Há 20 anos, Felipe ‘Maestro’ tentou ganhar o coração dos rubro-negros
Cria do Vasco, meio-campista precisou driblar desaprovação até mesmo na família para jogar pelo arquirrival entre 2003 e 2004
Felipe “Maestro” é, sem sobra de dúvidas, um dos mais talentosos nomes já formados pelo Vasco. Apresentado ao futebol na segunda metade da década de 1990, após longos anos de destaque nas categorias de base do clube, não demorou para ganhar os corações cruz-maltinos graças a talentosa perna esquerda e os arrojados dribles. Multicampeão pelo clube, quem diria, ele surgiria anos depois com a camisa do arquirrival Flamengo.
Em entrevista ao repórter Léo Romano para a edição de abril de 2004, Felipe contou sobre o árduo processo de convencimento até mesmo na família para trocar de cores. O pai vascaíno reclamava da mudança.
A mudança do jogador também era comportamental. Aos 26 anos, ele contava estar mais maduro comparado aos anos de juventude. “Ganhei muita experiência na passagem pelo Galatasaray e agora estou jogando no Flamengo. Tenho consciência de que sou exemplo para vários jovens que estão se formando. Preciso passar uma boa referência”, disse na ocasião.
Em campo, mais uma mudança: ele deixou a lateral ou funções mais marcadoras no meio-campo para envergar a dez que já foi de Zico, completamente livre para criar dentro de campo. O reposicionamento feito pelo técnico Abel Braga o levou à seleção.
“Ele chegou, me chamou e disse que eu ia jogar livre. Fiquei empolgado; pela primeira vez um treinador pensou em me usar nesta função. Criar e marcar é mais difícil do que só criar”, contou.
A passagem pela Gávea foi entre 2003 e 2004. Em 2005, ele rumou para outro rival: o Fluminense, onde permaneceu até a chegada de proposta do Al-Sadd, do Catar. Depois ainda voltaria para o Vasco e terminaria a carreira no Fluminense.
Confira, abaixo, a matéria na íntegra:
Ovelha rubro-negra
Nascido em berço vascaíno, Felipe obriga a família a deixar de lado o ódio pelo Flamengo – time que, aliás, não consegue vencer sem ele
Por Léo Romano
Depois de comandar a vitória que valeu vaga na decisão da Taça Guanabara ” 2 x 0 sobre o Vasco, clube onde se criou e permaneceu dos seis aos 22 anos “, Felipe saiu de fininho do Maracanã. Encontrou a noiva Carla e seguiram para a festa do sexto aniversário de Gabriel, irmão do jogador por parte de pai. Chegando lá, encontrou caras feias para ele. Não que Felipe esteja rompido com a família, longe disso, ele garante. Mas, num clã composto em sua maioria por vascaínos, ser o grande ídolo do maior rival não é algo que seja muito bem visto. “Cheguei lá fazendo sinal de 2 x 0 para o meu pai, zoando mesmo. O meu sobrinho Bismarck (de oito anos, filho do irmão Rafael) passou a festa sem falar comigo”, diz o astro, com um sorriso no cantinho do rosto. Tem mais: o aniversariante Gabriel, também vascaíno, recusou-se a assistir aos jogos do Flamengo com o irmão em campo.
Mas quem sofre mesmo é o pai, Jorge. Vascaíno convicto, até hoje ele resmunga pelos cantos. “O pior é que, se o Vasco perde, pegam no meu pé porque eu sou vascaíno. Se o Flamengo perde, zoam por causa do Felipe. Pode anotar aí. Eu nunca fui de torcer contra nenhum clube, mas quando o Felipe sair do Flamengo, vou torcer muito contra eles.” Felipe dá de ombros. “Ele está sofrendo? Fácil resolver. É só virar Flamengo.”
Bom humor, tiradas a toda hora, tranqüilidade e bom futebol. Isso sintetiza o momento vivido por Felipe. A fama de encrenqueiro, de que só andava mal acompanhado e o futebol de altos e baixos parecem ter ficado em um passado remoto. Hoje, aos 26 anos, ele aparenta estar mais tranqüilo e se diz avesso a badalações.
