Perto dos 43, Fábio conta o segredo da longevidade: ‘Pagar um preço’
Jogador mais velho das quatro divisões nacionais, o camisa 1 do Fluminense explica o milagre da fonte da juventude em alto nível; até onde ele vai?
Fazia um calor daqueles de causar desmaios em Dallas, no Texas, em março de 1997. Sol de ferver chaleira, definiria uma antiga expressão. Os termômetros registravam acima dos 100 graus Fahrenheit, o equivalente a quase 40 graus Celsius, quando as lentes do repórter fotográfico Alexandre Battibugli encontraram um jovem goleiro do União Bandeirante, time do interior do Paraná, debaixo das traves de um dos campos desenhados pelo estádio Cotton Bowl. Chegara aos ouvidos de Batti a história de que o jogador de 16 anos não era só mais um dentre os 3 000 atletas inscritos na 18ª edição da Dallas Cup, torneio de base criado em 1980 e que a época ostentava comparações com um Mundial Interclubes.
O personagem não usava chuteiras coloridas, nem brincos. Os traços físicos também eram discretos, mas chamava atenção por ter sido campeão sul-americano sub-17 com a seleção brasileira meses antes e pai precoce, aos 14. Mesmo assim, ainda era difícil acreditar não ser só mais um na multidão. Batti terminou aquele dia com uma toalha molhada sobre o rosto na tentativa de se recuperar da ensolarada jornada sem filtro solar. Dias depois do clique despretensioso, o goleiro encerraria a participação na competição como herói do título da categoria sub-17 depois de defender três pênaltis nas semifinais.
O prodígio escolhido há mais de vinte e seis anos por PLACAR era o mato-grossense Fábio Deivson Lopes Maciel, hoje camisa 1 do Fluminense. A reportagem escrita por Alfredo Ogawa contava a saga de diversos garotos, de 18 países diferentes, em busca de um lugar ao sol. E Fábio, definitivamente, alcançou o seu: jogador mais velho em atividade na Série A (completa 43 anos em 30 de setembro), brasileiro com mais partidas em Libertadores (93), com mais jogos em edições de Campeonato Brasileiro (643), primeiro nome a atingir 100 aparições na Copa do Brasil, recordista de jogos pelo Cruzeiro (973) e terceiro goleiro no mundo que mais partidas ficou sem sofrer gols (451), atrás somente do italiano Gianluigi Buffon (503) e do inglês Ray Clemence (556).
Fábio rebate Ronaldo e não pensa em volta ao Cruzeiro: ‘Faltou hombridade’
Fábio não entende critérios para esquecimento na seleção: ‘Ninguém explica’
“Se eu falar que não sei nada disso, só na cola de vocês mesmo, da revista? Sempre busquei tudo no dia a dia, acredito que isso me ajudou. Se fui bem na temporada passada, quero melhorar na próxima. O que fiz nunca vai ser suficiente e isso foi crucial para que pudesse seguir”, disse em entrevista a PLACAR.
Os reencontros são sempre bonitos. Fábio e Batti estiveram, novamente, frente a frente para um retrato, no CT Carlos Castilho, no Rio. “Faz tempo, hein? Eu lembro [da foto], estamos ficando velhos”, brinca o goleiro, agora com cabelos brancos – como os de Batti – e já consolidado pela carreira iniciada profissionalmente naquele mesmo ano, em 1997, com passagens por Athletico Paranaense, Vasco e Cruzeiro até a chegada ao clube carioca em janeiro do último ano.
A fórmula para fazer frear o tempo é atribuída por ele mesmo à sua fé e disposição em “pagar um preço”, termo que repete por diversas vezes ao longo da entrevista. “É claro que você precisa querer pagar um preço, ter a humildade de saber que necessita evoluir diariamente, se observar, escutar onde pode melhorar”, diz. “Sou muito focado em melhorar meus treinamentos porque se tiver o hábito de fazer bem feito, dentro dos jogos vou ter menos dificuldades. E a minha fé é a base de tudo porque me concede saúde. As lesões atrapalham muito e, graças a Deus, tive poucas na carreira. Deus sempre direcionou tudo em minha vida. Depois, com conhecimento, tive certeza disso. Ele me concedeu o dom de jogar”.
Apesar da idade avançada, não há regalias. Pelo contrário, ele chega diariamente pelo menos trinta minutos antes dos companheiros ao CT para iniciar os trabalhos específicos da posição sob o comando dos preparadores André Carvalho e Josmiro de Góes. Depois das atividades, ainda são comuns sessões de gelo ou tratamentos para prevenção de lesões. Segundo relato de funcionários do clube, Fábio, John Arias e Paulo Henrique Ganso são sempre os últimos a deixar os treinamentos. Também está visivelmente mais magro. “É um conjunto aliado à alimentação, ao dia a dia, descanso e mais a preparação com trabalhos cuidadosos, independente de sol, ou chuva. De campo bom, ou ruim. De estar no CT, ou em viagem. Nunca achamos que está bom”.
Fábio é visto como um fora de série no ofício da função, talvez a mais delicada no futebol, a derradeira fronteira, a um milímetro entre a glória e a tragédia. Em maio, depois da vitória por 2 a 0 diante do Cruzeiro, no Mineirão, pela quinta rodada do Brasileirão, o técnico Fernando Diniz não poupou elogios pelo fato do goleiro ter se adaptado aos moldes considerados ideais pelo treinador, um fã confesso de jogadas construídas desde o camisa 1 de suas equipes. “Na minha opinião, é um gênio do gol. Por isso ele consegue jogar com a idade que tem. Um cara com a idade dele se predispor a aprender a jogar com o pé, treinar mais do que os outros… Ele joga [com os pés] com uma naturalidade incrível hoje”, disse Diniz, na ocasião.
