Técnico iraniano supera depressão e esquecimento por sonho no Brasil
Dois anos depois de combater ataques xonofóbicos no Piauí, Koosha Delshad precisou dar aulas em uma pequena escolinha para se recolocar no mercado
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Ao caminhar pela Avenida Escola Politécnica, na zona oeste de São Paulo, Koosha Delshad, 41, cumpriu quase que uma liturgia durante sua rotina diária nos últimos sete meses.
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O técnico iraniano de futebol percorreu, dia após dia, exatos 3,4 km a pé do local onde mora, em Osasco, até a escolinha onde dava aulas. Sempre utilizando um fone de ouvido sem fio, embalado por uma playlist curiosa que ia desde Raça Negra – a canção preferida é “Cheia de Manias” (popularmente conhecida como “Didididiê”) –, passando por Roberto Carlos, pelo cantor iraniano Ebi, até nomes como Bob Dylan, U2 e Pink Floyd.
A caminhada foi uma forma de economizar no transporte, devido ao pequeno valor mensal que recebia pelas 11 aulas semanais para garotos entre 5 e 15 anos, utilizado quase que integralmente para pagar o aluguel que divide com a mãe. Mas também virou uma terapia improvisada em tempos difíceis.

Dois anos depois de ganhar notoriedade nacional ao pedir demissão e desabafar publicamente contra ataques xenofóbicos recebidos durante uma partida da primeira divisão do Campeonato Piauiense – foi chamado de “homem-bomba” e “terrorista” por uma parte dos torcedores do Comercial-PI por ser iraniano –, o treinador lutou bravamente para vencer outro adversário: o esquecimento.
Se na ocasião concedeu entrevistas a grandes jornais e emissoras, recebendo enxurradas de ligações de companheiros de profissão, além do apoio público de entidades como a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e a FPF (Federação Paulista de Futebol), por meses viveu a sensação de parecer invisível.
“Passei momentos de angústia e de enorme solidão depois de toda a repercussão daquele caso. Me lembro que, na conversa que tive com Mauro Silva (vice-presidente da FPF), ele me falou: ‘Você é muito jovem, tem um grande caminho pela frente’. Mas as coisas simplesmente não aconteceram”, disse à PLACAR.
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Em março de 2023, menos de um mês depois das ofensas no Piauí, ele assumiu o Fernandópolis com a missão de disputar a Bezinha (como é chamada a quarta divisão do estadual de São Paulo). Aprovou jogadores, treinou a equipe, idealizou o plano tático, mas acabou demitido pouco antes da estreia.
“A diretoria ficou receosa que [novos ataques] pudessem acontecer e precisassem arcar com multas pesadas. Falaram que a FPF era mais rigorosa. Pensei: errei em ter revelado aquilo? Saindo de lá, foi o começo de uma depressão, pensava que era um perdedor. Não saía de casa, não saía do quarto, e isso também afetou o meu relacionamento com minha companheira”, conta.
Delshad chegou ao Brasil em março de 2014 com a esperança de encontrar no país uma vida mais digna, e com liberdade, após uma infância marcada por memórias da guerra entre Irã e Iraque, que vitimou quase 1 milhão de pessoas entre militares e civis, motivada por disputas territoriais, políticas e religiosas.
“Por muitas vezes estávamos jogando bola na rua e quando víamos um avião fugíamos abandonando tudo, nos escondíamos com medo. Por isso senti tanto as ofensas naquele jogo, entende? A guerra trouxe muitos problemas psicológicos ao meu povo. Eu consegui superar, mas há muitos que não conseguem”, conta, em português quase fluente.
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Sem novas ofertas após deixar o time do interior paulista, ele passou literalmente a correr. Foram horas na esteira da academia para tentar driblar os piores momentos da depressão, mas as portas dos clubes que procurava seguiam fechadas.
“As pessoas olhavam as minhas fotos e diziam: ‘Que vida, como você está bem…’. E não sabiam que sofria por dentro com minha saúde mental. Os exercícios me ajudavam a não congelar.”
Ele precisou dar aulas como personal trainer mesmo tendo investido mais de R$ 20 000 para obter as licenças A, B e C da CBF Academy, braço educacional da entidade e responsável pela formação dos profissionais de futebol.
