Ídolo Jefferson recusou propostas após rebaixamento do Botafogo
Em 2015, goleiro do Botafogo estampou capa de PLACAR e falou de sua liderança num momento complicado do Glorioso
O ex-goleiro Jefferson se consolidou como um grande ídolo na história do Botafogo pelo que fez tanto nas vitórias quanto nas derrotas. Em março de 2015, ele estampou a capa de PLACAR como a “Estrela Solidária” que iria redimir o clube de um amargo rebaixamento para a Série B no ano anterior. Então presença constante na seleção brasileira e com títulos importantes no currículo, ele negou propostas de peso e preferiu seguir no Glorioso durante a segunda divisão. Retornou à elite e se aposentou como lenda alvinegra em 2018.
Há nove anos, Jefferson deixava claro que não abandonaria o barco. “Sabe quantos jogadores queriam estar aqui, neste time, no nosso lugar?”, era o que dizia aos colegas de vestiário para encorajá-los. Ele terminaria a temporada 2015 como campeão da Série B, e ainda mais respeitado pelos botafoguenses. O texto de Flávia Ribeiro destacava a liderança de Jeffferson não apenas dentro de campo:
Líder que é líder pensa nos outros, afinal. E não só nos companheiros de time, mas também nos funcionários do clube, muitos deles tendo ficado até dez meses sem receber salário. “Teve gente aqui que teve que entregar a casa porque não podia mais pagar as contas, gente despejada. Teve família separada, porque funcionários foram morar na concentração em General Severiano e suas mulheres e filhos foram para a casa dos pais. Eu não posso pensar só nas minhas dívidas, né? E não sou eu que vou levar o Botafogo para a primeira divisão novamente sozinho. Nós compramos esse barulho juntos, vai ser a equipe que vai fazer isso.”
Na época, Jefferson admitia ter um perfil bem diferente ao do astro holandês Clarence Seedorf, que esteve em General Severiano entre 2012 e 2013. “Minha liderança não é vaidosa. Não quero foco, não quero glória. A liderança do Seedorf é boa, mas forte, de cobrança. Sou mais de conversar até o cara se abrir do que de dar dura.”
Cria do Cruzeiro, ele se aposentou com diversos títulos na carreira, especialmente no Fogão: três Campeonatos Cariocas (2010, 2013 e 2018) e a Série B de 2015. O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nossos arquivos, reproduz na íntegra o texto abaixo:
Estrela solidária
Único líder de um elenco abatido pelo rebaixamento e pela perda de antigas referências, Jefferson é o homem que pode tirar o Botafogo da lama. “Minha missão é mostrar que a gente pode”
Flávia Ribeiro
No dia em que Jefferson se reapresentou ao Botafogo, após as férias de fim de ano, os olhos da maior parte dos jogadores brilharam. O olhar reverente não passou despercebido pelo técnico René Simões, que chamou o goleiro para uma conversa. Nela, ele contou que o técnico de basquete americano Phil Jackson, que treinou o Chicago Bulls, puxou Michael Jordan para um papo. “O Phil pergunta a Jordan se ele sabe o porquê de o Magic Johnson ainda ser maior que ele. `Porque o Magic é campeão, e você não”, diz ele. E ele então explica que o Jordan só não é campeão ainda porque o resto do time o olhava de baixo para cima. `Você tem que puxá-los para cima. Para perto de você”, ele disse. E deu no que deu, em seis títulos. E então eu disse ao Jefferson que esse é o papel mais importante dele este ano: puxar os jogadores do Botafogo para mais perto dele, para que eles cresçam. E ele tem feito exatamente isso”, diz René.
Aos 32 anos, Jefferson não teve problemas em assumir a responsabilidade de liderar o grupo. Era algo que ele na verdade já fazia, mas com a companhia de outros jogadores, como Bolívar e, antes, Seedorf. Agora se vê sozinho na função, a estrela solitária do alvinegro. “Meu maior papel aqui é mostrar para os jogadores, muitos na primeira passagem por um grande clube, que a gente pode. Que a gente consegue”, diz. “Jogador precisa de valorização, carinho e se sentir em casa. O ano passado foi difícil, mas eu me sinto em casa no Botafogo. Decidi acreditar.”
