Você sabe o que é uma concussão?
As lesões cerebrais são cada vez mais frequentes – e o futebol começa a tomar medidas contra elas
Álvaro Pereira preparou o carrinho quando o atacante inglês Raheem Sterling cortou Edinson Cavani, seu companheiro na Seleção Uruguaia pela partida entre a Celeste e a Inglaterra pela primeira fase da Copa do Mundo de 2014. O lateral-esquerdo não chegou na bola, desviada de leve por Sterling, mas o joelho do atacante atingiu o uruguaio na cabeça e o deixou paralisado por alguns segundos no gramado da principal competição de futebol do mundo para milhões de espectadores no estádio e na televisão.
Foi apenas mais uma das lesões cerebrais que vem aumentando ano após ano no esporte mais popular do mundo. “O futebol está muito mais físico, as bolas de cabeça estão muito mais disputadas. De 2000 para cá, houve um aumento grande dos traumatismos de cabeça e isso preocupa demais quem está trabalhando com isso”, diz Ricardo Galotti, especialista em Medicina do Exercício e do Esporte e membro da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte – SBMEE. Em 2011, o número de jogadores que já tinham sofrido com lesões na cabeça alcançava 40%, de acordo com o então médico da Seleção Brasileira, José Luis Runco.
Os médicos do Uruguai correram em direção ao jogador, caído e que mal se movimentava, para analisar a gravidade da lesão. Momentos depois, com o lateral já de pé, o médico da seleção uruguaia faz um gesto de substituição para o banco de reservas, para desespero de Álvaro Pereira, que também gesticula para o banco, balançando o dedo indicador de um lado para o outro e gritando “Não! Não!”. O desrespeito ao médico deu certo e o jogador voltou a campo – momentos depois estava novamente na defesa uruguaia, afastando bolas com a cabeça e, fora dele, elogiado sua raça.
Menos de um mês depois, o mesmo Álvaro Pereira, caiu de cabeça no gramado do Morumbi. Dessa vez, não voltou a campo. No último congresso de médicos do futebol, organizado pela Comissão Nacional de Médicos de Futebol, os médicos do São Paulo relataram que Álvaro apresentava confusão, mal sabia onde estava. O diagnóstico: concussão.
A concussão é um trauma sofrido na cabeça e que leva à desorientação e à perda momentânea de consciência. O diagnóstico não é instantâneo: os médicos precisam de indicativos visuais da atitude do jogador, como a falta de movimentação enquanto deitado, lentidão para levantar-se, problemas de equilíbrio, segurar ou apertar a cabeça, olhar vazio e confusão. Qualquer torcedor de futebol deve se lembrar de ter testemunhado pela televisão um desses sintomas após choques de cabeça em alguma partida. As lesões cerebrais, no entanto, não eram tratadas com a devida importância. Até setembro deste ano, os médicos no Brasil não tinham tempo para analisar a extensão da lesão, quando a Comissão Nacional de Médicos de Futebol, ligada à CBF, liberou uma série de regras para a concusão. Agora, o jogo pode ser paralisado por três minutos em caso de suspeita de trauma. Segundo Jorge Pagura, neurologista e coordenador da Comissão, que instituiu o protocolo, caso haja suspeita de concussão, os médicos podem entrar em campo até mesmo sem autorização do juiz.
“Fizemos cursos com os árbitros sobre essa questão, foi um dos temas do nosso congreso, conscientizar os árbitros para permitir o atendimento da concussão. Já falamos com vários técnicos da Série A, também”, diz Pagura. Em julho deste ano, o zagueiro Vítor Hugo, do Palmeiras, foi retirado do jogo e diagnosticado com uma concussão. “A gente tem uma preocupação em relação a lesões na cabeça, pela segurança dos jogadores. Temos o melhor que tem no país nessa área”, afirma o coordenador.
ENCEFALOPATIA TRAUMÁTICA CRÔNICA
Um desses médicos é Renato Anghinah, do Hospital das Clínicas. Anghinah esteve na equipe que analisou o cérebro do ex-jogador Bellini e encontrou indícios da encefalopatia traumática crônica (CTE, da sigla em inglês). A CTE é uma doença cerebral degenerativa, presente principalmente em pessoas que sofrem lesões constantes na cabeça. Tradicionalmente, está mais associada a lutadores de artes marciais e de boxe mas recentemente foi encontrada também em jogadores de futebol americano. Segundo Ricardo Galotti, essas lesões (que podem ser até mesmo microscópicas) levam a calcificações no cérebro, acúmulo de proteínas e a consequente diminuição da massa cerebral. Em casos avançados, atletas com CTE sofrem com demência, perda de intelecto e Mal de Alzheimer, entre outros sintomas.
As consequências podem ser trágicas: em 2012, o jogador de futebol americano Junior Seau, foi encontrado morto em sua casa após atirar contra o próprio peito. Em 2013, Paul Oliver, também ex-jogador da NFL, cometeu suicídio na frente da sua esposa. Ambos tinham CTE e são alguns dos vários exemplos encontrados em jogadores de futebol americano.
No futebol, existem dois casos documentados de CTE, além do ex-capitão da Seleção Brasileira de 1958 e 1962: um nos Estados Unidos e outro na Inglaterra. Jeff Astle, atacante do West Brom Albion e notório pela sua capacidade nos cabeceios, morreu aos 59 anos. Médicos definiram que a causa da morte de Astle, que já sofria com a deterioração da sua capacidade mental cinco anos antes da morte, foi resultado da encefalopatia traumática crônica.
As pesquisas com jogadores de futebol, no entanto, ainda estão no começo. “Os zagueiros e atacantes cabeceiam dezenas de bola por dia, mas não se sabe ao certo se isso causa lesão cerebral. Podem existir, sim, microlesões devido à frequência”, afirma Galotti. No Hospital das Clínicas, Renato Anghinah e outros médicos devem iniciar a primeira pesquisa focada em lesões cerebrais em ex-atletas, graças a uma seção do ambulatório de recuperação cognitiva no hospital focada apenas em traumas esportivos. O grupo está reunindo ex-jogadores de futebol que eventualmente possam apresentar esses quadros cognitivos, além de pesquisas com jogadores em atividade. “Nós já temos alguns jogadores que já, voluntariamente, procuraram um serviço”, diz Anghinah. Em um congresso em abril de 2016, a Comissão Nacional dos Médicos de Futebol deve apresentar os primeiros resultados após a implentação do protocolo. De qualquer forma, Jorge Pagura considera que um passo foi dado no caminho certo: “Tem sido um grande avanço e a concussão já não é mais aquela situação desconhecida de antes”.