Dorival chega a mais uma final: o que falta para ser mais reconhecido?
'Nó tático' do treinador do São Paulo no rival Corinthians para assegurar classificação na Copa do Brasil reacende o questionamento; confira a entrevista
Pare e pense: quem são os três melhores treinadores brasileiros da atualidade? Se sua lista não incluiu Dorival Júnior, talvez seja melhor reavaliar. Aos 61 anos, o atual comandante do São Paulo vive uma das fases mais consistentes de uma carreira que já alcança duas décadas e treze títulos – mas, paradoxalmente, ainda esbarra numa falta de reconhecimento que não condiz com sua trajetória no futebol. “Ah, sim, eu gosto do Dorival, mas…”. Mas o quê? Nem ele sabe dizer o que falta para ser colocado de forma unânime na primeira prateleira. E também parece não ligar.
O “nó tático” aplicado no rival Corinthians para reverter a desvantagem da primeira partida e assegurar classificação à final da Copa do Brasil na noite da última quarta-feira, 16, no Morumbi, foi só mais uma prova do real tamanho do treinador. Ele agora pode conquistar um inédito título para o Tricolor.
“É uma satisfação você ter o reconhecimento pelo que faz, mas não é o fator principal. Se você entrar em uma profissão só pensando nisso, estará fadado ao insucesso. É até interessante que em todos os clubes em que estive muitas coisas boas aconteceram, mas nunca com essa abordagem que hoje eu percebo. O que vejo é que temos uma sequência de trabalho que faz com que as pessoas acreditem no que estamos desenvolvendo. A prova é que eu consigo retornar duas vezes a um clube como o São Paulo, duas vezes ao Vasco, três vezes ao Flamengo. Isso não é por acaso. É fruto de muita dedicação, do trabalho de toda uma equipe”, diz.
Conversando com pessoas que conviveram de perto com Dorival, entre os primeiros termos usados para descrevê-lo está sempre uma variação de “gente fina”, “educadíssimo” ou até “gentleman”. De fato, não é propaganda enganosa. O treinador atendeu à reportagem de PLACAR com sorriso no rosto e disposição para conversar, mesmo com o tempo escasso – o São Paulo precisaria viajar dali a poucas horas, para um jogo do Campeonato Brasileiro. Fala sempre de forma ponderada, sem alterar a voz. Não foge de temas espinhosos, mas prefere direcionar suas respostas para encerrar polêmicas em vez de alimentá-las.
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Ainda assim, por vezes deixa transparecer algo engasgado. Depois de eliminar o Palmeiras do português Abel Ferreira nas quartas de final da Copa do Brasil, com duas vitórias em que seu São Paulo foi incontestavelmente superior, Dorival ironizou dizendo que “continua dando sorte” na carreira. Em seguida, listou orgulhosamente os troféus que já conquistou. “Nós convivemos com situações que não existem em grandes clubes da Europa. Lutamos muito para ter uma licença reconhecida, e até hoje não temos. Lutamos muito para que pudéssemos ter o nosso espaço respeitado, e até hoje isso não acontece. Não temos nem a nossa profissão reconhecida dentro do nosso país. Até pouco tempo atrás, não tínhamos um curso de formação, mas nos cobravam uma reciclagem, uma melhoria. Mas se você não tem como se formar como vai buscar? E com tudo isso, o treinador brasileiro sempre foi se virando”.
Mas será que, na engrenagem do futebol brasileiro movida a personagens falastrões, folclóricos e de estilo marcante, o jeitão mais modesto de Dorival não tenha segurado um pouco sua ascensão? Em outras palavras, faltou “se vender” melhor? Ele pensa por um instante antes de responder. Ao seu estilo, claro. “Olha, não sei. Eu não trabalho só para a conquista. Trabalho para melhorar a capacidade e as qualidades dos seres humanos que estão à minha volta. Isso é obrigação de quem comanda. Eu nunca tive um comando de imposição, sempre tive um comando compartilhado, porque é nisso que eu acredito. Eu vou finalizar minha carreira sem me alterar. Se eu poderia ter sido mais exaltado, para mim não me importa. O que importa é que eu tenha uma maneira de ser que é a mesma que eu que eu tenho dentro da minha casa”.