Nos treinos na escolinha, ainda era comum vê-lo usando boné e shorts do curso, além de tentar aplicar conceitos. PLACAR acompanhou uma das aulas no fim de janeiro. Curvado próximo a duas crianças, Koosha apontava insistentemente para o outro lado do pequeno campo de futebol society para fazê-los assimilar um dos conceitos:
“Ei, ei… estou falando com vocês”. A ideia era fazê-los carregar a bola com os pés em velocidade da linha de fundo ao meio-campo, seguido por uma mudança de direção e um trabalho de um contra um. Quem chegasse primeiro na bola levava vantagem.
Um dos pais sentados do lado de fora comentou: “Ô, Koosha, acelera que eles querem jogo”. O treinador sorriu.

“Aqui no Brasil há uma pressão diferente de qualquer outro lugar do mundo. Mesmo com crianças, os pais ficam em cima como se fosse profissional. Considero errado, mas aqui é assim. Eu amo esse ambiente e o futebol, por isso nunca parei de estudar. Sempre busco mais vídeos e aperfeiçoamentos para meus treinos.”
Um suspiro de esperança ocorreu em 2024 quando trabalhou por um período no sub-20 da Esportiva Guaratinguetá. O projeto ruiu rapidamente por problemas financeiros. Acumulou funções e não recebeu o pagamento integral combinado. “Somos humanos. Perguntei a mim mesmo: ‘O que vai acontecer agora? Vai ser sempre assim?’ Mas sempre ensinamos como técnicos que os jogadores não podem desistir. Não gosto de vitimismo e acredito em sonhos: sonho que vou chegar a um clube que tem muitos torcedores, um ambiente incrível. Existe uma música brasileira que gosto: ‘Sua hora vai chegar’. E a minha vai”, pondera.
O iraniano chama o Brasil de lar. Tem o documento brasileiro e explica que, mesmo que receba propostas para trabalhar fora do país, retornará a São Paulo como seu lugar de origem – e não ao Irã.
“Meu coração é brasileiro, me sinto um brasileiro. Os jogadores com quem trabalhei brincam que sou mais brasileiro que muito brasileiro. Gosto da comida, da cultura, dos lugares… De MPB, de samba, de funk, feijoada. Apesar do que já aconteceu comigo, aqui há liberdade”, relata o treinador, que tem tatuada em persa a frase “mulher, vida, liberdade”, slogan de protesto usado por ativistas após a jovem Mahsa Amini ser detida e morta em setembro de 2022 por integrantes da polícia religiosa no país por supostamente não usar o hijab, o véu islâmico.
Ao fim do treino, Koosha liberou a bola para que alguns dos meninos seguissem jogando na quadra. Apontou discretamente para um deles: “Está vendo aquele ali? Ele não pode pagar, ganhou bolsa para estar aqui”. E chorou.
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Formado como engenheiro elétrico, tentou ser jogador profissional no país, mas viu seu primeiro sonho interrompido por inúmeras dificuldades enfrentadas pelo pai, um militar. Ser treinador é para ele como uma nova oportunidade de ajudar para que novos sonhos não se percam.
“O meu objetivo é ajudar as crianças, os jogadores mais jovens. Eles têm o futebol no sangue, mas poucos recursos. E eu sei o que é começar do zero. Compreendo as dificuldades dele e sinto que preciso fazer alguma coisa”, diz.
Em seu país, trabalhou em equipes de base entre 2008 e 2013. No Brasil, precisou ajudar em uma fábrica de tapetes persas antes de cursar as licenciaturas exigidas. Tem passagens como auxiliar e analista no Cascavel CR, do Paraná, como técnico do sub-15 e sub-17 do CFA Manchister, de Santa Catarina, e fez estágios obrigatórios no sub-13 do Palmeiras e no elenco profissional do São Bernardo, então na Série D. Mas sonha com mais.
Antes de ir embora, cumprimentou o dono do espaço: “Estamos trabalhando por dias melhores, não é, Koosha?”. O iraniano balançou positivamente a cabeça, sorriu e respondeu antes de seguir a caminhada para casa: “Sim, a minha hora vai chegar”.
Dias depois da visita da reportagem, o treinador recebeu um convite para treinar a equipe sub-17 do Manthiqueira, de Guaratinguetá, mas que no profissional disputa a quinta divisão paulista.
“A PLACAR foi pé quente, espero que possamos fazer mais entrevistas no futuro”, contou, ao telefone. A chance do recomeço enfim chegou.
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