O mágico da bola
A viagem é ao obscuro Botafogo x Bonsucesso, de 1953, quando Garrincha estreou no futebol ‘tirando da cartola’ seus dribles e fazendo ‘hat trick’ no placar
Já se vão muitas décadas desde que o primeiro coelhinho foi alçado pelas orelhas de uma cartola. A mais clássica das mágicas fez surgir na Inglaterra uma expressão que no futuro será incorporada à linguagem do futebol: ‘hat trick’ (que pode ser traduzida como ‘truque do chapéu’). Não tem mistério: quando um jogador marcar três gols numa só partida, terá feito o tal ‘hat trick’ – no Brasil também poderá pedir música num programa dominical de TV, mas isso não vou explicar aqui. O termo será adotado primeiro pelo críquete, espalhando-se depois para outros esportes, até corrida de carro, sempre atestando um feito especial, digno de registro e reverência. Exatamente o que vimos ontem em General Severiano, quando o jovem e desconhecido ponta-direita Garrincha, de curiosas pernas arqueadas, estreou profissionalmente marcando três dos seis gols na vitória do Botafogo sobre o Bonsucesso (6 x 3). Saibam vocês, queridos leitores e leitoras de 1953, que o futebol brasileiro nunca mais será o mesmo após esta tarde de domingo aparentemente vulgar. Podem anotar: os mágicos Deuses da Bola escrevem certo por pernas tortas!
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Não é qualquer Zé Pìnguela que faz três tentos em sua primeira partida como jogador. Claro que em 2022, de ‘quando’ venho, o feito continuará sendo algo especial, capaz de deixar qualquer torcedor empolgado. Recomendo aos botafoguenses que façam mesmo desta segunda-feira um dia de festa. E trago na manga dois motivos pra isso. Primeiro porque, de fato, este rapaz meio cafuzo, meio índio, meio mulato, nascido e criado nos campinhos de terra de Pau Grande, distrito de Magé, no interior do Rio, irá muito além da expectativa criada ontem, e já-já dou detalhes. Outra razão é que este momento sublime e singular de testemunhar o surgimento de um novo craque e ídolo do nosso time de coração (e Garrincha será!) vai infelizmente desaparecer no próximo século, para tristeza do Futebol. Mal o jovem aparecer dando pinta de bom de bola… Pimba! Ele já será vendido, quase sempre para equipes da Europa. Alguns até voltarão aos campos nacionais, mas só depois dos 30 ou 35 anos, impedindo que aconteça esse primeiro encontro, em que torcida e a chamada ‘prata da casa’ curtem uma deliciosa mistura de euforia, orgulho, felicidade e esperança. Mesmo que o retorno dê certo, será como um casamento sem namoro – como se sabe, a melhor parte de qualquer história de amor.
Deixei 2022 em plena disputa de mais uma Copa São Paulo de Juniores, uma competição nacional com jovens até 20 anos que passará a existir em 1969 e chamaremos de ‘Copinha’. No século 21, o torneio vai ganhar relevância em parte por vir a se tornar a única oportunidade que teremos de ver novos craques defendendo nosso clube. Muitos sairão dali mesmo pro Primeiro Mundo, os clubes europeus, os ‘endinheirados’ da bola. Sem sequer estrear pelas cores que o formaram. A boa notícia é que nos próximos 20 ou 30 anos ainda será possível, a torcedores dos principais times do país, vibrar e acompanhar a carreira de prodígios como este menino Garrincha, que, garanto a vocês, apenas começou a mostrar ao mundo sua magia. Tem muito mais coelho nessa cartola.
(Não darei muitos detalhes pra não estragar a alegria que o jovem ainda dará a todos, mas posso adiantar que – alerta de ‘spoiler’ – ele será decisivo na ‘cura’ das dores que guardamos no peito desde a tragédia de três anos atrás, no Maracanã. Aguardem!)
Apesar do ‘hat trick’ de ontem, não será a artilharia a grande marca de sua carreira. Mas o drible. Quem esteve ontem no estádio do bairro de Botafogo sabe do que estou falando. Não é fácil segurar o moleque, que cisca, sassarica, vai, volta, corre, para, corta prum lado, pro outro… Leva qualquer marcador à loucura. Até Nilton Santos, o elegante e também promissor lateral-esquerdo do Clube da Estrela Solitária, suou diante do ‘matuto’. Eternamente será contado fato que deu-se há poucas semanas, quando, um ano depois de ser descoberto pelo lateral-direito Arati, Garrincha foi finalmente trazido por um ilustre botafoguense, Eurico Salgado, para um treino-teste no clube. Ao ver o jovem chegar com suas chuteiras surradas e sujas de barro debaixo do braço, Nilton Santos deu de ombros. Mas depois de correr muito atrás do novato, levando dribles desconcertantes, o lateral lançou mão do respeito que já conquistou no elenco para, dirão, exigir a contratação do pontinha. Por um motivo simples: jogando no mesmo time, e não no adversário, nunca mais precisaria marcá-lo.
