Santo André campeão: o dia em que ‘Eles calaram o Maracanã’
Livro do jornalista Vladimir Bianchini relata como time do ABC Paulista venceu a Copa do Brasil de 2004, um dos muitos resultados surpreendentes registrados no mundo da bola naquele ano

Nunca houve tantos resultados surpreendentes nos principais campeonatos de futebol do planeta. Em 2004, a Grécia ganhou a Eurocopa, o Porto conquistou a Liga dos Campeões, o Werder Bremen faturou a Bundesliga e a Copa da Alemanha, o Valencia foi campeão de LaLiga e da Copa Uefa, enquanto o Zaragoza bateu o Real Madrid dos galácticos Zidane, Figo, Guti, Beckham e Roberto Carlos. Do lado de cá do Atlântico, o Once Caldas, da Colômbia, venceu a Libertadores. E, na Copa do Brasil, o Santo André dominou o Flamengo e ficou com a taça (depois de ter superado os também favoritos Atlético-MG, Guarani e Palmeiras nas fases anteriores). Essa fabulosa epopeia é contada pelo jornalista Vladimir Bianchini em Eles Calaram o Maracanã.
Artigo publicado originalmente na edição impressa de PLACAR [1513, de julho de 2024].
Logo na apresentação, o também jornalista Alex Sabino crava: “É a maior zebra da história do esporte nacional. Inigualável”. Ao longo de mais de 200 páginas, os personagens vão se sucedendo: do goleiro e suas defesas salvadoras ao atacante matador, passando pelos reservas que fizeram gols decisivos, pelo treinador, seus auxiliares e outros coadjuvantes da campanha inesquecível. O Santo caiu neste ano para a segunda divisão do Campeonato Paulista e disputa a Série D do Brasileirão.
Mas o feito de 20 anos atrás segue vivo na memória de milhões.
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Confira a seguir alguns dos principais trechos do livro
Faltavam poucas horas para o jogo mais importante da vida daquele grupo de jogadores. Era impossível não estar nervoso naquele momento. Sérgio Soares não conseguia parar quieto um minuto. Não havia dormido na noite anterior. Andava de um lado para outro tentando controlar a ansiedade.
Na ausência de Péricles Chamusca, suspenso, era ele quem teria a difícil missão de comandar o Santo André, do banco de reservas, naquela final contra o Flamengo. Mais do que pensar na estratégia, o auxiliar técnico precisava passar calma. Não se deixar intimidar diante do ambiente desfavorável.
A maioria dos seus atletas nunca tinha nem sequer pisado no Maracanã. Como suportariam a pressão de mais de 72 mil pessoas torcendo contra? Sérgio resolveu subir ao gramado para sentir o clima nas arquibancadas. Ficou por alguns minutos observando os flamenguistas, que não paravam de cantar “Sorte grande (Poeira)”, grande hit do Carnaval de 2004 na voz de Ivete Sangalo e praticamente um hino extraoficial do clube rubro-negro naquele ano. “Poeira, poeira, poeira / Levantou poeira…”
A confiança dos rubro-negros era total, mas o que mais chamou a atenção do auxiliar técnico foi um palco armado entre os bancos de reservas. Ao avistar o repórter Fernando Fernandes, da TV Record, ele perguntou: “Fernandinho, pra que esse troço aí?” “Sergião, os caras tão falando que a Ivete vai cantar aí hoje no título. Deve estar tudo armado para a festa, inclusive o palco. A Ivete só está esperando o jogo terminar”, respondeu o jornalista. “Ah, é? Tá bom”, retrucou Soares, com ironia. Ele sentiu que o menosprezo adversário seria sua melhor arma. Quando desceu de volta ao vestiário, já sabia como faria sua preleção. Seria curta e grossa. Sem invenções. “Vão lá no campo, tem um negócio diferente. Tem um palco armado para um show, mas que não foi feito para vocês. Vão deixar os caras cantarem ‘Poeira’ em cima de vocês?”
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Ao perceber que tinha um bom elenco nas mãos, o técnico preferiu manter boa parte do trabalho feito por Ferreira até então. A principal mudança que ele implementou foi na parte mental dos jogadores, já que o clube não tinha psicólogo. Adepto de técnicas de motivação e autoajuda, ele tentava criar uma ideia vencedora por meio de conversas e vídeos. “Falei logo na minha primeira palestra aos jogadores que tinha visto no Santo André o mesmo ambiente que havia vivido no Brasiliense. Eram jogadores de caráter e sem vaidade. Disse que era possível brigarmos por isso outra vez e tínhamos que acreditar”, disse o técnico.
