemos muito. São poucos fazendo muito. A ideia é mostrar no primeiro momento que há viabilidade, temos faturamento, ainda não para pagar todas as despesas. Hoje temos uma marca”, explica Gustavo que ressalta ainda que em seis meses de operação o time já realizou negociações de empréstimo de atletas com clubes do Brasil.

CLUBE LAGUNA SAF

Símbolo do Laguna

Fundação: 2/4/2022

Origem do nome: inspirado no mesmo do projeto socioambiental que teve com o atual sócio Rafael Eschiavi em Paulínia, no interior de São Paulo, com 150 jovens de periferia

Símbolo: iniciais CL (Clube Laguna) com uma estrela, remanescente do símbolo do Laguna original

Sede: Tibau do Sul, Rio Grande do Norte