Na mesma noite, Garrincha já assinou um contrato em branco – serão alguns, infelizmente. Pra quem não sabe, obviamente que não foi pra campo como titular sem que o técnico Gentil Cardoso já o tivesse observado numa partida, mesmo que amistosa. Mês passado, dia 28, ele formou no Onze botafoguense que bateu o Cantagalo por 5 x 1. Não marcou gol, mas deu suas piruetas. Numa delas, em disparada, driblou toda a defesa adversária, incluído o guarda-metas, e só ajeitou pro arremate do companheiro Ariosto. Com o camisa alvinegra, atuou ainda em um jogo, uma semana antes, entre os aspirantes, sendo autor do único tento. Entre os ‘aspira’, aliás, fez praticamente um treino – aquele tal ‘teste’. Na primeira vez que pegou na bola, matou ela no calcanhar e aplicou um chapéu no marcador. Ao final do bate-bola, acabou sendo ‘intimado’ a voltar no dia seguinte, já entre os profissionais. Ou seja: saiu do amadorismo de Pau Grande pra titular do Botafogo em pouco mais de um mês. Num passe de mágica!
Vasco, Fluminense e Flamengo, revelo a todos, tiveram a chance de “se livrar” do atacante levando-o para suas fileiras, mas paparam mosca. Garrincha esteve nos três clubes, fazendo testes, mas não voltou, seja pela falta de visão dos treinadores ou pelo medo de perder mais um dia na fábrica em que trabalhava, de Pau Grande. Por conta de ter uma perna seis centímetros maior que a outra, teria ouvido coisas do tipo: “Até aleijado vem fazer teste aqui.” Optou pela vida mais simples, indo ganhar uns trocados no Serrano, de Petrópolis, time que logo abandonou, cansado da viagem de seis horas no trem – neste caso, as ‘pernas’ eram iguais, três horas cada.
Mas estava escrito: Garrincha tinha que ser do Botafogo e lá ficará por 12 anos, transformando todos os seus marcadores em ‘João’ – assim ele os chama, pois considera todos iguais, fáceis de driblar – e iniciando uma mística que terá longa duração no clube: a da camisa 7. Ainda terá passagens por outros ‘grandes’, como Flamengo e Corinthians, mas sem nunca repetir o brilhantismo demonstrado com a camisa alvinegra ou com a da Seleção (sim, ele a vestirá, e lhe cairá maravilhosamente bem!).
Preciso aproveitar esta resenha para corrigir os ‘coleguinhas’ da imprensa esportiva que hoje estão cometendo erros ao falar da atuação do jovem no prélio de ontem. Reforço que é ‘Garrincha’ o apelido do atacante e que assim ele assinará seu nome na história. E não essas corruptelas assinaladas hoje por veículos como Correio da Manhã e Gazeta de Notícias (‘Gualicho’) ou o Diário de Notícias (‘Garrido’). Sem falar em ‘Garribo’, ‘Garrico’, ‘Carricho’, ‘Garricho’, ‘Garricha’, ‘Garrinha’ e ‘Garrincho’… Vão chamar ele de tudo nos próximos dias, até entenderem que trata-se de referência a um passarinho, antevendo o voo alto (e livre!) que dará com a bola nos pés. Pássaros, aliás, têm tudo a ver com mágica. Abracadabra!
FICHA TÉCNICA
BOTAFOGO 6 × 3 BONSUCESSO
Data: 10 de julho de 1953
Estádio: General Severiano, em Botafogo, Rio de Janeiro
Árbitro: Erick Westman
Renda: Cr$ 68.577,40
Botafogo: Gilson, Gérson dos Santos e Nílton Santos; Arati, Bob e Juvenal; Garrincha, Geninho, Dino da Costa, Ariosto e Vinícius. Técnico: Gentil Cardoso
Bonsucesso: Ari, Duarte e Mauro; Urubatão, Décio e Serafim; Lino, Wilson, Simões, Soca e Benedito. Técnico: Pirilo
Gols: Garrincha (3) Dino (2) e Vinícius (Botafogo); Simões, Lino e Benedito (Bonsucesso)
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