Publicidade
Publicidade

Blues, Klopp e senso crítico: as faces de Fernando Seabra, técnico do Cruzeiro

Estudioso e low-profile, o ainda pouco conhecido treinador quase trocou o futebol pela guitarra; agora começa a devolver autoestima ao cruzeirense

Texto publicado na edição 1514, de agosto de 2024

Eduardo Gonçalves de Andrade, o popular Tostão, cultiva até hoje uma conhecida aversão aos holofotes. Foi na edição de PLACAR de julho de 1984 que o antigo craque do Cruzeiro rompeu um silêncio que perdurou por longos 11 anos, uma espécie de exílio após sua aposentadoria forçada do futebol, graças a uma arrojada investida do repórter Octávio Ribeiro, o Pena Bran ca, que o convenceu a falar após insistir numa visita sob pretexto de lhe entregar livros. O maior jogador da história do clube mineiro nunca quis ser diferente. Preferia viver à la Greta Garbo – famosa atriz sueca naturalizada americana que fugia de aparições públicas.

Publicidade

Curiosamente, o técnico que fez a Raposa voltar a sonhar depois de temporadas de luta e dor também vestia até pouco tempo atrás uma capa de invisibilidade antes de ser anunciado pelo clube como sucessor do argentino Nicolás Larcamón em 9 de abril de 2024.

“Eu agradeço essa pergunta [sobre minha trajetória], porque as pessoas não sabem quase nada sobre mim. No ano passado, quando assumi, nem sequer sabiam que já havia dirigido clubes no profissional”, diz Fernando Seabra à PLACAR.

Publicidade
Seabra comandou o Cruzeiro em 27 jogos desde o retorno em abril - Gustavo Aleixo/Cruzeiro
Seabra comandou o Cruzeiro em 27 jogos desde o retorno em abril – Gustavo Aleixo/Cruzeiro

“Desculpe, falei demais, mas acho que em algum momento isso era necessário”, completou, após apresentar toda sua carreira no futebol.

Apelidado pelos mais empolgados de “Seabracadabra”, uma alusão ao modo como transformou rapidamente o time do Cruzeiro, o paulistano de 47 anos agora provoca suspiros e até comparações com a equipe de 2003, campeã de Tríplice Coroa (Mineiro, Copa do Brasil e Brasileirão).

A visível mudança de comportamento desde sua chegada já levou até cartolas a assumirem erros pela não efetivação no cargo ao fim de 2023, quando deixou a equipe sub-20 para salvar a principal do rebaixamento ao lado de Paulo Autuori.

Publicidade

“Contratamos o Larcamón, sendo um bom treinador, mas ele não se conectou à cultura do Cruzeiro. E aí, a gente corrige o erro (contratando Fernando Seabra)”, analisou o ex-diretor de futebol do clube, Pedro Martins, em entrevista ao Charla Podcast em julho.

Seabra no Desportivo Brasil, na terceira divisão de São Paulo: 'muitos acham que o Cruzeiro é meu primeiro trabalho no profissional' - Arquivo pessoal
Seabra no Desportivo Brasil, na terceira divisão de São Paulo: ‘muitos acham que o Cruzeiro é meu primeiro trabalho no profissional’ – Arquivo pessoal

Bacharel em esportes pela USP (Universidade de São Paulo), com mestrado em educação física, Seabra tem nos livros e vivências a maior base de seu sucesso. Não foi e nem tentou ser jogador de futebol profissional. Participou de campeonatos de campo e no futebol de salão por clubes associativos até os 14 anos, mas sempre foi mais observador que jogador.

“Passei a infância na rua, era o meu passatempo favorito. Também gostava muito da formação que uma faculdade poderia me dar, das discussões e da possibilidade de criar uma visão de mundo.”

A busca por esse senso crítico o levou ao curso de ciências sociais, antes de corrigir a rota para os esportes. Foi assim que conseguiu conciliar a paixão pela música: “Eu tinha algumas bandas, tocava durante a noite. Fiz aula de violão, depois peguei firme na guitarra e passei a gostar de blues, me enveredei por esse lado”.

