O America-RJ em busca do tempo perdido
Cronista encontra camisa surrada do clube carioca que, como a ‘madeleine’ de Proust, traz reminiscências dos bons tempos, como vitória sobre Benfica, há 50 anos
O futebol é pródigo em criar suas ‘madeleines’, ícones que despertam uma memória afetiva em nossos corações de torcedores. Se você ainda não leu sequer um dos 7 volumes de ‘Em Busca do Tempo Perdido’, o clássico de Marcel Proust, não se desespere, querido leitor ou querida leitora de 1973. Corra lá na ‘Barsa’, na ‘Conhecer’ ou em qualquer outra Enciclopédia disponível. No romance, o simples gesto de molhar o rechonchudo biscoito numa xícara de chá leva o escritor francês a viagens nostálgicas por sabores, odores, lugares e pessoas do passado adormecido em alguma prateleira de suas lembranças – esquecidas, como as Enciclopédias no próximo século. Sou um Viajante do Tempo, sim, e posso garantir que daqui a 50 anos, aliás bem antes disso, descobrir tudo sobre o ‘Efeito Proust’, ‘Memória Involuntária’ e todo tipo de divagação metafísica emanada do famoso livro estará ao alcance de um simples clique com o dedo indicador. Será o ‘Efeito Google’, aguardem. Mas nem a tecnologia vai nos impedir que continuemos a ter esses mágicos momentos em que um pequeno biscoito ou um objeto qualquer nos remete a uma epifania de saudade.
Foi o que aconteceu comigo ao esbarrar dia desses, em meio às quinquilharias esportivas na minha casa, com uma surrada e surpreendentemente pequena (devo ter engordado…) camisa do glorioso America, esse mesmo que ontem derrotou (1 x 0) o poderoso Benfica, de Portugal, e assim conquistou, nos pênaltis, esta Taça TAP, em curso nas terras africanas. E assim vai ser porque, sinto informar, a conquista será um dos últimos atos de triunfo do secular clube carioca, popularmente chamado de ‘Sangue’. Dentro desse meio século que vem por aí, aliás também bem antes disso, o America não estará mais brilhando nos gramados internacionais e sequer disputando a Primeira Divisão dos campeonatos estadual e Brasileiro. Será apenas mais uma, certamente a maior, ‘madeleine’ do nosso Futebol.
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Fundado em 18 de setembro de 1904, o America Football Club – assim mesmo, com grafia inglesa e, portanto, sem acento agudo – chegará aos 119 anos de idade ainda com os mesmos 7 títulos no Carioca, o último deles há 13 anos, em 1960. Último de fato, pois até 2023 não será mais. A melhor colocação no Brasileirão também continuará sendo o 3º lugar em 1961. Em minhas viagens na Máquina do Tempo ao passado do Futebol já visitei outros momentos de ouro da história do ‘Diabo’, mais um dos apelidos do clube, como um jogo marcante de um dos maiores, quiçá o maior entre seus ídolos, o zagueiro Belfort Duarte, cujo nome virou prêmio dado a atletas que “jogam limpo”, “na bola”. Ou a conquista que ainda está por vir, dentro de 9 anos, anotem, quando vencerá o futuro Torneio dos Campeões, que vai ser organizado pela CBF com os principais times do país. Mas precisava fazer nova viagem e voltar a sentir a força do America. Proust explica…
Foi segurar em minhas mãos aquela velha e desbotada camisa vermelha do ‘Mecão’ (outra alcunha) e virem à mente reminiscências dos tantos craques que já trajaram, trajam ou ainda vão trajar este manto, como Almir Pernambuquinho, Badeco, Canário, Luisinho Lemos, o zagueiro Alex, Bráulio, Maneco, Djalma Dias, o atual selecionável Flecha, Edu Coimbra, o goleiro Pompéia… E ainda virão Orlando Lelé, Jorginho… Memórias involuntárias, puro Proust… Nunca fui torcedor de coração, mas lembro que comprei a camisa por achá-la linda e por ser o ‘Mequinha’ (tratamento amoroso), como todo mundo (ainda) sabe, o “segundo time” de todo carioca. E o detentor do mais belo hino entre todos dos clubes brasileiros, caprichosamente composto por Lamartine Babo, americano roxo, como o foram ou são Noel Rosa, Ismael Silva, Mário Reis, Sílvio Caldas, Villa-Lobos, Francisco Alves, Sobral Pinto, João Cabral de Melo Neto, Oscarito… Inspirador, não? São tantos os clubes espalhados pelo país que adotaram o nome de América (com acento) que no futuro o clube terá que buscar (e ganhar, em 2020) na Justiça o direito de ser o único a poder usar o lendário escudo ‘AFC’. Mas a triste verdade é que, em 2023, quando se falar em ‘América’ no futebol brasileiro, vamos pensar no homônimo Mineiro, que aliás nem mais precisará usar o epíteto com sua procedência regional.
Uma segunda frase, bem-humorada, que hoje corre nas ruas da cidade também é bastante conhecida: “A torcida do America cabe numa Kombi”. Em antiga pesquisa sobre o tamanho de torcidas, de 1951, americanos eram 7,3% dos cariocas. Passados 20 anos, nova aferição feita em 1971, há dois anos, já registrou uma queda para 3% da massa de torcedores no Estado. E futuras pesquisas, no Século 21, como em 2010, darão conta de algo como 1%… Em 2023? Como e onde estará a torcida do clube? Difícil dizer. Talvez tomando chá com ‘madeleines’. Mas ainda terei esperança de ver o America ressurgir. Para novas glórias, em busca do tempo perdido.
FICHA TÉCNICA
AMÉRICA-RJ 1 X 0 BENFICA
Competição: Taça TAP (Transportes Aéreos Portugueses), em, homenagem ao craque Eusébio
Data: 10 de agosto de 1973
Estádio: Estádio Municipal
Local: Luanda, em Angola
AMÉRICA: Vanderlei; Paulo Maurício, Alex, Marreco e Álvaro; Antonio Carlos (Luisinho) e Ivo; Mauro, Flecha, Tadeu e Sérgio Lima
BENFICA: José Henrique; Mata da Silva, Humberto Coelho, Messias e Adolfo; Bastos Lopes (Barros) e Vitor Martins; Toni, Nenê, Eusébio e Moinhos (Vitor Batista)
Gols: Sérgio Lima
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