Os recém-chegados se surpreenderam com a amizade entre os jogadores, que costumavam chegar cedo aos treinos para tomar café da manhã juntos e conversar. Mesmo com o modesto desjejum oferecido pelo clube, que tinha o dinheiro contado, não se escutavam reclamações.
A mudança no comando colocou um temor na cabeça de Osmar, que achou que não iria jogar com o novo treinador porque tinha sido indicado por Ferreira. O técnico tratou de logo superar a desconfiança na primeira conversa com o jogador.
“Osmar, você tem algum título na carreira?”, perguntou Chamusca. “Não, professor. Só tenho um vice nos Aspirantes”, respondeu o atacante. “Agora você vai ter a Copa do Brasil”, bradou o técnico.
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Sob muita fumaça, a delegação andreense entrou em um gramado lotado de repórteres, dirigentes, torcedores e curiosos. Era uma confusão só! Na hora de tirar a fotografia da final, foram chamados todos os 18 atletas relacionados para a partida, a comissão técnica, os membros da equipe médica e os funcionários da rouparia. Esse gesto foi o símbolo de um grupo que havia chegado longe com muita união, que não ficou bem representada pelos uniformes.
Boa parte dos jogadores usava bonés, mas cada um deles trazia uma marca (que não era patrocinadora do clube) diferente. Durante a semana antes da decisão, um empresário metido a boleiro do bairro do Brás, em São Paulo, foi atrás dos jogadores do Santo André durante os treinos.
Ele vinha com várias propostas de patrocínio, na realidade permuta, para que os andreenses entrassem vestidos com as marcas das lojas. Em troca, os jogadores iriam ganhar geladeiras, televisões, fogões ou móveis.
“Hoje eu vejo a foto da final e penso: ‘Que coisa ridícula’ (risos). Cada um está com um boné de uma loja diferente. Ficou feio”, admite Júlio César, que entrou com uma marca de roupas.
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O primeiro gol do Santo André não poderia ter saído de outra forma. Em uma jogada muito treinada por Chamusca e com o principal artilheiro do time. Mesmo tendo só 1,75 m, Sandro sempre fez muitos gols de cabeça porque trabalhava demais para ter um ótimo senso de colocação e um tempo de bola correto.
Em poucos segundos, o estádio ficou calado… “Nunca comemorei um gol com tanta alegria na minha vida! Pulei, girei os braços, tirei a camisa e a saí balançando no ar. Eu só escutava a voz dos meus companheiros gritando dentro de campo. Lá no fundo, tinha só um barulhinho da nossa torcida. Mas era um silêncio impressionante no estádio lotado”, contou Sandro. Enquanto isso, os torcedores festejavam nos bares e no Paço Municipal de Santo André, onde um telão transmitia o jogo.
Os jogadores do Flamengo passaram a demonstrar certo nervosismo com a situação. “Quando um flamenguista errava um lance, a torcida vaiava e eu ouvia um companheiro dele xingar: ‘Você é burro pra caramba, não presta atenção’. O castelo deles desabou”, disse Gabriel.
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Élvis entrou correndo na diagonal e venceu a marcação de Fabiano Eller quase na pequena área. Com um leve toque de pé esquerdo no contrapé de Júlio César, mandou a bola para o fundo das redes. O camisa 10 extravasou a adrenalina correndo em direção aos torcedores flamenguistas com os braços levantados e gritando. Ele ficou parado com a boca aberta perto da bandeirinha de escanteio, sem parecer acreditar no que fez. Boquiabertos também ficaram os presentes no Maracanã.
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Na ausência de Ivete Sangalo, os próprios andreenses fizeram o show. Eles não pararam de cantar a trilha sonora daquela final: “Poeira, poeira, poeira… levantou Poeira.”

Eles Calaram o Maracanã – Como o Santo André Conquistou a Copa do Brasil de 2004, de Vladimir Bianchini, R$ 40 + frete (vendas pelo site alpharrabio.com.br/produto/eles-calaram-o-maracanacomo-o-santo-andre-conquistou-acopa-do-brasil-de-2004/)