A guitarra foi ficando cada vez mais encostada, à medida que Seabra passou a treinar equipes universitárias. Nesse cenário, estabeleceu contatos com Maurício Barbieri, Diego Cerri, Bruno Pivetti e Anderson Moraes: “Fui treinador de todos. Na odontologia o Barbieri foi meu auxiliar, onde ele iniciou”.

Dirigindo o time da USP (de amarelo) com Maurício Barbieri como auxiliar, em 2002 - Arquivo pessoal
Dirigindo o time da USP (de amarelo) com Maurício Barbieri como auxiliar, em 2002 – Arquivo pessoal

O interesse sempre foi a parte técnica. Chegou a recusar estágio no São Paulo em preparação física para poder trabalhar com futsal e, depois, com o futebol feminino. Foi assim que conheceu Kleiton Lima, que o levou para um breve período no projeto do Santos em Itanhaém para a modalidade. Sem abandonar a parte acadêmica, concluiu um estudo em análise e desenvolvimento com reconhecimento na Hungria. O projeto resultou em mestrado na USP e contratação pelo Assisense, onde estreou logo no profissional. No ano seguinte, em 2007, foi para o Grêmio Barueri ser auxiliar fixo do clube junto de Fábio Carille.

Como ele mesmo diz, seu trabalho aconteceu em sua maioria “na parte de baixo do iceberg”. Foi preparador físico, coordenador metodológico de base, auxiliar técnico na segunda, terceira e quarta divisões do Paulista por Red Bull Brasil e Pão de Açúcar – projeto que tinha Barbieri como responsável pelo sub-20 e Barroca pelo sub-17.

Os contatos do passado o levaram para o Ceará, onde precisou dar um passo atrás na carreira para cuidar da família. “Minha mulher teve naquele momento um pico de estresse e ansiedade porque já não aguentava mais. Estava sozinha para cuidar da carreira profissional dela e com duas crianças em casa. E isso se agravou. Saí a contragosto, mas ele me entendeu porque não tinha como. Estava preocupante e retornei”, relata.

Em casa, ao lado dos filhos e da família - Arquivo pessoal
Em casa, ao lado dos filhos e da família – Arquivo pessoal

O retorno ocorreu no Independente de Limeira, seguido da equipe B do Santos como coordenador técnico metodológico. Indicou a contratação de nomes como Diego Pituca (Santos) e Thaciano (Bahia). Trabalhou também no Santo André, até chegar ao Corinthians, auxiliando Coelho e Barroca por dois anos, para depois rumar ao Athletico-PR e, na sequência, Desportivo Brasil.

Foi logo depois que Seabra vestiu pela primeira vez a camisa do Cruzeiro. A passagem iniciada em 2022, no sub-20, foi encerrada em janeiro de 2024, pouco após o vice-campeonato da Copinha com 91 jogos, 57 vitórias, 18 empates e 16 derrotas, além da conquista do Mineiro e da Copa do Brasil da categoria.

Neste ano, levou o Cruzeiro ao vice-campeonato da Copinha - Alexandre Battibugli/Placar
Neste ano, conduziu o Cruzeiro ao vice-campeonato da Copinha – Alexandre Battibugli/Placar

Da saída para treinar o Red Bull Bragantino II até o retorno foram dois meses, justificados em uma resposta metafórica no retorno: “O clube está fazendo uma escolha com base em uma imagem de alta resolução. Não é com baixa resolução”.

Seabra carrega como uma espécie de mantra pessoal a frase de que “treinador é pago para resolver problemas, não para reclamar”. Repetiu em algumas entrevistas e, de fato, foi quase em silêncio que em pouco tempo montou o “quadrado mágico” liderado por Matheus Pereira. Pereira, por exemplo, virou protagonista e candidato a craque do campeonato. O convívio com Paulo Autuori também aguçou o lado crítico fora das quatro linhas.

“É importante termos um posicionamento mais crítico. Todos têm a responsabilidade de buscar melhorar sua atividade. Autuori me desafiava a formar algo construtivo.”

Com Autuori, referência de Seabra dentro e fora dos gramados - Gustavo Aleixo/Placar
Com Autuori, referência de Seabra dentro e fora dos gramados – Gustavo Aleixo/Placar

O empobrecimento do futebol brasileiro, por exemplo, é um ponto incômodo. “A produção aqui acontece numa escala artesanal, mas a comercialização é pós-industrial. Então a gente acaba muitas vezes apresentando um produto com uma qualidade muito inferior ao que poderia”, afirmou, criticando a depreciação dos campeonatos no país pela rápida negociação de promessas.