Um exemplo foi o Carnaval. Depois de ter sido decisivo na final do primeiro turno do Campeonato Carioca, quando o Flamengo venceu o Fluminense por 3 x 2 em um jogo eletrizante, seria natural uma comemoração “daquelas”, certo? O tricolor Edmundo, que perdeu o jogo, sambou na avenida como se comemorasse sabe-se lá o quê. Não faltaram convites para Felipe dos principais camarotes da Passarela do Samba. Todos recusados pelo craque. Ele foi à festa oficial de comemoração do título no sábado da decisão, numa churrascaria na Zona Sul carioca, e de lá partiu direto para Araruama, na Região dos Lagos do Estado do Rio, onde passou o
Carnaval com a noiva e os sogros
Mais família, impossível. Mas… e aquele Felipe que era baladeiro nato, sempre visto nas boates e cujas noitadas tornaram-se públicas pelas colunas esportivas cariocas? “Na verdade, falam muito de quem joga futebol, algo que mexe com milhões de pessoas. Mas eu gosto de curtir meus momentos de lazer como qualquer pessoa, nunca fui irresponsável. Gosto mais do dia que da noite, sou da praia, gosto de ficar em vários lugares na Barra, curtir o sol. Vou me casar este ano e, sinceramente, nem nas folgas tenho mais vontade de sair.”
Surpreendente? Felipe não pára por aí. Diz que, como ídolo do Flamengo, a responsabilidade não se limita ao desempenho em campo. “Hoje estou com 26 anos, ganhei muita experiência na passagem pelo Galatasaray (Turquia) e agora estou jogando no Flamengo. Tenho consciência de que sou exemplo para vários jovens que estão se formando. Preciso passar uma boa referência”, diz.
Livre para criar
Hoje é comum ver Felipe, depois dos jogos, comendo uma pizza com a noiva num restaurante discreto da Tijuca, zona norte carioca. Boa referência para a jovem torcida e também para a família. O meia diz que, entre suas maiores preocupações, está o cuidado com os familiares e com o “amigo-quase-irmão-e-assessor” Luisinho, que hoje é supervisor do Bangu. “Tenho que pagar um almoço a ele. Dei o empate no jogo contra o Bangu (pelo segundo turno, terminou 1 x 1)”, diz, mesmo tendo perdido a aposta. “Ele é como um irmão e, como viajo muito, continua cuidando dos meus pais, resolve problemas de banco, pega dinheiro e dá a eles. Só que um dia eu vou parar de jogar e Luisinho precisa seguir a sua carreira. Ele gosta de futebol, mas infelizmente não teve sucesso como jogador. Então, que tente em outra área; estarei sempre pronto para ajudar.”
A ligação com os pais, Felipe diz que também é forte. Jorge e Marinalva separaram-se quando ele tinha ainda seis anos. Apesar de, segundo o meia, os dois ainda serem amigos, ele atua como uma espécie de elo para os pais e toda a família. A ponto de convencer ferrenhos vascaínos como o pai e o irmão Rafael a torcerem pelo Flamengo. “Eles ficaram chocados quando eu disse que poderia ir para a Gávea. Resmungaram um pouco, mas agora torcem por mim. Meu pai sabe que o fracasso do Flamengo é o meu fracasso. O Rafael é mais roxo, mas não torce contra.”
Mas nada parece ter sido tão definitivo para o sucesso de Felipe no Flamengo quanto a chegada de Abel Braga. A palavra é de Júnior, superintendente de futebol do clube. “Abel encontrou uma maneira para o Felipe jogar à vontade. Ele não precisa mais marcar, com isso fica livre para criar.” Abel já havia trabalhado com o jogador em 2000, no Vasco, e o aproveitou como segundo volante. “Mas, depois disso, o enfrentei várias vezes e só eu sei a preocupação que tinha para marcá-lo.” Por isso, a primeira coisa que Abel fez quando assumiu foi chamar o meia para uma conversa. O assunto era o novo posicionamento dele em campo. “Não há sentido em forçá-lo a marcar. Por isso falei que ele ia jogar solto, para criar, servir os atacantes. Mas ele é quem se ajudou e, com o seu talento, vive este momento maravilhoso. Não existe técnico que nos enfrente sem pensar em como pará-lo.”
