Ganso exclusivo: romantismo, futuro como técnico e defesa a Neymar
Novamente em alta, meia do Fluminense tocou em assuntos espinhosos e fez uma recomendação fundamental a PLACAR: contemple o craque enquanto é tempo
Reportagem publicada na edição impressa de agosto de 2022
Ciro foi a minha primeira referência no futebol. Lembro bem dele, apesar de nunca ter lhe dirigido uma só palavra. Era alto, certamente mais de 1,80 metro, bem magro, tinha cabelos encaracolados, barba por fazer e uma voz rouca. O vi pela primeira vez num campo de várzea, em Santos, com 6 anos, enquanto estava agarrado à perna do meu pai. Ele chegou atrasado para uma partida neste dia: “ô, Ciro, tu é f…, hein”, ouviu. Eu só observava.
O time já aquecia em campo, quando pisou pela primeira vez no gramado vestindo a camisa 10. Era o mais puro talento com a bola nos pés. Acabou com o jogo e distribuiu classe por cada metro que percorreu do campo. Lembro que guardei o nome dele na cabeça e sempre que havia uma nova partida, logo perguntava: “E o Ciro vem?”. O estilo me marcou.
Anos depois, eu o vi sentado em um ônibus. Tive, por alguns segundos, a esperança de ele me reconhecer. Não aconteceu. Ciro não era um jogador profissional, não distribuía autógrafos pelas ruas, não parecia ser rico, mas foi o primeiro exemplar de 10 clássico que vi na vida. E jamais esqueci.
Paulo Henrique Ganso é como Ciro (ou Ciro, na verdade, é tipo um Ganso). Um craque quase em extinção. Meia cerebral, daqueles que raramente erram passes. Põe refino a cada jogada e faz aparecer um leve toque de calcanhar em uma disputa truncada no meio de campo. Enxerga companheiros onde muitas vezes nem mesmo pela televisão conseguimos ver.
É dos que parecem ver o tempo passar em uma partida diferente dos demais, com um relógio próprio, mas escuta há uma década: lento, bichado, não corre, não serve, não tem vontade, ultrapassado, não pode ser profissional.
Aos 32 anos, e elogiado novamente por grandes atuações pelo Fluminense na atual temporada, Ganso parece, enfim, despertar um novo olhar dos torcedores: o de contemplação. O mesmo que eu tive por Ciro e, provavelmente, o mesmíssimo que você cultiva pelo seu 10 preferido.
Faz bem à saúde do amante de futebol contemplar um craque enquanto é tempo. Sem preconceitos, sem reservas, sem cobranças, sem comparações, sem rótulos. É bom, então, fazermos isso, porque Ganso pode ser o último romântico.
“O Ganso faz pouco gol, o Ganso não dá assistência. As pessoas falam tantas coisas… “, ri o jogador, em entrevista a edição de agosto de PLACAR, já nas bancas e disponível em dispositivos iOS e Android (leia mais trechos na entrevista exclusiva abaixo).
“É curioso porque já cansei de ser chamado por torcedores adversários que falaram: ‘nossa, cara, mas como você corre’. Eu tenho muita autocrítica. Quem me conhece um pouco sabe bem disso. Quero chegar mais na área, por exemplo, chutar mais no gol, mas sei também que cada um tem sua maneira de jogar. O Fernando (Diniz) me lembra a todo o instante disso. Sou o que sou”, completa.
Ganso, de fato, é o que é. Em coluna na Folha de S.Paulo, em 16 de julho, Tostão pôs o dedo exatamente nesta ferida: “Ganso é Ganso, do seu jeito”, resumiu. Tostão explicou que o craque do Fluminense não preenche quase nenhum dos pré-requisitos esperados para um jogador que atua em sua posição, que provavelmente nunca mais será convocado para a seleção brasileira nem atuará por um grande europeu, mas resumiu ao fim: “Como é agradável vê-lo jogar”. Simples assim.
“Hoje sinto muito prazer em jogar futebol. Estou leve e solto no Flu, mas tudo depende muito de como você joga e do ambiente de onde você está, também, isso pesa. Joguei a vida toda para estar com a bola e quando chego ao profissional eu fico sem? Na minha visão não faz nenhum sentido. Enquanto eu tiver isso (a bola), vou ter prazer. Se vou só para ficar correndo, aí é atletismo e paro”, explica.