“Sou muito crítico com relação a isso, trabalhei por quase 20 anos na base. Acho que a gente poderia apresentar um futebol muito mais rico conceitualmente e ajudar os jogadores a se desenvolverem. Mas, quando trabalho para um clube como o Cruzeiro, não adianta ficar reclamando. Tenho que resolver no próximo jogo.”

Outro ponto sensível é a qualidade dos gramados encontrados no país. “Enquanto não padronizarmos os gramados, permitindo uma variação grande que afeta a qualidade de jogo, isso nos enfraquecerá como liga e vai gerar desvantagens. Temos que ter mais vontade de ligar a tevê no fim de semana para ver o Brasileiro [do que] a Premier League”, explicou Seabra, que também aponta o dedo para mudanças nos clubes no processo de formação de atletas.

“O clube precisa ter a clareza de que a formação do jogador não termina na base. A base não entrega nenhum jogador pronto para o profissional. Esse é o período em que mais se perde talento no futebol. Uma série de processos precisam ser feitos.”

Apesar da escalada para o bloco que briga por vaga na próxima Libertadores, ele evita oba-oba. “Ainda é muito precoce [falar em luta pelo título]. Estamos caminhando para nos tornarmos competitivos com esses times que lideram a tabela. Temos a ambição de nos colocarmos nesse nicho, mas é um espaço que a gente ainda precisa conquistar.”

Estudioso, treinador colocou o Cruzeiro na briga pelo G-6 do Brasileirão - Gustavo Aleixo/Cruzeiro
Estudioso, treinador colocou o Cruzeiro na briga pelo G-6 do Brasileirão – Gustavo Aleixo/Cruzeiro

O trabalho tem o respaldo das principais lideranças do elenco e a boa fase gerou até aumento salarial para o comandante. Nem mesmo o áudio vazado de Pedro Lourenço, dono da SAF, exigindo titularidades afetou o time.

O título do Brasileiro, que não vem desde 2014, ou uma vaga na Libertadores, desde 2019, ainda são incertos até dezembro. Certo mesmo é que o estilo imposto por Seabra já recuperou respeito e hoje toca em Belo Horizonte como a boa música de Eric Clapton, John Lee Hooker ou B.B. King. O mais puro blues, senhores.

“De tanto se enfrentar, Klopp e Guardiola se aproximaram muito. Você pega o início do Klopp no Liverpool e vê um treinador muito mais vertical, com uma ideia da contrapressão e muito menos posicional. Depois, ele se apropria de vários aspectos e variações do jogo posicional, e isso o enriquece muito. Ele apresenta muita variação no estilo de jogo ao longo dos anos, mas gosto, sobretudo, da agressividade e da verticalidade nas transições, que também foram aspectos que o Guardiola incorporou dele ao longo dos anos. Então, eles se aproximaram muito mesmo com o tempo, mas entendo que no jogo do Guardiola ele parte de uma premissa muito grandede controle da bola e do espaço. Existe uma racionalização muito grande do jogo.

O rock'n'roll Klopp no Liverpool, sua maior referência - Andy Rain/EFE
O rock’n’roll Klopp no Liverpool, sua maior referência – Andy Rain/EFE

No do Klopp, embora também tenha elementos assim, existe um nível de agressividade e de iniciativa dos jogadores. Um grau de iniciativa dos jogadores que eu entendo que ainda seja a essência dele. A agressividade tem o mesmo peso que o controle. O Guardiola apresenta os mesmos ingredientes, mas com uma necessidade de ter a bola que é muito premente, que está na essência. Os times do Klopp não precisam só de ter a bola para se afirmarem enquanto identidade. Acho que esse estilo tem outros elementos que são interessantes, inclusive para trabalhar com equipes e jogadores pré-ápice. Esse jogo do Guardiola se materializa muito para equipes e jogadores no ápice, enquanto o do Klopp pode também ser muito efetivo e trazer resultados nessa situação de equipes e jogadores pré-ápice.”

Publicidade