Felipe garante que o entendimento com o treinador foi imediato. “Ele chegou, me chamou e disse que eu ia jogar livre. Fiquei empolgado; pela primeira vez um treinador pensou em me usar nesta função. Criar e marcar é mais difícil do que só criar.”
Felipe começou como um lateral arisco e eficiente. Jogou pela primeira vez no meio-campo na Seleção Pré-olímpica, em 1999, sob o comando de Vanderlei Luxemburgo. Foi escalado como segundo volante e até podia criar alguma coisa, mas a preocupação inicial era a marcação. Seguindo o conselho do treinador da Seleção na época, continuou na mesma função no Vasco. Mas nem na Seleção e tampouco no time de São Januário o meia chegou a ser apontado como decisivo ou fora-de-série. Nas passagens pra lá de discretas por Palmeiras e Atlético-MG, voltou à lateral. Retornou ao Vasco e, mais uma vez, foi escalado no meio-campo. Não conseguiu se firmar, teve uma passagem apagada pela Turquia até que chegou ao Flamengo. O início, entretanto, não foi dos melhores. Felipe até fez algumas boas partidas no Carioca do ano passado, mas nada empolgante.
Contusão ou corpo mole?
Durante o Brasileiro, uma lesão no púbis o deixou mais no departamento médico do que em campo. “Fiz radioterapia e fisioterapia para evitar uma operação”. Junto com ele, vários jogadores estavam machucados ou em tratamento. O grupo foi chamado de “Turma do Chinelinho”. Quando relembra essa época, Felipe dá de os ombros e garante que não está nem aí para os comentários maldosos. “Essas coisas fazem parte do futebol, não ligo para isso. Não foi a primeira nem será a última vez que vai sair algo de ruim na imprensa. Críticas injustas são normais na carreira de um jogador. O que me deixa tranqüilo é que tanto a diretoria quanto os médicos sabiam da minha situação, que joguei várias vezes no sacrifício e não fiz corpo mole em momento algum.”
Depois dos altos e baixos, Felipe finalmente se firmou. A ponto de o time, sem ele, render muito abaixo. “O Flamengo não depende só de mim. Qualquer jogador que desfalca a equipe faz falta. É claro que uns mais, outros menos, só que todos dão sua contribuição”, diz, polido.
Mas nem mesmo ele questiona que é o principal jogador do clube. E o que quase ninguém no Rio de Janeiro questiona também é que ele tem vaga na Seleção Brasileira. “Eu tenho esperança de ser convocado, mas sei que é difícil fazer uma lista com 22 jogadores do Brasil. Sempre há uma ou outra injustiça.”
Felipe leva na brincadeira, como tem levado os adversários em campo. Mas muda o tom quando fala da Roma e do Vasco. A transferência para a Itália, por 22 milhões de dólares, acabou não acontecendo e o deixou sem jogar por três meses devido a um imbróglio entre Vasco e Roma na Justiça. “Fiquei cinco dias em Roma para fazer os exames médicos e cumprir a última cláusula do contrato. Só que nenhum médico apareceu para me examinar. Meu procurador, na época o Pedrinho (Vicençote), foi ao clube e disseram que não me queriam mais. O Vasco ganhou 1 milhão de dólares e eu receberia 400 mil dólares, mas só levei 200 mil. Nem sei se verei o resto.”
Problemas financeiros também o levaram a deixar o Vasco em litígio. Ele se viu malquisto no lugar onde cresceu, após se desentender com o presidente Eurico Miranda. “Eurico é bom para o Vasco, mas não dá para não pagar salários e querer que a gente não fale nada. Mas o Vasco é passado, sempre fui profissional e não sou de torcer por time algum. Agora, estou no Flamengo e estou feliz. A torcida é maravilhosa, é a maior e não tem igual.” Pior para os vascaínos, incluindo o pai Jorge, os irmãos Rafael e Gabriel e o sobrinho Bismarck, que ainda deve passar muitas festas e comemorações sem falar com o tio.
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