A camisa 10 que aprendemos a olhar como mítica a partir de Pelé e que contemplamos por tantas vezes nas costas de nomes como Rivellino, Zico, Maradona, Platini, Zidane, Totti, Messi e tantos outros craques está em extinção — e não é exagero. Que fique claro: Ganso não está no mesmo patamar desses cracaços, mas é o exemplar no país que mais nos faz lembrar de jogadores assim.
A preocupação pela extinção dos típicos 10 já foi externada por Andrés D’Alessandro, ídolo do Inter, aposentado dos gramados no último dia 17 de abril. D’Ale disse à Folha, em 3 de maio, que “o antigo 10 se perdeu um pouco”. A justificativa do argentino é simples: uma adaptação quase forçada dos meias para um futebol jogado em extrema velocidade e intensidade.
“Por mim, teria sempre um no time, que pensa, que cadencia o jogo, que administra os momentos da partida”, acrescentou.
“Será mesmo que não temos um 10 na base? Eu acho que tem, mas depende muito dos treinadores. Vocês querem resgatar o 10 ou manter empregos? Essa precisa ser a pergunta”, indaga Ganso, que diz dividir a condição com alguns nomes do futebol brasileiro.
“Tem o Arrascaeta e o Veiga, que gosto muito de ver assistir. Tudo bem, talvez o Veiga não seja bem um 10 e mais um meia-atacante que finaliza jogadas, mas pode ser esse cara, também, se trabalhado. Talvez o Nacho Fernández, do Galo, mas no caso dele ainda prefiro quando atua como um segundo homem de meio, terceiro…”, analisa.
Ganso vive no Fluminense o melhor momento desde a chegada ao clube, em janeiro de 2019, depois de rescindir com o Sevilla e uma passagem-relâmpago por empréstimo pelo modesto Amiens, da França. Na ocasião, enquanto torcedores do Flu comemoravam, rivais cutucavam dizendo que o clube havia contratado mais um ex-jogador em atividade.
No primeiro ano, foram 47 jogos, cinco gols, assistências, alguns lances geniais, mas um decreto da opinião pública ainda teimava em rondá-lo: ele nunca será o que se projetou. “Tem coisas no futebol que aprendi: você não tem que falar, melhor ficar quieto. Quando via alguma coisa errada, eu ia lá e falava. Hoje, tento me segurar, me controlar mais. Tem coisas que, infelizmente, no futebol temos que deixar passar. A minha personalidade e a minha sinceridade me trouxeram prejuízos também. Fui aprendendo com a vida”, diz.
Desde que deixou o Santos, em uma polêmica transferência ao rival São Paulo, em 2012, Ganso convive com sombras. A principal delas, sobre o seu corpo. Dias depois da saída da Vila Belmiro, onde viveu os melhores momentos da carreira, saiu no noticiário uma declaração do então presidente do Santos, Luis Álvaro Ribeiro, de que ele tinha uma lesão incurável. Dias depois, o dirigente, já falecido, recuou e negou a fala.
O relacionamento com o próprio corpo, de fato, foi um aprendizado. Antes mesmo de subir ao profissional, em 2007, sofreu uma grave lesão ligamentar, com lesão associada no menisco do joelho direito. Anos depois, quando já havia chegado à seleção, em 2010, e desfrutava momento mágico no Santos ao lado de Neymar foi a vez do esquerdo, diante do Grêmio, no Olímpico.
Logo no retorno, em 12 de março de 2011, entrou no segundo tempo e precisou de apenas dez minutos em campo para decidir a partida diante do Botafogo- SP. Ainda repetiu atuações de cinema no clube e no São Paulo antes de rumar à Espanha, em 2016.
“São muitas marcas, cicatrizes, mas graças a Deus o meu corpo está bem. Posso me machucar? Claro, é normal no ritmo de futebol em que estamos, mas penso a cada dia em aumentar a minha carreira. É uma luta diária do atleta. Passei a entender muito melhor os sinais, por exemplo. Vínhamos de uma sequência de jogos e senti algo estranho quando fui bater um escanteio contra o Palmeiras. Pedi para sair, pois sabia que se ficasse o estrago seria maior. Perdi um grande jogo? Sim, mas tenho certeza de que me custaria muito mais se não tivesse saído ali”, afirma.
Paulo Henrique Chagas de Lima carrega como apelido, curiosamente, um jargão futebolístico que nem de longe se enquadra. É utilizado para definir um jogador de poucos recursos técnicos. Ele herdou o Ganso há dezessete anos, em 2005, quando chegou à base do Santos para uma avaliação vindo da Tuna Luso.