Falar para os jogadores que eles podem é fácil. Fazê-los acreditar é que são elas. Para isso, Jefferson usa sua própria vida como exemplo. Quando foi convocado pela primeira vez para a seleção brasileira, em 2010, pelo técnico Mano Menezes, o goleiro enfrentou muita desconfiança. “Um repórter chegou a me perguntar: `Eu te respeito muito como goleiro, mas você não acha que teria que ter mostrado mais antes de chegar à seleção?”. Eu respondi: `Olha, eu te respeito também, mas não tenho que te provar nada”. Mas ali também percebi que eu estava longe de ser unanimidade. Que havia rejeição ao meu nome. Então, contei isso a eles, porque sei o que passa pela cabeça de vários deles, que seus nomes não seriam a primeira escolha de muita gente. E no entanto hoje, cinco anos depois, eu ainda estou lá, recebendo muito mais confiança que antes. Porque não caí lá de paraquedas, eu fui convocado por todo um trabalho. E eles não caíram no Botafogo de paraquedas também”.
Não satisfeito, ele lembra a todos que, mesmo tendo que enfrentar a segunda divisão do Brasileiro, o Botafogo é grande. “Sabe quantos jogadores queriam estar aqui, neste time, no nosso lugar?”, pergunta ao resto do elenco. Jefferson quis tanto ficar que preferiu recusar uma proposta do Santos e interromper sondagens de outros grandes clubes brasileiros, todos da primeira divisão, assinando até o fim de 2017. Não foi por falta de interesse de outros, portanto, que resolveu jogar a Segundona pelo time que defende há seis anos, mas com o qual tem uma história desde 2003.
O começo, na Série B
Quando Jefferson chegou ao Botafogo pela primeira vez, naquele ano, o clube estava justamente na série B. Vinha do Cruzeiro, onde foi criado, para ser reserva de Max. Naquela época, conversou com Wágner, que defendeu a meta alvinegra de 1993 a 2002 e estava no América. “Ele me disse que eu tinha a cara do clube, que tinha tradição em goleiros negros.” Wágner, Max e Jefferson, afinal, são homens que ajudaram a derrubar o preconceito contra goleiros, construído desde 1950, quando a culpa pela derrota do Brasil no final da Copa do Mundo, no Maracanã, recaiu nos ombros – e mãos – de Barbosa. Entre eles, havia Manga, o goleiro com mais jogos pelo Botafogo (veja quadro na próxima página).
Mas só isso não explica a afinidade do goleiro com o Botafogo. Nem ele sabe explicar. Sabe apenas que, quando saiu do clube após a primeira passagem para jogar na Turquia, em 2005, ficou com uma sensação de algo inacabado. “Quando quis voltar, em 2009, o primeiro clube que procurei foi o Botafogo. Acertei tudo e vim. Quando cheguei, veio a informação: `Não vamos fechar o negócio”. A essa altura, não tinha mais clube para mim”, conta. Jefferson ficou dois meses treinando sozinho em sua cidade, São José do Rio Preto (SP), correndo por conta própria e tentando conter a angústia de não saber o que aconteceria com sua carreira dali para a frente.
Faltando dez dias para fechar a janela de transferência, com o Botafogo na zona do rebaixamento, recebeu a ligação de um dirigente do clube: “Ainda quer vir?” Foi. Mas em condições totalmente diferentes das que haviam sido acordadas quando ele ainda estava na Turquia. “Fui ganhando praticamente salário de júnior e para ser reserva, com contrato de apenas quatro meses”, recorda. Só que, depois de três semanas, ele ganhou a vaga e teve papel importante na caminhada do Botafogo para permanecer na série A, incluindo uma grande defesa no jogo que garantiu que o time não cairia, contra o Palmeiras, na última rodada. Após cinco partidas, foi chamado para renovar, já com um contrato melhor.
A partir dali, Jefferson foi crescendo na equipe. Tornou-se referência para o torcedor, ganhou o respeito e, por fim, o amor. “Foi uma relação construída, cada um conquistando a confiança e o amor do outro. Isso é o que vai restar quando eu parar. Chegar ao clube, ouvir os agradecimentos, ver minha foto pendurada. É isso que estou plantando”, comenta ele, referindo-se ao espaço, na sala da assessoria de imprensa, em que fotos de grandes ídolos alvinegros – como Garrincha, Túlio, Carlos Alberto Torres e o goleiro Manga – decoram as paredes. Jefferson afirma que quer encerrar a carreira no Botafogo, e não parece estar jogando para a torcida ao dizer isso. Lembra que já jogou fora do Brasil e que está bem no Rio. Tudo isso apesar de o clube estar afogado em dívidas de mais de 700 milhões de reais, inclusive com o próprio jogador: dez meses de direitos de imagem em atraso, num total de mais de 2 milhões de reais.