O comandante do Fluminense enxerga o futebol como um tabuleiro de xadrez. Atrair o adversário para o próprio campo aumenta o espaço entre os setores. O goleiro, com isso, se torna parte vital do processo, acionado por diversas vezes durante a partida. “Antes, para mim, o recuo era só uma bola de socorro, dominar e jogar para frente, como a grande maioria dos goleiros faz. Com o Diniz é completamente diferente, você vira um líbero, está pronto para dar sequência às jogadas. Trabalhamos diariamente no limite para nos jogos ter essa coragem”.
A rotina de longas viagens e concentrações, constantemente apontada como um fardo por diversos atletas e treinadores no futebol brasileiro é outro fator que não o preocupa. Segundo ele, seria impossível alcançar a longevidade não fosse a manutenção daquele sentimento do garoto que gostava do que fazia, desde os tempos de União Bandeirante. “O dinheiro, apenas o dinheiro, não pode ser o alimento para manter a rotina, nem lidar com as cobranças”, diz. “Tem que querer muito, amar muito e ter prazer de acordar para vir ao CT vestir a camisa do clube. Prazer para fazer de novo, de novo e de novo, independentemente do resultado. É algo que o dinheiro não pode motivar. Se for só o financeiro chega uma hora que o cara entra no carro e diz chega”.
E não faltaram oportunidades para o “chega” de Fábio. Em 2022, ele precisou se despedir quase a força do Cruzeiro depois de 18 anos ininterruptos, diversos recordes e títulos conquistados com a mudança do clube para SAF (Sociedade Anônima do Futebol), encabeçada por Ronaldo Fenômeno. “Com lágrimas e dor, preciso aceitar que não contam comigo no clube”, desabafou em comunicado à torcida nas redes sociais. “Me disseram que qualquer outro cenário estava inviabilizado e que eu não faço parte do planejamento desportivo”, acrescentou em outro trecho, dizendo ainda estar disposto a facilitar o pagamento de débitos do clube referente a anos anteriores.
“Eu fiz a minha parte, não foi por dinheiro. Se fosse, teria saído quando a equipe caiu, mas abri mão de tudo. Só achei que poderia ser diferente. Mesmo que não fosse para eu permanecer, que fosse da forma correta, com hombridade e transparência. Mas passou, ficou para trás”, conta. “Foi novamente permissão de Deus”, completa.
O cenário doloroso se repetiu no inexplicável esquecimento durante quase toda a carreira na seleção brasileira. Foram só três jogos, apesar de estar presente nos elencos da Copa das Confederações, em 2003, e na conquista do título da Copa América, em 2004. Em 2020, em entrevista ao Esporte Interativo, mencionou que convocações tinham amizade como critério, não o mérito.
“Ninguém explica, infelizmente”, afirma. “É uma força que foge da minha alçada. Tive algumas oportunidades porque ficava até vergonhoso não me levarem, mas quando eu ia era com outros dois goleiros, três… os caras precisavam desmaiar ou acontecer muita coisa para que eu tivesse a oportunidade. A minha consciência é tranquila e isso me faz feliz. Depois Deus me deu a oportunidade de trabalhar com treinadores que passaram lá, como o Mano [Menezes] e o Felipão. É algo resolvido porque tenho a minha fé. Foram escolhas. Eu não posso ter mágoas, sou cada vez mais grato pela possibilidade de ainda conseguir jogar”.
Nem tudo, porém, foi tranquilo. Em dezembro de 2003, na primeira grande entrevista à PLACAR, quando estava no Vasco, sonhava com a vida na Europa. A mulher, Sandra Mara, neta de italianos, estava às portas de conquistar o desejado passaporte. Ele havia recém-assinado com o empresário francês Franck Henouda, influente agente no mercado europeu. Três anos, depois, em 2006, estava de férias na Itália, prestes a assinar com o Osasuna, na Espanha. Chegara a hora. Ao sentar-se na mesa com o agente e dirigentes do clube, contudo, os termos do contrato eram diferentes do combinado. Houve uma tentativa de ajuste, mas sem solução, e a quimera foi desfeita.
“Nunca pensei em como seria na Europa e é assim que penso em relação à seleção brasileira”, diz. “Por isso, fico leve com a minha caminhada. Usufruo do que Deus me proporcionou. Quando deixei aquele sonho, Deus viu que confiava nele. Tive outras propostas e permaneci. Nem nos meus melhores sonhos poderia imaginar a carreira que tive”, diz.
Mesmo após tantos anos de estrada, Fábio parece ter fôlego para muito mais – o jogador estendeu na última quinta-feira, 17, o seu contrato com o Fluminense até 2025. Desde as fotos na ensolarada Dallas, ainda na adolescência, até as feitas agora, ele segue sendo o mesmo, confiante, como se o menino desse as mãos para o adulto. Ou, na bela frase do poeta William Wordsworth, depois citada por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas, “o menino é o pai do homem”.
A matéria foi publicada na edição de agosto de PLACAR, já disponível nas bancas de todo país.