Um antigo roupeiro do clube brincava sempre que via novos candidatos: “Lá vem mais um ganso fazer um teste”. Ganso contrariou as expectativas e fez do apelido em tom jocoso um estímulo por menos operários e mais craques.
“O Rogério Ceni falou num programa de televisão, em 2014, que jogo como o Federer no tênis. Que não faço força, que tudo para mim é suave. Eu faço tudo naturalmente, simples, tento resolver em um passe. O Cruijff dizia: ‘Jogar futebol é muito simples, mas é difícil jogar de forma simples’. Vi muitos fazerem isso: o Alex, hoje treinador, o Rogério, mesmo sendo goleiro, o Neymar, um gênio, o Kaká, de quem sou fã até hoje, o Ronaldinho Gaúcho e o Fenômeno. Muita gente lembra do golaço de cobertura que fez na Vila, em 2009, mas e o domínio? E finalizar com as duas pernas? Isso para mim é incrível”, relata.
Como um bom quadro, Ganso é arte. Aprecie, mas sem torcer previamente o nariz ou reproduzindo opiniões que provavelmente já ouviu de alguém. Sem pressão, e enquanto é tempo: contemple o último romântico.
Confira a entrevista completa com Paulo Henrique Ganso:
“O medo de perder inibe os novos 10”
Ainda temos os típicos camisas 10 no Brasil? Eu acho que sim, mas os treinadores têm muito medo de perder hoje e isso inibe o surgimento. Entenda: o cara fica sem vencer três partidas e é mandado embora. Vai colocar mais um volante ou um meia? Vai colocar o time para marcar ou jogar bonito? Precisamos lembrar que a proposta do jogo é ganhar e com excesso de força física você fica muito mais distante disso. O futebol brasileiro sempre teve mais qualidade técnica do que força. Hoje, temos pouquíssimo improviso nos jogos, falta muito isso.
Então isso passa diretamente pela cultura dos treinadores? Cada um tem sua maneira de treinar. o Fernando (Diniz) deixa o cara à vontade e tem prazer de ter a bola. Junta isso com a confiança que ele passa para cada um, é algo perfeito. Ele lembra muito bem a essência do futebol brasileiro e, por isso, acabamos conseguindo sempre ter uma ótima conexão. Eu aprendo todos os dias com ele, sem exageros. Ele sempre traz algo novo, não vou falar abertamente o que, mas são coisas que ele fala e que, de fato, acontecem em campo.
E o que tem achado do nível do futebol brasileiro? Acompanho os times em que atuei como Santos, São Paulo, mas quem mais me chama atenção hoje é o Palmeiras. gosto de ver o Palmeiras pela forma como joga. É o time que mais sabe unir a qualidade técnica com a competitividade. Eu vejo com o olhar de quem quer aprender também. Sempre dá para tirar um pouquinho daquilo a que assistimos. gosto de ver a Premier League e quero voltar a ver o Italiano, o que menos tenho acompanhado ultimamente.
Falando em Europa, muitos tinham a expectativa que fizesse longa carreira por lá. Se frustra por isso? Eu sou plenamente satisfeito com tudo o que aconteceu, com tudo o que aprendi e vivenciei. Sinto que hoje sou muito melhor do que era há alguns anos. Talvez, de verdade, se pudesse voltar eu desfrutaria mais dos bons momentos que tive em vez de me envolver tanto na parte fora de campo. É aquilo: quer saber? Se der certo, deu. Eu hoje teria falado menos do que falei.
Além de Arrascaeta, Veiga, Nacho, alguém mais entraria na sua lista pessoal de camisas 10? Tem alguns meninos surgindo, também, como o Arthur da base do Flu. Ele já treinou algumas vezes com o profissional. o Palmeiras tem uma grande safra também, mas nenhum típico camisa 10. outro que gosto bastante é o Luiz Henrique, o Luizinho, da base do São Paulo.
Você hoje raramente dá entrevistas. Como lida com as críticas? Posso ser sincero? Não acompanho nada. Minha esposa até briga que preciso postar mais, estar mais ligado com tudo isso.
Apesar do talento, muitas vezes você foi noticiário pelo extracampo. Discussão de contrato com o Santos, a briga com Oswaldo de Oliveira… É o que vende, não é? (risos). Naquela final do Paulista de 2010, entre Santos e Santo André, imagine se a bola do Santo André que bateu na trave no finzinho entra? Mudaria a minha vida, pois tinha dito não ao Dorival. Mas tudo o que acontece resulta em um aprendizado. O mesmo foi com o Oswaldo. Estava tudo muito quente, não dava para falar por favor. o Muricy muitas vezes xingava, o Fernando para ajudar alguém é assim também. Uma vez assistindo a uma entrevista o Bielsa disse que nessa relação entre jogador e treinador aceitamos de tudo, só não toleramos a mentira. É isso.