“Acredito no presidente que assumiu [Carlos Eduardo Pereira], que ele só manteve e trouxe quem ele pode pagar. A outra chapa já tinha dito que não poderia me manter. O Carlos Eduardo afirmou que eu era prioridade.” Tanta prioridade que o marketing do clube lançou a campanha #NossoJefferson, por meio da qual conclama os torcedores a colaborarem financeiramente para o pagamento da dívida com o ídolo. O goleiro, no entanto, afirma que aceitou ser a cara da campanha, mas que avisou à diretoria que o dinheiro arrecadado não deve ser usado só com ele, e sim com outros jogadores e funcionários. “Eu não posso ser o único beneficiado de uma campanha”, diz.
Líder que é líder pensa nos outros, afinal. E não só nos companheiros de time, mas também nos funcionários do clube, muitos deles tendo ficado até dez meses sem receber salário. “Teve gente aqui que teve que entregar a casa porque não podia mais pagar as contas, gente despejada. Teve família separada, porque funcionários foram morar na concentração em General Severiano e suas mulheres e filhos foram para a casa dos pais. Eu não posso pensar só nas minhas dívidas, né? E não sou eu que vou levar o Botafogo para a primeira divisão novamente sozinho. Nós compramos esse barulho juntos, vai ser a equipe que vai fazer isso.”
O projeto, então, precisou ser reformulado. Jefferson não quer passar pelo que viveu no ano passado, quando o diálogo entre atletas e diretoria era inexistente. No auge da crise alvinegra, ainda sob a gestão de Maurício Assumpção, o goleiro chegou a duvidar de sua capacidade de superar os problemas para ficar no Botafogo. No segundo semestre do ano passado, então, o clima era insustentável. Antes, o goleiro fazia questão de estar cedo no clube para poder ficar de papo com os amigos.
Naquele momento, quando chegava com antecedência, preferia ficar sozinho, no carro, até a hora de se apresentar para o treino. Na época, Jefferson, Emerson Sheik, Bolívar, Edílson e Júlio César participaram de reuniões com o ex-presidente Carlos Augusto Montenegro para discutir uma proposta que possibilitasse a quitação das dívidas do elenco.
Maurício Assumpção, ao saber disso, demitiu os outros quatro. Manteve Jefferson provavelmente por saber que o desgaste com a demissão do ídolo seria enorme. “No ano passado, ninguém se entendia. Tinha gente que chegava no treino já perguntando: `O que será que vai ter hoje?”. Porque todo dia tinha briga. Não entre nós, jogadores. Éramos muito unidos. Mas nos sentíamos o tempo todo ameaçados de ir embora. Não havia diálogo, não havia reconhecimento, não havia gratidão. É normal em um clube, quando há atrasos, os jogadores conversarem com o presidente, perguntarem como está a situação, quais as perspectivas. Ali, não. Então, os quatro foram demitidos, e eu fiquei. Acho que o que me segurou foi eu estar na seleção.”
Outro exemplo da falta de diálogo, conta Jefferson, foi a demissão do treinador de goleiros Flávio Tênius (atualmente no Vasco), um mês antes do início da Copa do Mundo. “Respeito muito quem entrou, que não tem nada com isso. Não entendo é terem demitido o Flávio sem aviso nem explicação. Se eu estava convocado para a Copa, o trabalho dele devia ser bom, né? E era.”
Hoje, com Dunga como treinador, Jefferson tornou-se titular da seleção. Na época da Copa, era reserva de Julio Cesar e assistiu do banco ao fatídico 7 x 1 para a Alemanha. Muita gente, principalmente botafoguenses, diz a ele: “Ainda bem que você não estava em campo!” A todos, ele responde: “Pois a ferida é a mesma. Senti o que todos sentiram”. Ninguém sabe explicar o que aconteceu naquele jogo, muito menos Jefferson. Ele só sabe que os jogadores queriam reagir e simplesmente não conseguiam, enquanto tomavam um gol atrás do outro. Na sua primeira convocação após assumir a equipe, Dunga fez questão de deixar claro que aquele capítulo ficou para trás. A partir dali, uma nova história se escrevia. No primeiro dia, remanescentes daquele jogo sentiram que havia uma barreira entre eles. “Estávamos eu, Neymar, Luiz Gustavo. Sentia um gelo ali”, lembra. Eles então conversaram e a névoa gelada se dissipou. “É um grupo jovem, mas forte. E o ambiente está leve”, garante.