Se nesse ponto ele parece inflexível, em outros já mudou bastante. Os próprios métodos de treino e processos de gestão estão em constante estudo e evolução – Dorival credita muito dessa melhoria à figura do filho, Lucas Silvestre, que trabalha em sua comissão técnica desde aquele mágico Santos de Neymar e Ganso, em 2010. Outro aspecto que veio com a experiência é a preocupação de cuidar melhor dos rumos da carreira. Por muitos anos, o treinador nunca recusou um trabalho. Pulava de um time para outro, muitas vezes assumindo equipes brigando contra o rebaixamento pouco tempo depois de ter sido campeão com o clube anterior, em um vaivém bastante característico do futebol brasileiro.
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“Eu saí do Figueirense e acertei no dia seguinte com o Fortaleza, saí do Fortaleza e acertei com o Sport, depois no dia seguinte estava fazendo contrato com o São Caetano, do São Caetano para Belo Horizonte, saí do Cruzeiro para o Coritiba, do Coritiba para o Vasco… Como vinha obtendo resultados, achava que aquilo era o correto. Mas se eu pudesse voltar lá atrás, talvez tivesse tomado outra posição. Quando saí do Santos em 2010, fui para o Atlético Mineiro, que estava na zona de rebaixamento havia vinte e poucas rodadas, brigando sem perspectivas. Talvez fizesse de outra forma, mas sempre enfrentei esse tipo de situação porque sempre confiei muito no meu trabalho. Foram desafios que me fizeram crescer profissionalmente. Hoje, para mim, não existe novidade no futebol”.
Nem mesmo ser dispensado depois de conquistar dois dos títulos mais importantes do futebol? Essa foi a situação vivida por Dorival no fim do ano passado pelo Flamengo, que deixou muita gente coçando a cabeça sem entender: campeão da Libertadores e da Copa do Brasil, mas desempregado em janeiro. Até os jogadores ficaram perplexos quando a diretoria rubro-negra preferiu não renovar o contrato do técnico, alegando uma queda de rendimento na reta final da temporada. A aposta foi no português Vitor Pereira, que abandonou o Corinthians e acabou só ficando até abril na Gávea. Pessoas próximas a Dorival avaliam que faltou o treinador se impor mais. Mas ele próprio, como de costume, mantém o discurso construtivo e as portas abertas. “Só tenho a agradecer ao Flamengo. Eu preferi ficar quieto, respeitar a posição tomada, entender e agradecer por todo o carinho que tive lá dentro, por tudo que recebi e recebo do torcedor. E ainda vou voltar. Não sei se daqui a cinco, seis, sete anos… tenho essa convicção, porque ainda não terminei o que eu realizaria lá dentro.”
O Flamengo não é o único clube para o qual Dorival quer retornar. Ele afirma que há pelo menos outros dois em que sente que deixou obras inacabadas: Palmeiras e Cruzeiro, que tiveram trabalhos interrompidos, são candidatos fortes, mas o treinador prefere deixar os nomes para a imaginação do torcedor. Esses projetos, porém, pertencem a um futuro não tão próximo, já que o trabalho no São Paulo vai muito bem, obrigado. Depois de anos flertando com a luta contra o rebaixamento e distante de títulos de peso, o Tricolor vive uma de suas melhores fases da década. Quando chegou, Dorival encontrou o clube com um jogo que fluía pouco em campo e tinha problemas de vestiário deixados pela gestão do antecessor Rogério Ceni. Qual o segredo? Se você está prestando atenção, já sabe como será a resposta: evitar apontar culpados, compartilhar os méritos, valorizar cada etapa do processo.
“Toda mudança vem acompanhada de um combo, não é apenas uma situação isolada. Existe uma mudança comportamental de todas as pessoas envolvidas no processo, e isso passa desde o primeiro momento em que se entra no centro de treinamento, com os funcionários com um sorriso daquele tamanho, independentemente do que esteja acontecendo, trazendo uma energia diferente daquilo que você percebe nas ruas. As pessoas às vezes falam: ‘O culpado por isso não estar acontecendo é a figura A, B ou C’. Não, não é assim. É um processo, e dentro desse processo há muitas situações que podem fugir do alcance de quem comanda. O principal é que você isole um pouco esse lado negativo, que você chegue propondo soluções e não debatendo o passado”.