O futebol ficou mesmo mais difícil de ser jogado, com menos espaços? Não está não, está até tranquilo demais. Correr todo mundo corre, isso é protocolar. o diferencial hoje é a técnica. Não dá para me pedir para correr como lateral, por exemplo. Todos têm a sua função dentro de campo. Eu sou o cara que me divirto ao jogar. Muitas vezes o torcedor do Flamengo, do Palmeiras e de outros clubes me chamam depois dos jogos só para dizer quão prazeroso era me ver em campo. gostaria que fosse mais comum no futebol brasileiro, que os torcedores tivessem mais alegria nas partidas. Precisamos recuperar isso, independentemente de o clube ter ou não uma boa condição financeira. o futebol precisa ser melhor tratado.
E por que insistem tanto em dizer que você é lento? Criou-se um rótulo e as pessoas compram isso, pois veem muito menos jogos no estádio hoje. Faz parte da profissão. Como vou me defender que dei errado na Europa, por exemplo? Eu tinha gols e assistências até altas para a função que exercia na primeira temporada. Na segunda, começamos bem, vencemos quatro ou cinco primeiros jogos. Eu tinha novamente gols, assistências, mas sem mais nem menos implementaram um rodízio que só era aplicado para mim. Eu saí, não voltei mais a ser titular. Mas quem quer ouvir essa parte? É mais fácil abrir o site de estatísticas e dizer: o Ganso foi um fiasco.
Você está com 32 para 33 anos e diz que ainda quer jogar mais. Planeja fazer o que quando parar? Eu já tive muita vontade de fazer medicina. Aliás, alguns sabem, quase larguei o futebol para fazer medicina, mas o meu pensamento hoje é o de permanecer no futebol. Quero me tornar treinador. Comecei na CBF Academy a licença B, mas ainda preciso concluir. Não tive como terminar a parte prática pelo tempo. O pensamento, então, é ser um treinador ou um executivo. Se fosse para a segunda opção, gostaria de ser como o Monchi, do Sevilla, mas sei que no Brasil é difícil alguém com carta branca. Por isso, penso mais em seguir como treinador.
Lamenta ter tido tão pouco tempo na seleção? Lamento não ter ganho os Jogos de Londres, em 2012, aquela seleção era fantástica e seria a primeira a conquistar o ouro. Claro que queria ter tido mais vezes, seleção é o auge da carreira e é muito bom estar lá, mas não me lamento pelo que passou. Aproveitei, estive ao lado de Ronaldinho, Neymar…
Nem pelo fato de não ter conseguido estender a parceria com Neymar? Recentemente ele disse que a Copa do Catar pode ser a última dele. Eu acredito muito, de verdade, que estamos perdendo prazer com as coisas que fazemos no dia a dia. O prazer do dia a dia, do treinamento… Jogar acaba virando só uma profissão porque o extracampo é muito vigiado, muito difícil. O Neymar sempre foi dessa forma, sempre. Ele sempre teve um extracampo agitado, mas quando começamos não tinha tantas câmeras. No dia a dia? Ele sempre treinou de forma incrível e profissional. Além de ser fantástico, carismático e genial. Vão falar o que dele em campo? Foi campeão de tudo no Santos, no Barcelona, na seleção e no PSG. A Champions pelo Paris, claro, seria a cereja do bolo, mas ele se dedica, se entrega e é ruim vê-lo perdendo um pouco da alegria. Na última temporada para mim foi nítido que estava ali por profissão, não por prazer. Espero que recupere isso, que jogue essa Copa e a próxima. O futebol precisa de jogadores como ele, seria ruim demais não vê-lo em campo. Que ele tenha alegria sempre.
É preciso, então, aproveitarmos mais o futebol? Sim, enquanto há Messi, Neymar e tantos outros, aproveitem. E que possamos resgatar mais isso na base também. Para sermos campeões novamente, precisamos voltar à nossa essência, ao futebol bem jogado. Aprendemos o tático? Sim, mas isso todos estudam e aprendem. Existem vídeos, escolas, livros e muito material acessível. Isso está praticamente igual. Precisamos do diferencial: a técnica.
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