Ambiente leve na seleção e no Botafogo, portanto. Que, em meio a tantas más notícias, pôde voltar a jogar na sua casa, o Engenhão, reaberto após quase dois anos fechado para obras. Mais um motivo para a liderança de Jefferson aflorar, dessa vez em constantes conclamações à torcida. “O campo, em si, tanto faz. Quem o transforma em nossa casa é a torcida. O Engenhão só vai fazer diferença a nosso favor se o torcedor aparecer”, diz, deixando claro que nem se sente um líder. Até um ano atrás, quando se falava em líder no Botafogo, a imagem que vinha à mente nem era a dele, e sim a do holandês Seedorf.
Jefferson se sente bem diferente do antigo companheiro de equipe. “Minha liderança não é vaidosa. Não quero foco, não quero glória. A liderança do Seedorf é boa, mas forte, de cobrança. Sou mais de conversar até o cara se abrir do que de dar dura. Em campo cobro mais, mas mais do pessoal da defesa. `Fulano, bate forte na bola. Beltrano, chega mais por esse lado”. Mas cada um sabe o que fazer e não me meto no trabalho do treinador. Não digo como bater pênalti, não mando meia cair por esse ou aquele lado. Sei meu papel.”
MALUCO, EU?
Jefferson muitas vezes nem sabe bem o que está acontecendo no ataque, a ponto de nem sequer ver alguns gols. O que ajuda a explicar uma cena que se repete nas partidas: a bola no ataque de seu time e ele se mexendo sozinho de um lado para o outro, como se ela estivesse na defesa. “Já me perguntaram se eu sou louco”, conta, rindo. “É que eu aproveito enquanto a bola está na frente para simular situações de jogo. Se, numa jogada anterior, o atacante chutou para fora, eu fico simulando como se tivesse chutado certo.” Para coroar a fama, Jefferson ainda apareceu em 2015 com um corte de cabelo que desenhava uma estrela solitária na cabeça.
PRIMEIRO, A META. DEPOIS, SÓ A FAMÍLIA
Com 379 jogos com a camisa alvinegra, Jefferson tem uma meta pessoal: chegar a 500. Imagina que vai jogar ainda por uns cinco anos, o que daria tempo de sobra para inclusive ultrapassar a meta. Ele é o segundo goleiro com mais jogos pelo Botafogo, atrás de outro ícone, Haílton Correa de Arruda, o Manga. Durante nove anos, de 1959 a 1968, Manguinha foi supremo sob as traves alvinegras. Com 442 jogos, ainda é o arqueiro que mais atuou pelo alvinegro ” na lista geral, é ultrapassado por Nilton Santos, Garrincha, Quarentinha e Waltencir. Basta uma temporada completa para Jefferson superá-lo.Depois, vai se dedicar integralmente às mulheres de sua vida: sua esposa, Michelle, e as filhas, Nicole, de 6 anos, Débora, de 4, e Jéssica, de 1. À noite, quando chega dos treinos, brinca de boneca e serve de touro para as meninas montarem. Depois que elas dormem, vê filmes na TV com Michelle. Sai pouco. “Com criança é difícil”, diz ele, que é evangélico e leva a religião, a família e o Botafogo a sério.
“JEFFERSON MUDOU MINHA VIDA”
Estou preso há 11 anos. Cumpro uma pena de 81 anos por assaltos a bancos e carros-fortes. Estou no RDD, o Regime Disciplinar Diferenciado. Não tenho TV nem rádio. Só podem entrar livros e revistas. É na PLACAR que acompanho o Cruzeiro, meu time de coração. Antes, estava na [penitenciária] Nelson Hungria, em Contagem (MG), a mesma do ex-goleiro Bruno. Gosto de goleiros: eu já havia mandado uma carta para Jefferson, do Botafogo. Tentei fugir uma vez: com um revólver 38, rendi um agente e uma professora. Tentei pular o muro, mas não consegui. Virou a maior rebelião daquele presídio. No mesmo dia em que era transferido para a segurança máxima, recebi a resposta de Jefferson. Ele me mandou uma Bíblia e uma camisa autografada. Disse para ler João, capítulo 8, versículo 32: “Conhecereis a verdade, e a verdade o libertará”. Aquela foi uma resposta Padrão Fifa. Jefferson acreditou em mim. Em pleno Campeonato Brasileiro, ele tirou um tempo para me responder. Suas palavras mudaram minha vida: larguei o crime. Não fosse Jefferson, poderia ter morrido em uma nova fuga.” Carta enviada à PLACAR por Daniel Augusto Cypriano, detento da Penitenciária de Segurança Máxima de Francisco Sá (MG).