É falando de futebol que Dorival se sente mais à vontade. O dia a dia de um clube, o trabalho de campo, a metodologia, as ideias de jogo, o desenvolvimento dos jovens… Por isso, rapidamente o assunto foge de novo dos feitos do treinador para um debate mais amplo sobre como melhorar o futebol brasileiro. De fato, Dorival é diferente nesse aspecto. Em um ambiente marcado pela ultracompetitividade, pelo “meu time acima de tudo” e pelo “resultadismo”, ele fala da necessidade de todos os atores do esporte – clubes, técnicos, jogadores, arbitragem, federações, imprensa – se unirem, pensarem no bem coletivo, dialogarem.
“Não temos união entre as áreas, não há lealdade. Então, de que maneira vamos contribuir? Não tem como. Como eu vou cobrar de um jogador que ele não simule uma falta? Eu posso cobrar, mas, infelizmente, ali do lado não vai acontecer. Não é uma atuação única, então o que nós vemos em todos os jogos? Uma simulação clara, a todo momento acontecendo, induzindo a arbitragem. Vemos as nossas atitudes fora de campo, treinadores questionando a todo momento a arbitragem de uma maneira errada. O árbitro não tendo paciência com os jogadores, com as comissões técnicas. Uma animosidade gratuita, uma cobrança da diretoria para com os atletas e assim por diante. A imprensa está participando de todo esse sistema, fomentando muita coisa. Por isso que eu falo: são muitos pontos que nós deveríamos estar combatendo no futebol brasileiro. Nós temos muitas coisas para melhorar. Mas temos muito pouca vontade de botar o dedo na ferida.”
Há muitos anos Dorival trava essa batalha fora das quatro linhas. Ele foi, em 2013, um dos fundadores da Federação Brasileira dos Treinadores de Futebol, criada com o intuito de regularizar e organizar a categoria no país. Não espanta, portanto, que seja defensor ferrenho de um brasileiro no comando da seleção. Fernando Diniz, que assumiu recentemente como interino do time canarinho até o meio de 2024, merece muitos elogios – mesmo tendo um currículo bem mais modesto que o do próprio Dorival. Já o nome do italiano Carlo Ancelotti, comandante do Real Madrid que é o grande sonho da CBF para se tornar o técnico no ano que vem, é visto com menos empolgação.
“O Fernando é um profissional muito preparado, um cara estudioso, que tem uma visão própria de futebol, e isso tem que ser respeitado. Não tenho dúvidas de que terá uma carreira muito sólida e brilhante pela frente, pela capacidade que possui e pelo ser humano que é. Com relação ao Ancelotti, eu sempre defendi um profissional brasileiro. Sempre. Agora, foi uma pessoa que me recebeu maravilhosamente bem quando lá estive, não tem o que falar. Eu entendo que o melhor treinador que tenho acompanhado nos últimos anos é o Guardiola. Acho que, se queremos um estrangeiro, talvez esse fosse o nome, mas, sem dúvida, o maior trabalho do Fernando, do Ancelotti ou de outro profissional que estiver no cargo seja de resgatar o torcedor brasileiro, para que se reaproxime da nossa seleção. Isso é uma obrigação de todos nós: lutar para que isso aconteça e que sejamos novamente o país número 1 no mundo”.
E como Dorival não pensa em parar tão cedo, o sonho de um dia também dirigir a seleção, claro, está vivo. “Expectativa, todo profissional tem. Sempre tratei isso com muito equilíbrio. Nunca me empolguei nem achei que estivesse totalmente descartado. Se um dia vier a acontecer, será no momento certo”. Projetos e ideias, como se vê, não faltam para Dorival Júnior. E ele mesmo já deu a fórmula para que eles se concretizem: falar pouco e fazer muito. O treinador discreto e “gente boa” mostrou inúmeras vezes que também é um dos mais competentes do país. Mudar pra quê?
A matéria foi publicada na edição de agosto de PLACAR, já disponível nas bancas de todo país.